LUZ DESARMADA

1. Tempo houve em que os deuses não eram unicamente um cliché literário, mas um acontecimento, uma aparição súbita, um encontro com bandidos talvez, um farol no meio do mar, ou um sonho. Mas até os deuses foram rareando: “Difícil se tornou para um homem ver os deuses”, diz o Hino a Demeter. Depois do atestado de óbito antigo: “O Deus Pan morreu”, a atoarda do louco do século que nos precede: “Deus morreu”. A fórmula gasta da “morte de Deus” deixou de ter qualquer pertinência, mas vigora.

2. "Parece estar chegando aí o Natal. Ignoro como (…) Um garoto perguntava ao Santa Claus: "Acreditas em ti próprio?" (...) Vou embarcar outra vez no espírito da época, mas sinto-me um tanto como o garoto de cinco anos a quem perguntaram se acreditava no Pai Natal. "Sim, acredito. Mas acho que este é o meu último ano" (Onésimo T. Almeida). Mais trágico do que deixar de acreditar no Santa Claus é deixar de acreditar na utopia (de Isaías, v.g.) ou no fundo da bondade humana. Por mais radical que seja o mal, não é tão profundo como a bondade. Quando deixamos de ter cinco anos deixamos também de ter Natal. Como se o Natal fosse para as crianças que deixamos de ser aos cinco anos. Mais grave é que o tempo presente seja de facto o do eclipse do messiânico. Do desastre do humano e da esperança. “O tempo futuro é inevitavelmente afectado por este eclipse do messiânico”, escreve G. Steiner1. Mas há sintomas de outras falhas e de outras demandas. Deve ser isso: “As despedidas olham para trás”2. O Natal dos adultos dorme na gaveta das suas memórias passadas. Como um costume, um rito. Não nos largasse ao menos o tropismo fundamental para a bondade.

3. Nós alimentamo-nos de ficções, de sonhos, de visões. Entre o ser e o dever-ser corre um rio às vezes intransponível. O Somnium Scipionis3 é a visita diária de quantos andam neste mundo entre estas duas margens. Aquilo que não podemos ignorar é a fome: avassala-nos, obriga-nos a sentar e a comer. A fome de espiritualidade é um dos sonhos e uma das fomes deste tempo, mas de difícil nomeação. Há a fome do corpo perfeito, protésico, há a fome da evasão (toda a droga promete um paraíso) através da velocidade, há a fome do dinheiro, porventura a mais visível, há a fome do poder que devora mesmo os mais virtuosos4. A fome é uma pulsão, há que viver com ela e orientá-la. Pode a religião sê-lo igualmente? Podemos falar de “fome de “Deus” quando a fome dos outros nos é estranha? Que fome declina este Natal?

4. Este mundo imanentizou tudo, reduziu tudo ao “bem visto” e “bem dito” – essa é a loucura do empirismo. Até o tempo se tornou estranho: ou já não chove no tempo habitual, ou é a neve em excesso. Como se pode “ver” o Natal num tempo em que a transparência invadiu tudo, num tempo em que o messiânico se instrumentalizou e se secularizou? Irreal o Natal. Mas irreal bem gostaríamos que fosse também o que todas as manhãs nos vai desfilando ante os olhos no jornal diário. In terra pax?

5. O Natal diz que sem incarnação não há Cristianismo. O que se passa entre Deus e Jesus só tem sentido na medida em que tal respeita ao destino de todos nós e é universalizável. A morte chega todos os dias. E nada pode impedir Deus de morrer se não há recurso contra a violência da morte. A ressurreição não é um acontecimento puramente celeste. Deus aventurou-se na história dum homem e é esse acontecimento que o Natal nos conta: Deus "entrou" na vida e na morte do homem como salvação da vida e da morte. Deus entra no nascimento e na morte de Jesus porque está desde sempre ligado ao nascimento e à mortalidade de todas as coisas, carregando o peso do destino das criaturas de que quer ser responsável. Deus em Jesus liga-se a um acontecimento singular de morte efectiva que erige em primícias da ressurreição universal, ao suscitar em Jesus um sim incondicional à morte que se converte um sim absoluto à ressurreição.

6. Os gnósticos do século II não estavam completamente errados quando levantavam o problema do Deus desconhecido e novo que se revelava em Jesus, mas imaginavam que esta novidade era a de um ser puramente celeste, imune a qualquer contacto com o mundo, que continuava inconhecível mesmo enviando o Filho, um Filho ao lado da carne em que se manifestava. Irieneu salvou a fé cristã, sublinhando a preocupação de Deus pela criatura que modelou, preocupação pelo que passa da vida à morte, a ponto de se juntar connosco nesse passo e de recapitular na sua incarnação toda a história dos homens.

7. Nada nos é conhecível que não venha a nós da "carne do mundo", da experiência do real. Deus está ligado ao tempo sem lhe estar submetido. Deus não se revela para fazer saber que existe e para reclamar um culto de obediência ou de adoração, mas para se fazer conhecer como o Doador da vida, o Deus que não abandona o ser-no-mundo ao destino de morte que o ameaça. Deus faz-se conhecer como um Deus-para-nós (Emanuel) o Libertador da história e do mais evidente destino que parece ser o da violência da morte que os homens se infligem uns aos outros.

8. Deus não é o ser infinito cuja perfeição consistiria em se guardar puro de qualquer relação contingente ou que só tem relação com o mundo através do seu poder ou da sua compaixão, o que acontece com todas as religiões. A radical novidade da manifestação de Deus em Jesus é de revelar que existe-para-nós: "Se Deus é por nós, quem será contra nós? Ele, que não poupou o próprio Filho, mas o entregou por todos nós, como não havia de nos dar também, com ele, todas as coisas?" (Rm 8, 31-32). E isso porque "Deus é Amor" e que o seu amor se realiza em nós quando nos amamos uns aos outros com o amor que ele revela ao enviar o seu Filho ao mundo e ao dar-nos seu Espírito" (1 Jo 4, 7-17).

9. Ziw é o termo que para os cabalistas diz o esplendor da Schekinah, isto é da manifestação divina. É desta luz que se alimentam os justos no mundo a vir. Se as religiões têm um sentido é o de libertar o fundo de bondade dos homens, de o ir procurar onde está completamente soterrado. Não nos cegue agora o "farol hipócrita" que ilumina a noite e que está ao serviço de quantos maquinam a destruição e a morte, os predadores do mundo que se acobertam à sombra de um deus-assassino e vingador. Tão cheias de Deus algumas nações se sonham e se concebem a ponto de o substituir e de lhe emprestar o rosto do Terror e da vontade de morte.

10. Também Satã é o príncipe da luz: mas não foi com esse nome que Deus nos visitou nesta noite santa. A luz que vem a nós é uma luz desarmada, que procura tenteando os seus irmãos num mundo nada hospitaleiro. Cito-vos um grande poeta judeu, Paul Celan: "o farol hipócrita ilumina os bandidos/mas tu existes, e tu procuras os teus irmãos". A voz off que diz esta luz doravante completamente profana, parece vir de nenhuma parte - ou de um ecrã de televisão que alguém se teria esquecido de apagar e que mostraria as casas arrasadas, o Iraque em chamas, o "olhar aterrado" das crianças, perante o inferno em que os adultos se comprazem.

11. O Natal chegou. Diante da divina surpresa só olhos ingénuos se abrirão. O tempo não é, porém de ingenuidades, o tempo é de graça. Agradecei a graça. Deus veio morar entre nós. Pax in terra!


NOTAS

1 George Steiner, Gramáticas da criação, Lisboa, Relógio d’Água, 2002, p. 20.
2 Ibidem, p. 21.
3 Cicéron, La République I, livre I, Paris, Les Belles Lettres, 1989.
4 "How much is enough?" ("ainda não chega?") é a questão a que temos de responder, a mais premente.