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SOPHIA DE MELLO BREYNER: UMA LEITURA DE GRADES - HELENA CONCEIÇÃO LANGROUVA |
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Reprodução autorizada de artigo publicado na Brotéria/Cultura e Informação, 114 (2), 1982 |
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INTRODUÇÃO |
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O objectivo deste trabaltho é .fazer uma leitura que permita, sobretudo, apresentar Grades, de Sophia de Mello Breyner Andresen, uma breve antologia publicada em 1971 (1) , numa fase de pleno esgotamento do povo Português, em Portugal e na guerra colonial de África. Sophia exprime, sobretudo, o tempo de opressão, agonia, morte, alienação, renúncia e exílio, as formas de injustiça, a marginalidade, a sua busca de Justiça e de Verdade. Alguns poemas exprimem também a tomada de consciência da crise da sociedade contemporânea em geral. De 1944 a 1954, Sophia publicou as suas quatro primeiras colectâneas de poemas quo exprimem em variados temas e formas de linguagem a sua procura de união com a Natureza. Os títulos e os conteúdos confirmam que é o Mar o elemento da Natureza que Ihe é mais familiar, do ponto de vista naturalístico e simbólico. Nascida no Porto, em 1922, de famílias aristocráticas de ascendência dinamarquesa, viveu a sua infância entre Espinho, Miramar e Porto, onde o mar e as imagens da miséria da gente a marcaram para toda a vida. Mar Novo (1958) e sobretudo o Livro Sexto (1962) reflectem a sua viragem para temas da realidade portuguesa, expressos numa linguagem imune de tendências panfletárias. Sophia olhou desde sempre os factos e situações da realidade portuguesa e do mundo contemporâneo. Sem qualquer teoria, deixando-os por vezes suspensos, em permanente procura de uma linguagem adequada. Foi a experiência da angústia política e social de Portugal, e do mundo ocidental do pós-guerra, que a levaram a procurar uma linguagem directa e despojada para exprimir uma gama de múltiplos temas do quotidiano, no rastro da estética neo-realista. O aviltamento da vida humana e da sociedade, tão explorado pelos poetas neo-realistas, constitui o fulcro temático desta antologia. Grades publica, nas páginas 47 a 51, as palavras de Sophia proferidas em II de Junho de 1954, na Sociedade Portuguesa de Escritores, no momento da entrega do Grande Prémio da Poesia atribuído ao seu Livro Sexto. Nelas sintetiza as principais linhas de força da sua concepção de poesia que apresentam uma notável coerência em si mesmas, estando profundamente enraizadas no conteúdo dos trinta e um poemas reunidos na antologia Grades. Transcrevemos alguns passos do seu discurso que é uma Arte Poética, também publicada na Antologia (2) : E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é desde sempre uma coordenada fundamental de toda a obra poética. Vemos que no teatro grego o tema da justiça é a própria respiração das palavras» ... «Pois a justiça se confunde com aquelle equilíbrio das coisas, com aquela ordem do mundo onde o poeta quer integrar o seu canto. Confunde-se com aquele amor que, segundo Dante, move o sol e os outros astros. Confunde-se com a nossa fé no universo. Se em frente do esplendor do mundo nos alegramos com paixão, também em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixão. Esta lógica é íntima, interior, consequente consigo própria, necessária, fiel a si mesma. O facto de sermos feitos de louvor e protesto testemunha a unidade da nossa consciência» (3) . A procura de rigor, de justiça e de verdade é como a espinha dorsal da obra de Sophia, e particularmente patente na antologia Grades. A procura da unidade de consciência é também fulcral na poesia e nos Contos Exemplares. Consciência unilicada e unificante de luta, no plano interior, espiritual, nas suas relações com a natureza e os outros homens, no plano social e político. Consciência unificada ou saber que se aproxima da sabedoria. A leitura da sua obra é dilfícil, porque exige do leitor uma procura idêntica para nela penetrar quase por co-naturalidade. A leitura por co-naturalidade, que deverá também ser crítica, é adequada a alguns poetas que alcançaram uma Iinguagem despojada, limpa, clarificadora e densamente concentrada. Existe na obra de Sophia toda uma procura de sabedoria de viver, de luta contra o caos, a opressão e a injustiça. Sophia rejeita a fatalidade, a submissão aos desastres, a herança do «pecado organizado», e acredita na força combativa da verdade que deve pertencer à «íntima estrutura do poema» (4). Defende também a intervenção da poesia, do poeta e do artista, na «formação de uma consciência comum», desde que se mantenha a procura de «rigor, de verdade e de consciência» (5). Por isso, a sua obra se filia numa tradição humanística clássico-cristã e toca a consciência de quem pretende auto-conhecer-se e conhecer alguns aspectos da identidade portuguesa contemporânea. Sophia consegue harmonizar pessoalidade e adesão despojada a evidências, filtrada por uma profunda experiência do corpo, do ollhar, do espírito. Daí a dificuldade de a enfrentar numa atitude estritamente crítica; isso tem motivado o silêncio dos críticos e dos que lhe têm consagrado algumas páginas. |
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1. Um único poema de esperança num «país ocupado» |
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Sophia vê o seu país como um país ocupado, que não poderá seguir a sua própria lei - condição para se manter vivo. É ocupado pela violência social e política que tudo proíbe, tudo impede, só encontrando silêncio, solidão, monstruosidade e fome. Sophia é particularmente atenta à exipressão dos rostos dos que sofrem. Utiliza com frequência a imagem do «desenho da paciência e da fome» no rosto da gente oprimida.
Este poema de esperança pressupõe a realidade do Tempo actual onde prolifera a agonia, a morte, a alienação, o pranto, a renúncia, o exílio, a traição, a podridão, a miséria e a degradação. Sophia denuncia estas realidades e propõe, seguindo as suas convicções poéticas e humanas, um compromisso na aventura de procurar permanentemente a Justiça e a Verdade, não no plano abstracto ou intelectual, mas em todos os planos da vida. |
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2. O tempo actual |
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A problemática do tempo, na poesia de Sophia, associa-se predominantemente à cidade, à experiência de duas guenas mundiais e da guerra colonial dos anos 60. Assim, o tempo associado à vida na cidade é o «tempo dividido», o tempo em que o homem se perdeu da sua unidade essencial, «daquilo que era eterno» (9); ele entrou num processo de desintegração, de destruição, de dispersão na cidade, contradizendo a voçação do seu corpo e do seu espírito para a unidade e a união consigo próprio e com a Natureza. A experiência das duas guerras mundiais do século XX e da guena colonial dos anos 60 demarca o «tempo actual», de Grades, não através de factos, mas numa tentativa de percepção e de compreensão global das trevas, da negatividade, da destruição, da prisão, da violência, da ameaça, que devoram o homem de hoje, o homem português dos anos 60. Esse estado global negativo e opressor é percepcionado não como a projecção de forças inelutáveis, abstractas ou meta físicas, mas como obra humana, um estado de corresponsabilidade dos homens que criam, desenvolvem e projectam a violência. Os poemas Este é o Tempo e Data sintetizam a percepção do tempo actual Este é o tempo Da selva mais obscura Até o ar azul se tornou grades E a luz do sol se tornou impura Esta é a noite Densa de chacais Pesada de amargura Este é o tempo em que os homens renunciam (10)
No 2º verso do primeiro poema ecoam versos de Dante (2), na metáfora da «selva obscura». Mas enquanto que na Commedia de Dante a «selva obscura» se insere inúmeras vezes num percurso iniciático, de procura de luz e de conhecimento, irrompendo das trevas, neste poema de Sophia, a mesma metáfora não pressupõe um caminho de luz, mas de trevas, de impureza e não de purificação, confirmado pelas metáforas da degenerescência do «ar azul» e da «luz do sol» e pela «noite densa de chacais». Como veremos adiante, Sophia escolhe todo um bestiário simbólico de violência - chacais, abutres, milhafres. Ainda neste poema, a presença do díctico este, esta acentua o aviltamento do tempo actual de trevas. A renúncia dos homens é a renúncia de ser, é o não-ser. |
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3. Agonia, morte |
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A agonia e a morte perpassam em quase todos os poemas de Grades. Quatro poemas - Carta aos amigos mortos (18), Regresso (14), O Soldado Morto (15) e Camões e a tença (16) - concentram-se sobre este tema.
Camões é invocado como símbolo de um povo agonizante, que nada tem a celebrar através do canto, mas a quem é exigida submissão, paciência perante a violência do país que o mata lentamente («a quem ousou mais ser que a outra gente»). A 2ª estrofe deste poema imita a 1ª quadra do soneto «Erros meus, má fortuna, amor ardente» de Camões |
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3.1. Pranto pelo dia de hoje |
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A destruição da capacidade criadora do povo português é uma realidade que preocupa Sophia e que justifica alguns aspectos da despersonaJização do mesmo povo, impedido de se exprimir pela violência instituída.
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4. As formas de injustiça |
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Sophia enumera e denuncia inúmeras injustiças que têm a sua justificação e origem na violência instituída, a que mais tarde chamará «degradação da vida que a direita pratica» (18) . |
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4.1. A miséria, humilhação e escravidão |
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A miséria material está patente no breve poema Lusitânia: os pescadores vivem «de pouco pão e de luar». Sophia é bastante .breve, neste poema, na denúncia desta forma de miséria. Prefere deter-se demoradamente no canto da miséria moral, filtrada pela humilhação e condicionada pela escravidão social ...em frente desta gente Ignorada e pisada Como a pedra do chão E mais do que a pedra Humilhada e calcada (Esta Gente, p. 57-58) Nestes versos sintetiza-se um processo lento de violência que se arrasta na gente portuguesa, deixando marcas visíveis de extrema humilhação. A acumulação intencional de adjectivos pertencentes a campos semânticos cujo denominador comum é a humihação - ignorada, pisada, humilhada e calcada - é reforçada por duas comparações gradativas ascendentes - «como a pedra do chão / «e mais do que a pedra». Convém notar que Sophia encara sempre de frente esta e todas as formas de injustiça, numa atitude de atenção e de força combativa. Um idêntico processo de impregnação se realiza no plano da miséria moral, do sofrimento silencioso e da paciência submissa Pelos rostos de silêncio e de paciência Que a miséria longamente desenhou (Pátria, p. 29) No poema O Hospital e a Praia (pp. 27-28), Sophia alude a uma dualidade - o caminhar na praia «quase livre como um deus» / a «dor absurda e desmedida» que viu no hospital. O seu pensamento, que é fundamentalmente procura de essência e de unidade, é particularmente sensível à dualidade e ao contraste que reconhece no quotidiano, sem procurar uma explicação lógica, mantendo um constante discernimento, recorrendo, por vezes, à memória - «eu caminhei nas praias e nos campos / vi a dor absurda e desmedida» (ibid.). O flagelo da escravidão social é referido em alguns poemas de Sophia, com uma certa amliguidade, porque a gente que é escrava sabe também por vezes mostrar força e dignidade no rosto e nas atitudes. Assim no poema «Esta gente»: Esta gente cujo rosto Às vezes luminoso E outras vezes tosco Ora me lembra escravos Ora me lembra reis No poema intitulado Retrato de uma Princesa Desconhecida o tema da escravidão não é ambíguo porque há uma nítida oposição entre o esplendor da princesa retratada e a paciência da mão de obra escrava. Além de oposição, há uma relação de necessidade, porque nunca uma princesa pode ser tão bela e tão isenta de sofrimento e de desgaste se não se realiza o trabalho exaustivo e repetido dos escravos que sustentam uma sociedade hierarquizada, na qual as classes privilegiadas vivem de ócio e de requinte. Para que a sua espinha fosse tão direita E ela usasse a cabeça tão erguida Com uma tão simples claridade sobre a testa Forarn necessárias sucessivas gerações de escravos De corpo dobrado e grossas mãos pacientes No poema «As pessoas sensíveis» (pp. 39-40) denunciando quem come com o trabalho dos escravos, Sophia Iembra o versículo do Génesis «Ganharás o pão com o suor do teu rosto» Assim nos foi imposto E não: «Com o suor dos outros ganharás o pão» |
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4.2. A traição e a podridão moral |
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A traição é aludida no poema A Veste dos Fariseus, a propósito do comportamento de Pilatos e dos Fariseus no juIgamento de Cristo. Trata-se de uma denúncia subtil da engrenagem do «poder que lava as mãos» e que, escondendo as suas responsabilidades, quer sempre manter uma aparência de impecabilidade e de não-comprometimento na violência que prepara. Os Fariseus em cuja veste «nem uma nódoa se via» pela sua isenção traidora são também aqueles que guiam a polícia («a polícia o perseguia / guiada pelos fariseus») e manipulam o povo («Crucificai-o depressa / lhe pedia toda a gente I guiada por Fariseus»). Sophia aproveita a alusão bíblica para fazer uma alegoria do poder que procura destruir quem recusa a violência e acaba também por ser atraiçoado pelos amigos Era um Cristo sem poder Sem espada e sem riqueza Seus amigos o negavam (pp. 39-40) A autora recorre com frequência à Bíblia para introduzir alegorias e símbolos que remetam para valores permanentes, como a justiça e a procura de autenticidade. Por isso, no mesmo poema dirige uma invectiva aos «vendihões do templo» que na sua falta de autenticidade, constroem «grandes estátuas balofas e pesadas» e vivem da ciência dualista que mistura devoção e procura consciente de proveito: Ó cheios de de devoção e de proveito Perdoai-lhes Senhor Porque eles sabem o que fazem Sophia enumera veladamente alguns artifícios humanos que ocorrem na cidade, no mundo moderno e que começam a invadir-nos: Há um murmúrio de combinações Uma telegrafia Sem gestos sem sinais sem fios O mal compra o mal e ambos se entendem Compram e vendem A podridão e a degradação são detectadas frequentes vezes pela sua atenção, ao longo da sua obra (19). O símbolo do abutre associa implicitamente o artifício, o gosto da podridão e a degradação O velho abutre é sábio e alisa as suas penas A podridão lhe agrada e seus discursos Têm o dom de tornar as almas mais pequenas (p. 41) |
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5. A Procura de Justiça e de Verdade |
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A Justiça e a Verdade não são, no pensamento de Sophia, um ponto de chegada, mas um percurso permanente de quem procura eliminar a injustiça e a mentira do comportamento humano, cujos valores estão sempre a mudar, inserido na engrenagem da violência que vai perpetrando ao longo dos séculos.
Os valores liberdade, nitidez/limpidez e justiça pertencem à esfera da luta num «país ocupado» «cheio de mágoa», na «vida suja, hostil inutilmente gasta» da cidade impregnada de injustiças. País, vida e tempo são convergentes para se deixarem transformar positivamente através da luta e do combate pela justiça. Os inimigos estão simbolizados nos animais portadores de morte e podridão - o abutre e o milhafre -, de viscosidade traiçoeira e mortífera - a cobra - e de sujidade.
A própria autora, no final do mesmo poema, considera a procelária como a imagem justa de quem ousa lutar arriscando-se permanentemente a ser destruído |
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6. A coerência marginalizada |
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Utilizando paralelismo de construção, estabelece a oposição entre o comportamento colectivo («os outros» ) e o comportamento raro de quem procura coerência entre palavras e actos. O ponto de partida é a frontalidade de ser, a coragem de ser, a integridade moral que irá Iprojoctar-se na vida social. Sendo a poesia, para Sophia de Mello Breyner, a expressão da «inteireza, do ser, o de estar na terra» (21), são possíveis outras dimensões de leitura diferentes da envolvência moral, no plano individual e social. |
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NOTAS |
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(1) Publicações D. Quixote, edição proibida pela censura. |
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