Sobre a Estética e a Weltanschauung franciscanas

RUI GRÁCIO


Caras amigas e amigos,

 

Muito boas tardes e agradeço de coração às três Marias (ou quatro?) e especialmente, à Estela, esta nova convocatória para uma tarde (ou sarau) poético-artístico/a.

Como já devem saber, eu estou sempre interessado no encontro entre Estética e Espiritualidade. Portanto, a partir deste interesse de fundo, formulo estas minhas reflexões de hoje. Nesta tarde, a minha participação terá três pontos inter-relacionados: (1) uma reflexão estética; (2) a declamação de um poema; e (3) o canto de uma canção, tudo isto em relação com a temática do dia que escolhi.

A palavra alemã Weltanschauung é uma palavra técnica usada em Filosofia (e disciplinas afins), que, por sua vez e como acontece muitas vezes com diversos termos alemães, é uma palavra composta de outras duas: ‘Welt’ que significa ‘mundo’, em português, e ‘anschauung’, que significa ‘intuição’, ou ainda mais apropriadamente neste caso, ‘conceção do mundo’, ‘conceção da realidade’. O pressuposto é aqui a ideia de que todos e todas, de alguma maneira, possuímos também uma conceção do mundo e da vida, mais ou menos explícita ou implícita.

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Se há uma figura espiritual ou religiosa que tenha impressionado mais @s artistas cristãos, esta foi, sem dúvida, a figura de São Francisco de Assis (1181 ou 1182-1226), padroeiro da Ecologia e, por que não?, também da Arte. O importante é que “Francesco” não é somente um poeta (compôs o “Cântico das Criaturas”, orações/poemas religiosos…), como também é, e sobretudo, o que chamaria “um poeta existencial”. É o profeta da convivialidade de todas as coisas e seres, da fraternidade/sororidade universais, da “fraternidade como democracia cósmica”, como escreveu Leonardo Boff. A ideia é que todos os seres são nossos irmãos e irmãs. Francesco não se limitou por isso a escrever alguns poemas, mas foi antes de tudo alguém que os viveu a fundo, alguém que viveu poética ou esteticamente.

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A própria vida dele foi uma amostra de uma conversão permanente a um ideal transcendente. Deixar a riqueza que tinha, obtida pelo seu nascimento através de um pai que era um rico comerciante na comuna de Assis, naquele proto-capitalismo medieval de várias cidades italianas, o seu desfrute, a companhia dos seus amigos de aventuras, o seu amor por uma vida estética de maneira tradicional e um tanto superficial (e o seu afastamento de tudo o que era “feio”, “horroroso”, “deforme”, como os leprosos, estropiados e marginalizados), o seu desejo de glória e fama (a través de gestas de cavalaria), etc., convertia-o num jovem a mais da cidade, mas, isso sim, sempre generoso e amigo de gastar. Os seus desastres militares e os graves problemas de saúde ocasionados por essas aventuras bélicas, ajudaram a entrar dentro de si mesmo, e a encontrar o verdadeiro Senhor a quem deveria servir.

Isto foi sem dúvida um processo lento, mas com resultados espectaculares: começar a viver uma vida em pobreza, despojando-se da riqueza que o seu pai lhe deu, chegando a exclamar não ter mais “Pai” do que aquele do Céu, e partir para uma aventura onde o cristológico (encontro com o Cristo pobre e marginalizado) era o centro da sua vida. A sua “crise existencial”, que teve por consequência uma ruptura radical com “o mundano”, ocasionou-lhe um “salto quântico” vital, vivendo uma Paz e um Amor pela Natureza e por todos os seres humanos, começando pelos mais pobres, e tentando viver o Evangelho na mais absoluta pobreza, Providência e confiança no Deus da Vida.

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Por conseguinte, a sua estética era uma estética do imanente vivido transcendentalmente, uma estética da Presença divina no mais desprezado pelos seres humanos (os seus novos encontros com @s lepros@s), uma estética de valorizar tudo o que é da Natureza, porque Deus está aí presente. Uma recuperaçâo do valor da Matéria entendida como Criação, frente às críticas que alguns movimentos, considerados como “heréticos” pela Igreja oficial católica, faziam do poder, da riqueza, da ostentação e luxo desta mesma Igreja.

É o que podemos chamar hoje como “pan-en-teísmo”, esse Tudo em todos, de que falava São Paulo (1 Cor 15,28: “Deus tudo em todos”).

Noutras palavras, do ponto de vista da Estética: tratava-se da procura/encontro pessoal com a Beleza infinita de Deus espelhada na sua Criaçâo. E isto como um “caminho espiritual”, vivido na própria existência, no aqui-e-agora.

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São Boaventura de Bagnoregio (1221-1274), que chegou a ser Ministro-Geral da Ordem Franciscana (e que alguns até o chamam de “segundo fundador da Ordem”) tinha interessantes considerações estéticas, ainda que mais de passada, na sua obra mística mais importante “Itinerarium Mentis in Deum ”(“Itinerário da Mente ou Espírito para Deus”).

Mas antes é preciso referir que na Idade Média havia principalmente quatro tendências estéticas de focalizar a Beleza, influenciadas pela filosofia platónica como ponto de partida. A primeira afirmava que a beleza visível ou sensível (a que entra pelos nossos sentidos) carecia de todo valor, em comparação com a Beleza infinita e invisível (Deus). Frente a esta, a outra devia ser ignorada. A segunda, de influência plotiniana, afirmava que, apesar de tudo, a beleza visível tinha um certo valor, já que era um reflexo da invisível. Tinha, portanto, um valor relativo e limitado, mas um valor, ainda que limitado. A terceira considerava que a beleza sensível ou visível tinha o grande valor de ser um símbolo da Beleza invisível. Finalmente, a quarta, acreditava que a beleza sensível tinha valor em si própria, independentemente da sua relação com a Beleza invisível (algo que encaixaria com a visão moderna da Estética)[1].

Pessoalmente, até poderíamos dizer que estas diferentes conceções estéticas poderiam ser formuladas igualmente como uma série de etapas de desenvolvimento do pensamento estético da própria Humanidade ocidental (e não só).

Quanto a São Boaventura acredito que seria o terceiro tipo de hermenêutica estética a que mais encaixaria no seu pensamento. A beleza visível é o começo de um ascenso onto-axiológico que leva o ser humano até ao encontro com a sua Fonte Última. É uma catarse ontológica (ser) ao mesmo tempo que axiológica (valor). Neste “itinerário do espírito para Deus” as coisas podem sofrer uma tripla consideração ascensional “in crescendo”: desde ser “umbra” (“sombra”) com respeito à sua Fonte Divina, até ser vestigia (sinais), e, finalmente, imagines (imagens) da própria Divindade. E, aspeto este importante, tanto a nível do macrocosmos como do microcosmo.

Ou seja, a Beleza (identificada aqui com o próprio Deus, pois para Boaventura Deus é Beleza) está tanto fora como dentro de nós próprios. Este caminho catártico (purificador) ou ascensional é um caminho libertador. Portanto, a beleza é uma possibilidade de libertação para o próprio ser humano. Experimentar a Beleza, vivenciá-la no seu mais profundo sentido, é um caminho de purificação existencial do ser humano. Mas ela é uma espécie de “mola”: impulsiona-nos a dar um salto para a verdadeira Realidade, Verdade, Beleza e Bem em-si que é o Divino e a não ficar apegad@s às meras aparências da beleza visível, sensível e perecível. É esta uma ideia de fundo do platonismo, com raízes no pitagorismo.

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Dito com as nossas próprias categorias, mais atualizadas, diríamos que se refere tudo isto a diversos “estados de consciência”. Neste caso estético-ontológicos. Lembremos que o insigne filósofo Kierkegaard já falava de três estados ascensionais na evolução do ser humano para Deus: o estético, o ético, o religioso. Estes três elementos constituem o que o filósofo alemão Max Scheler chamaria depois como “valores”.

Portanto, a beleza visível, que podemos encontrar por todas as partes, liberta-nos, em ótica franciscana, desde que não nos apeguemos ao meramente sensível e o transcendamos, até alcançar a Beleza em-si. Francesco, pela sua parte, tinha um elevado estado de consciência estético, pois vivia “poeticamente”, ou seja, permanentemente “enamorado”. Assim, todo o mundo tornava-se transparente, diáfano, à presença de Cristo em todas as coisas. As coisas tinham para ele a sua própria dignidade, que lhes vinha de terem sido criadas pelo Absoluto. Elas eram uma mensagem real do Criador eterno.

Noutras palavras, há uma correlação entre o Criador e as criaturas. As criaturas falam do Criador, o amante fala do seu Amado. As coisas, até as mais inorgânicas, espelham as pegadas do seu Criador. As obras falam do seu Artista Criador. Pelas obras podemos chegar ao Criador.

No espírito franciscano isto supõe pobreza, despojamento, humildade, não-ego, para “deixar a Deus ser Deus”. Só Deus é a Beleza Absoluta. Mas, em tanto que criadas, todas as criaturas nos falam do seu Criador. Ser-se Poeta ou Artista é então sintonizar (empatizar, diríamos hoje) com a onda estética que nos leva, ascensionalmente, ao Criador de tudo e todos.

O interessante é que Francesco não se limitou a exprimir, mas viveu tudo isto de uma maneira intensa e vocacionada. Por isso, afirmei antes que o considero um consequente “poeta existencial”.

Porém, pergunto-me: Será que tudo isto nos serve também para nós e para a nossa vida?

Muito obrigado pela vossa atenção e paciência!

(NOTA: A continuação recitarei o poema da minha autoria Francesco, que faz parte do meu livro Mística e Revolução. Espiritualidade, Poesia e Ensaio para um Novo Milénio. Cepse, Benedita, 2012, p. 38, com música de fundo de Nóirín Ní Riain, com os monges da Abadia de Glenstal, em Limerick, na Irlanda, do seu álbum Vox de Nube, e interpretarei também a canção Brother Sun, Sister Moon, composta por Donovan, do filme de idêntico título, dirigido por Franco Zeffirelli, em 1972).

 

rui manuel grácio das neves

lisboa

07.12.18.


[1] Tomo esta classificação de WLADYSLAW TATARKIEWICZ, Historia de la Estética. II. La estética medieval (AKAL, Torrejón de Ardoz 1989, p.205), al estudiar la figura del importante místico e intelectual medieval Hugo de San Víctor.


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17 de novembro de 2018