Sobre a criação de novos museus em Portugal

MANUEL RODRIGUES VAZ


Lido pelo autor no Restaurante O Pote, em Lisboa, em 13 de Novembro de 2019, para os tertulianos de À Margem


Anunciada com o título O papel negativo da informação na criação de novos museus em Portugal, correspondendo à noção do que conhecia sobre o assunto até à data, depois de uma análise mais detalhada, embora não abandone totalmente esta parangona, sou levado a culpar mais o papel crescentemente negativo do politicamente correto, movimento que atravessa recorrentemente o nosso universo actual, vindo de uma esquerda cada vez mais desactualizada que se confunde com o popularucho e até, algumas vezes, com os populismos direitistas que nos afligem neste momento.

Tendo começado com uma guerra entre Universidades – neste caso a de Coimbra, que dinamizou e apresentou um projecto, e a Clássica de Lisboa, que não conseguiu fazer impor a criação de um futuro Museu das Descobertas – a polémica sobre o que hoje é conhecido como o caso do Museu Salazar cedo transvasou para uma pretensa guerra esquerda-direita sem ninguém ouvir, nem se fazer ouvir, os argumentos de parte a parte, num diálogo de surdos que mais parece as guerras de Alecrim e Manjerona.

O projecto real, que foi gizado pelo Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20) coordenado actualmente por António Rochette, com a colaboração de João Paulo Avelãs Nunes (professor da Faculdade de Letras, autor de uma tese de doutoramento sobre o Estado Novo e o volfrâmio e verdadeiro motor do projecto) e o Professor Doutor Luís Reis Torgal (que dedicou muitos anos ao estudo do sistema salazarista e que, entre outras obras e artigos, é autor do livro Estados Novos, Estado Novo) o núcleo  museológico de Santa Comba Dão será apenas um dos pólos da região a ser contemplado no “Projecto alargado da «Rota das Figuras Históricas»”, que, para além deste Centro de Interpretação do Estado Novo, é constituído por uma rede que integra ainda o Centro de Interpretação da Primeira República/Casa-Museu António José de Almeida (Vale de Vinha, Penacova), o Centro de Interpretação do Antissemitismo e do Holocausto/Casa-Museu Aristides de Sousa Mendes (Cabanas de Viriato, Carregal do Sal), onde está em causa o holocausto, associado à figura do célebre cônsul que enfrentou Salazar, terminando assim um projecto que até ao momento nunca passou de intenções, o Centro de Interpretação da Estância Sanatorial do Caramulo (Guardão, Tondela) e o Centro de Interpretação da Primeira República/Afonso Costa (Seia).

Ao contrário do que foi sempre noticiado, a Câmara Municipal de Santa Comba Dão nunca teve a intenção de fazer um museu Salazar. O presidente da Junta de Freguesia de Óvoa e Vimieiro, Rui Oliveira, afirmou recentemente, com o vigor requerido, que ali, na antiga escola-cantina Salazar, “nunca” existirá “um oratório de Salazar”.  E mais afirmou que agora, com o aval científico, sabe-se que quem for ao Centro de Interpretação do Estado Novo, a instalar naquela freguesia de Santa Comba Dão, à espera de uma perspetiva apologista do regime liderado por Salazar vai sentir-se, “mais do que desiludido, incomodado”.

Na verdade, o actual projecto não tem nada a ver com o que apareceu em 1990, que depressa foi abandonado. Por isso, a petição de 15 mil assinaturas entregue ao PM António Costa, contra o que chamava erradamente ao espaço ‘Museu de Salazar’, não tem nenhuma razão de ser. Nitidamente, as pessoas que a assinaram não viram o que está por trás, foram levadas por “fake news”. As pessoas não foram ver os documentos. Bastava ler a nota que vinha no ‘site’ do município de Santa Comba Dão, que tinham fiado esclarecidas, mas preferiram assinar “sem espírito crítico”.

Não será um museu de apologia a Salazar, mas sim um retrato do Estado Novo, construído em Santa Comba Dão. Segundo o historiador Luís Reis Torgal, o Centro de Interpretação vai abordar todo o período entre 1926 (quando se instaura a ditadura militar) e 1974, caracterizando o regime, comparando-o com outras “soluções políticas ditatoriais na Europa e no mundo” naquele período, sejam elas ditaduras de tipo fascista ou de tipo comunista.

“Falaremos da época dos fascismos, do período da Guerra Fria, da Segunda Guerra Mundial, da Guerra Colonial, da Crise de 1969, da repressão, da resistência, das grandes estruturas e organizações da sociedade portuguesa e da sua relação com o regime, falaremos dos ditadores – Salazar e Marcelo Caetano -, falaremos das outras elites do Estado Novo, dos conflitos entre elites, das correntes modernizadoras, conservadoras e tradicionalistas. Falaremos disso tudo”, esclareceu.

Um historiador ou até um simples cidadão deve ler a História através dos seus documentos. Caso contrário, a História transforma-se em “Estória”. Torgal vai mais longe: – Apresento esta ideia indiscutível porque se fala constantemente de um “Museu Salazar” em vários artigos de opinião, petições públicas e até textos e desenhos humorísticos. Todavia, pergunto: Quem falou, responsavelmente, alguma vez, de um “Museu Salazar”? Mais precisamente, quem disse que se pretendia fazer um “Museu” para dignificar a figura do “Chefe” do autoritário, se não totalitário, sistema político conhecido por Estado Novo?

Segundo o Presidente da Câmara de Santa Comba Dão, depois de concluídas as obras da antiga escola do Vimieiro (“antigo e icónico equipamento escolar”), se vão apresentar ali “serviços multimédia e exposições temporárias, servindo de alavanca para a musealização de todo o espaço”. Esse espaço intitular-se-á Centro Interpretativo do Estado Novo (CIEN). “Este será um local para o estudo do Estado Novo e nunca um santuário para nacionalistas”, porque de modo algum se pretende contribuir para a sacramentalização ou diabolização da figura do estadista. Pretende-se, apenas e só, fazer um levantamento científico e histórico de um regime político, enquanto acontecimento actual”.

Se os muitos plumitivos que escreveram sobre o tema tivessem perguntado ao CEIS20, ou a alguns dos seus membros, poderia ainda detalhar que as unidades museológicas que desejam abordar “figuras históricas” (e espaços e períodos históricos) a que se refere o Presidente da Câmara seriam ou pretendem vir a ser, além do que referi acima, ainda — se possível — está-se a pensar vir a propor e a apoiar a formação de espaços de memória referentes a Tomaz da Fonseca, em Mortágua, e às figuras de Alberto Veiga Simões, Alberto Moura Pinto e Fernando Vale, em Arganil.

No dia em que foi divulgada a vontade de criar uma Rede de Centros de Interpretação e Memória Política da I República e do Estado Novo, dentro de dois anos, João Paulo Avelãs Nunes vincou em declarações à agência Lusa que as pessoas que têm uma visão positiva do Estado Novo gostam de um discurso laudatório em torno do regime, que “nunca será o caso” do projeto a criar. “Não será laudatório, nem condenatório. Como é óbvio, quando se caracteriza uma ditadura, para quem gosta de ditaduras, a caracterização [que será feita no centro] será antipática”, apontou.

“Falaremos da época dos fascismos, do período da Guerra Fria, da Segunda Guerra Mundial, da Guerra Colonial, da crise de 1969, da repressão, da resistência, das grandes estruturas e organizações da sociedade portuguesa e da sua relação com o regime, falaremos dos ditadores – Salazar e Marcelo Caetano -, falaremos das outras elites do Estado Novo, dos conflitos entre elites, das correntes modernizadoras, conservadoras e tradicionalistas. Falaremos disso tudo”, esclareceu.

Sobre o perigo de a localidade se transformar em local de romaria, o historiador vincou que o saudosismo quanto ao Estado Novo em Santa Comba Dão “não é fenómeno de massas”, resumindo-se a umas dezenas de pessoas por ano que vão à terra natal de Salazar em homenagem do ditador.

Para além disso, João Paulo Avelãs Nunes apontou para o exemplo de Predappio, em Itália, a terra natal do ditador fascista Benito Mussolini, onde há “manifestações gigantescas duas vezes por ano”, em homenagem ao fascismo italiano, o que não obsta a que aquela seja uma terra onde “ainda hoje o Partido Democrático tem maioria nas eleições”.

“Para combater essa conquista desse espaço pela extrema-direita, o presidente da Câmara encomendou à Universidade de Bolonha, ao seu Departamento de História, um Centro de Interpretação sobre o Fascismo Italiano. Não o fez para criar manifestações ou para vender Predappio turisticamente”, vincou, salientando que é isso que o CEIS20 está a fazer em Santa Comba Dão, com a vantagem de se estar num país em que a extrema-direita “apenas teme 1% [dos votos] e as pessoas que vão ao Vimieiro são algumas unidades por ano e não centenas de milhares”, como no caso de Itália.

Os centros de Santa Comba Dão, Carregal do Sal, Penacova, Tondela e Seia terão consultoria científica e tecnológica do CEIS20, num projeto que junta cinco câmaras municipais e a ADICES (Associação de Desenvolvimento Local). Para a iniciativa, será criado um conselho consultivo, para o qual serão convidadas entidades como o Museu da Presidência, o Instituto de História Contemporânea, outras unidades orgânicas do ensino superior e associações cívicas, por forma a garantir que os objetivos iniciais de cada um dos projetos não serão adulterados.

O projeto, neste momento, está em fase de discussão das linhas orientadoras de produção de conteúdos, que serão aprovadas pelas entidades que encomendaram o projeto ao CEIS20 e, posteriormente, pelo conselho consultivo, que será criado em breve, explicou Avelãs Nunes.

Dentro de dois anos deverá nascer a rede. O projeto foi iniciado pela ADICES, com sede em Santa Comba Dão, em parceria com três municípios e o Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20) da Universidade de Coimbra, que presta consultoria científica, tecnológica e deontológica, aos quais se juntaram as autarquias de Seia e Penacova.

“Ao longo da construção deste projeto, percebemos que havia a necessidade de construirmos uma base científica e histórica que suportasse, de uma forma isenta, todo um projeto que se pretende que seja objetivo, em que não há mestres, não há ideologias”, sublinhou recentemente João Carlos Figueiredo, coordenador da ADICES.

Os Centros projectados serão atração para os territórios, pois a rede, que terá uma fase posterior com Tomás da Fonseca e Branquinho da Fonseca no Centro Interpretativo da Literatura do Século XX, pretende ser um motivo de desenvolvimento para os seus territórios, conjugando-se “com potencialidades que já existem ou que venham a existir, como é o caso da Ecopista do Dão, que é também uma mais-valia da região, e a Ecovia do Mondego que está em fase de arranque”. Esta é a nossa visão no sentido do desenvolvimento que queremos que seja integrado, equilibrado. Obviamente, não procurando fama nenhuma, nem exaltar ideologias e fazer apologia do que quer que seja, que não seja obviamente a história que não se apaga”, reiterou.

António Rochette, coordenador do CEIS20, salienta que este projeto “está inserido dentro de uma estratégia do próprio Centro de Investigação que já vem de muito longe, de desenvolver trabalhos sobre a I República e o Estado Novo, o que se reflete claramente naquilo que é o plano estratégico para a próxima década”.

“Nós não queremos que [os centros] sejam quatro paredes, mas que cada um destes locais, muitos deles até isolados, tenham uma dinâmica pedagógica para as novas gerações, ou seja, que tenha uma vertente de educação a trabalhar para o esclarecimento e para a formação das novas gerações, para que aquilo que aconteceu de bom se repita e o de mau não se repita”, frisou.

O coordenador do CEIS20 salienta que o projeto trabalha ao nível da componente cultural, política e das “componentes ligadas a vivências de um território de baixa densidade”, abrangendo lugares que “95% dos portugueses não sabem onde é que ficam”.

“Nós estamos a trabalhar numa lógica daquilo que é um dos grandes desígnios portugueses, que é a manutenção de população em territórios de baixa densidade, tentando chamar gente para esses mesmos territórios e promover também algum desenvolvimento desses mesmos territórios que estão nessa situação”, enfatizou António Rochette.

Segundo João Paulo Avelãs Nunes, os cinco centros de interpretação “têm temas atuais, realidades que aconteceram no passado, património e possibilidades de reutilização no presente, quer para o debate cívico, sempre de reforço da democracia e de qualificação dos territórios e das pessoas que vivem nos territórios”.

O académico, diretor do departamento de História e Estudos Europeus, Arqueologia e Artes da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, salientou que, “aqui, o papel da historiografia e das outras ciências sociais não é determinar o que as pessoas devem pensar, mas propor análises, comparações que depois as pessoas utilizarão como cidadãos”.

Aliás, o professor Luís Reis Torgal, é mesmo peremptório: -Obviamente que quem lida com a História com rigor e objectividade, utilizando os documentos (de toda a espécie), jamais seria capaz de criar um museu hagiológico sobre Salazar. E nem sequer se deve aludir à falta de fontes museológicas, porque, a par daquelas que existem em Santa Comba, há inúmeros meios para falar com complexidade da história do Estado Novo, Estado “fascista à portuguesa” (como correntemente lhe chamo), “fascismo sem movimento fascista” (como o apelidou o sociólogo Manuel de Lucena), “fascismo de cátedra” (designação de um notável artigo do filósofo Miguel Unamuno) ou Estado essencialmente repressivo, com a “arte de saber durar”, como têm provado os meus colegas Fernando Rosas e Irene Pimentel. Pode recorrer-se — como se sabe — aos mais diversos meios museológicos, como tem experimentado o Museu do Aljube. E já não falo do que se poderá vir a fazer no forte de Peniche (em cuja musealização o CEIS20 tem colaborado, através de Avelãs Nunes) ou, em Cabo Verde, no Tarrafal (Santiago), em que os museólogos cabo-verdianos e portugueses poderiam fazer muito mais do que está feito.

Francisco Bethencourt, em artigo do PÚBLICO, falou do renascimento da extrema-direita​ (que a todos preocupa), aproveitando — parece que vem sempre ao de cimo a “ficção” — para falar também do “Museu Salazar”! A este propósito diz que “meia dúzia de objectos pessoais de um ditador não qualificam […] um problema político grave”. Deveriam, na qualidade de historiador, ao menos, conhecer melhor os documentos, para se aperceber o que, na verdade, se pretenderá realizar. E acrescenta: “Na Alemanha ninguém se atreveria a propor um museu de Hitler ou em Itália um museu de Mussolini; seria claramente anticonstitucional”. É certo que é assim, mas não deixa de ser curioso que a casa de Mussolini em Predappio tenha sido restaurada pela Comuna para ali se realizarem exposições temporárias, algumas sobre temas do fascismo. Quanto a Hitler, a casa onde nasceu, em Braunau am Inn (na Áustria), também se encontra de pé e bem conservada, sem qualquer sentido museológico, mas foi restaurado o “Ninho da Águia” nos Alpes bávaros, sem que isso fosse considerado uma afirmação anticonstitucional e neonazi. E, deve notar-se que, além dos campos de concentração serem excelentes museus para se entender o Holocausto e por ele manifestar o horror, a Alemanha aceitou transformar o que resta do palácio de congressos de Nuremberga, onde se realizaram os tristemente famosos encontros do Partido Nazi, num moderno centro de documentação, onde se recorda o triste passado hitleriano e se abre sobretudo a jovens estudantes, para que não mais se esqueçam dessa história terrível.

Como dizia o editor da Visão, Filipe Luís, no dia 19 de Agosto passado, «Um museu dedicado a Salazar e à ditadura não tem de ser a apologia, mas a denúncia. Sem complexos, porém, não deve esconder as realizações, se as houve. Deve estar disponível, pedagogicamente, para as visitas de estudo de alunos do básico e do secundário, deve ser um valor acrescentado para os académicos e um espaço marcante para o público. Um murro no estômago.

Mas mesmo que não fosse – ou que não seja. Mesmo que fosse, ou que venha a ser, um «museu», entre aspas, que sirva de branqueamento da ditadura e de homenagem ao ditador, mostrando apenas o folclore, os objetos pessoais, os fragmentos dos discursos, as galinhas criadas na capoeira de São Bento e ovos idênticos aos vendidos, na mercearia do bairro, pela governanta D. Maria. Que fosse o deleite dos saudosistas. Que fosse a anedota. E daí? Estaremos tão inseguros da nossa democracia que devamos temer um tal santuário de opereta? Tão enganados por nós próprios, que queiramos, agora, brandir as mesmas armas do ditador – e censurar o “Museu do Salazar”?… Com que superioridade moral enfrentaríamos, depois, os seus seguidores e saudosistas?

É este argumento simples que não concebo que não seja entendido pelos subscritores (e alguns são inteligentes e bem preparados) da petição contra o museu. Não compreendo, em primeiro lugar, por não terem parado para pensar nas oportunidades que um tal espaço oferecerá, para pôr a nu, perante as novas gerações, os métodos e as mentalidades da ditadura e, em especial, os métodos e a mentalidade do seu tacanho protagonista. Mas o que, sobretudo, não percebo, é que caiam na armadilha da vigilância “policiesca” e no moralismo censório que sempre criticaram ao regime salazarista. É uma contradição nos próprios termos. É uma reação salazarenta.»

Mas se, com o incorrectamente chamado Museu Salazar, as coisas foram assim, com o anunciado Museu das Descobertas, as coisas não correram melhor. Em vez de se ter discutido a forma de levar a cabo a realização de um museu que debatesse a sério a história do homem português, na sua totalidade, a polémica andou mais à volta de nomes titulantes, Descobertas, que não houve, mas sim achamentos, Escravatura, que houve, mas que não foi um exclusivo português, Colonialismo, que também houve mas isso faz parte natural de ciclos da História, de que os portugueses de hoje não têm de se envergonhar pois nós próprios também fomos ocupados e colonizados, inclusive por árabes, como é sabido.

No debate, que não chegou a haver pois não passou de trocas de insultos soezes na maior parte das vezes, chegaram até a aparecer afirmações, como as do historiador João Pedro Marques, que acabou por acusar os escravos africanos como culpados da sua condição, pois não se revoltaram na época, esquecendo que não tinham armas nem defesas para isso. Perante tal enormidade, nem vale a pena continuar o rosário que uma certa imprensa acicatou para vender mais.

Da parte das entidades responsáveis, continuam as histórias de avanços e recuos ´`a volta de ostentar em arte e cultura o resultado da expansão nacional. Como agora, quando depois de intensa polémica que dividiu a opinião pensante portuguesa nos últimos dois anos, a ideia de Fernando Medina de construir um Museu da Descoberta também parece fadada ao esquecimento.

Ana Lúcia Araújo, historiadora brasileira docente na universidade norte-americana de Howard, dedicada a estudantes negros, e pesquisadora da memória pública, do património e da cultura visual da escravidão e do comércio atlântico, tentou explicar as difíceis relações entre o poder político português e o imaginário ultramarino. “Talvez por causa da sua longa história de envolvimento no comércio atlântico de escravos e escravatura no Brasil, e de sua longa história colonial no continente africano, Portugal (juntamente com Espanha) demorou muito tempo a reconhecer esse passado escravista no espaço público. Sem o reconhecimento desse passado, que está acontecendo apenas agora, atrasado de quase duas décadas ou mais em relação a outros países europeus como a Inglaterra, a França e a Holanda, fica muito difícil de tratar do passado colonial mais recente cujas cicatrizes ainda estão muito frescas.” Por isso, diz, “a criação de um museu sobre questões relativas a um passado sensível, traumático, é sempre complexa e não é surpreendente que tome tempo”. Especificamente sobre o Palácio do Ultramar, considera que o projeto “pode ser lido como uma forma de nostalgia desse passado escravista e colonial, num momento em que o projeto colonial estava se esvaindo”, sublinhando que o facto de o edifício nunca ter sido construído é por si só revelador.

Para a historiadora Maria João Castro, da Universidade Nova de Lisboa, em declarações à jornalista Christiana Martins, Expresso, 12 de Outubro passado, “obviamente que há um fio condutor entre as três intenções [criar um Museu Colonial, ainda no século XIX, o Palácio do Ultramar, no século XX, e o Museu da Descoberta, já no século XXI], ainda que com características distintas”. O primeiro “pretendia ser ‘a montra’ da legitimação da exploração do império português em África, à imagem do que fazia a Royal Geographical Society em Londres”, numa época em que o continente estava a ser partilhado pelos impérios europeus e era necessário dar provas das campanhas militares e de exploração.

Um “contexto completamente distinto” explica a ideia do Palácio do Ultramar, compreendido pela historiadora como uma resposta do Estado Novo ao surgimento, após a II Guerra Mundial, de movimentos independentistas. “A integração de Portugal na NATO em 1949 obrigou a alterações na política colonial, em que se inscreve a revogação do Ato Colonial em 1951, que tratou de mudar a designação de ‘colónias’ para ‘províncias ultramarinas’, mantendo os pressupostos do Ato Colonial de 1930. Certo é que estas preocupações do governo e a configuração do novo mundo pós-guerra desviaram a atenção do Estado português para as questões da arte e da cultura”, explica Maria João Castro, para quem, “na atualidade, a ideia da criação de um Museu da Descoberta estrutura-se a partir de pressupostos “claramente distintos, inserindo-se numa dinâmica própria de um mundo global e pós-colonial”.

 

Ou seja, mudou tudo, menos o desejo de expor as conquistas nacionais. Então, porque nunca nenhum projeto chega ao fim? “Uma resposta curta é a de que nunca houve verdadeiramente uma vontade política que concretizasse tal desígnio porque este nunca constituiu uma prioridade. Mais do que a escassez de verbas ou a alteração de políticas das obras públicas, foi acima de tudo a falta de vontade política que determinou o insucesso da edificação de um museu que fosse o espelho da vocação marítima e da dimensão imperial portuguesa”, avança Maria João Castro.

E, diria eu agora, piorou o papel da informação em Portugal, assim como as condições de debate político e cultural na sociedade portuguesa. Esperemos que isto seja passageiro, fruto de uma crispação apenas momentânea.


Rodrigues Vaz

13 NOV2019