JOSÉ AUGUSTO
MOURÃO

 

 

Modulações
sobre uma obra

   

“Mais uma vez pensa
utilizar
a escrita
que sempre lhe serviu
de laboratório
e de alquimia”.
Maria Gabriela Llansol, A Restante Vida: 71.

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“Mas o sopro de quem canta misturando a sua inspiração com a respiração divina continua fora de alcance. Insituável. Sem rosto. Quem se dá conta disso, põe-se a caminho. Obedece à atracção”. - Luce Irigaray.

“Ce que l'on perçoit et sent quand une voix nous atteint n'est pas une voix ‘libérée' du corps qui la profère, c'est le corps même fait voix».- Herman Parret.

 

Falar é responder a um sopro, obedecer a uma atracção, acrescentando ao infindável da Palavra umas palavras mais. Tauler, que é um discípulo de Eckhart, fala da "cordialidade" do sentido. No seu processo dinâmico para um algures, quando o afecto não se resolve em acto, pode encontrar no discurso um “equivalente do acto”, como dizia Freud ( Études sur l'Histérie, PUF, 1956, pp. 5-6). Em psicanálise a representação está ligada ao fantasma e à linguagem, enquanto o afecto está ligado à parte arcaica do homem que tem a sua origem no Ça , sempre rebelde à simbolização. Os estados afectivos estão ligados às expectativas e às tensões criadas nesse espaço entre o sujeito e o seu outro. A escrita não é apenas uma “arte demonstrativa”, é uma arte de laboratório e de alquimia. Uma arte de ligações.

O conceito de discurso está ligado à instância da enunciação. Ora, é precisamente a enunciação que esconjura a separação, programando a resposta do outro no mesmo sentido . O acto que produz o discurso é pois necessariamente induzido pela paixão. Os sentidos do texto coincidem com as fronteiras do corpo em que fazer o sinal e o fazer sentido se encontram. Os textos para rezar assemelham-se ao que Maria Gabriela Llansol em O Parasceve descreve como uma “respiração murmurada em palavras”. O ritmo está na escrita, não no texto. O fantasma da escrita escreve - se em O livro das comunidades , por exemplo, como mutante. Os sinais para os olhos resultam no "não acreditar" (Jo 12, 37). Os sinais escritos são-no "para que acrediteis" (Jo 20, 30-31). Escreve-se, não para persuadir ou para "fazer crer", mas para testemunhar daquilo que nos tocou como questão (não "que quer dizer este texto'", mas que é que ele me quer?") ou como alegria e força.

O fulgor é o que permanece intocado da sarça do sentido: é a glória , que vive na vizinhança da jubilatio e da voz, sempre móvel, volúvel e invisível. Ler a obra da Maria Gabriela Llansol obriga a desvios porque o vivo não se olha sem véus, de frente: é um efeito, como as paixões tristes e as paixões alegres. De onde me vem a atracção por esta forma de escrita (de vida)? Algumas razões que se prendem com a forma de sensibilidade que esta escrita exprime: o espaço tensivo polarizado pela transparência e a opacidade; o estado “suspensivo” das figuras que atravessam o texto como cometas: aparecem e logo desaparecem, transfiguradas, irreconhecíveis; as formas do sentir que dão acesso àquilo a que podemos chamar, com Rilke, o Aberto, cuja expressão simbólica é o “vazio”, considerado como espaço-tempo indefinido; o acto perceptivo desmultiplicado numa miríade de “pequenas percepções”, diria Leibniz; em que o mundo visível nos é dado a “ver” como totalidade imposs ível: “a natureza nunca ninguém a viu” (O Jogo da Liberdade da Alma” , p. 72); a estética de ressuscitação, contraposta à estética da cinza.

A gramática profunda que governa os jogos de linguagem só é compreensível se damos conta das “formas de vida” em que se inscrevem. Falar uma linguagem faz parte duma actividade, ou de uma forma de vida (IP, 23). “Imaginar uma linguagem é imaginar uma forma de vida (IP, 19). “Compreender um jogo de linguagem é partilhar uma forma de vida. Ora as formas de vida não se deixam descrever numa metalinguagem positivista qualquer, seja científica, religiosa, ética, histórica, quer pertença à crítica literária ou tudo o que se queira” (1). Um jogo de linguagem nada tem a ver com a ideia de gratuidade, i.é., de ausência de regra, por vezes associada à ideia de jogo; nada de conotação festiva ou litúrgica. Não há jogo sem regras de jogo, são elas que definem o sentido do jogo. Esta é uma noção para lá do determinismo rígido e da indeterminação absoluta. Quando a linguagem faz a festa – (IP, 38), quando perdemos de vista as regras de jogo que as governam.

Uma literatura sem desejo seria apenas uma moral, ou uma técnica. As palavras querem-se de passagem, de incarnação. Vale a pena citar aquilo que Clarice Lispector escreveu: "quero não o que está feito mas o que tortuosamente ainda se faz; escrevo por profundamente querer falar". As palavras querem-se de passagem, de incarnação. O espelho, a imagem, desincarna. Só vale comprometer-se com palavras que refaçam oblíquo da vida, a transfiguração das circunstâncias, o sopro. A palavra opera através da graça do sopro que transfigura e sob o signo da travessia. Ao contrário do espelho. A palavra é a alteridade da carne, lugar em que o falar toma corpo. O Logos não é só Palavra, mas também Acto ( energés ). No Logos há acto, energia, e não apenas sentido. A obra do Logos está ligada à carne e ao movimento. E à libertação. O Livro deve cumprir-se no corpo daqueles que um mesmo corpo liga. Desse pacto nascem os legentes que acreditam na força da linguagem. Os crentes não vivem fechados na fortaleza vazia duma linguagem puramente privada. É preciso, sim, analisar as condições de comunicabilidade desta linguagem respeitando a gramática que lhe é própria. O desprezo do método é luxo de iniciados. A não coincidência entre o autor e o leitor não dispensa as mediações e os descaminhos que, paradoxalmente, todo o método cria. A perspectiva é o ofício fundamental do olhar. Sem ela nunca veríamos um mundo.

Ler não é ver . O sepulcro aberto separa aparentemente um aqui e um algures: se não está aqui é porque o levaram algures. Mas de facto o milagre do discurso da narrativa é a deformação do espaço homogéneo: Maria vê Jesus (sem o conhecer) fora do sepulcro. A pedra retirada rompe com a homogeneidade do espaço. Há, dizem os anjos, uma outra face do visível a procurar, a acreditar. O regime da visão vem ligado ao acreditar e esta ligação entre”ver” e “acreditar” é colocada em relação com a Escritura: “Ainda não tinham compreendido a Escritura, segunda a qual ele devia ser ressuscitado de entre os mortos”. Este “ainda não” deixa entender que a escritura corresponde a um outro regime do acreditar (sem ver?). Para Maria a pedra retirada funciona como um sinal cujo significado plausível era que o corpo de Jesus tinha tido levado dali. No caso do discípulo, a visão dos objectos no sepulcro é referida à Escritura; o sepulcro propõe um espaço a ler. As ligaduras e o sudário têm de ser vistos como significantes textuais e não como sinais que transportam uma significação. Entre ver e acreditar é preciso ler para entender. Ler não é reconstituir um mundo verosímil mas articular as ligaduras e o sudário às letras da Escritura. Os traços descobertos no sepulcro, marcas da morte, da ausência e do vazio, constituem a Escritura como um texto cuja opacidade atesta a vida da palavra e cuja textura remete para o horizonte dum corpo a vir e para a impossibilidade de nos apropriarmos dele num espaço homogéneo.

O desejo é sempre o mesmo:

“- Desejo encontrar alguém que me ame com bondade, e que seja um homem.

- Alguém que queira ressuscitar para ti?

- Sim, alguém que tenha para comigo essa memória” ( O Jogo da Liberdade da Alma” , p. 21)

Ler obriga a ser homens e mulheres de contas. E de dívidas. O tempo da vida é o tempo da prova constantemente recomeçada, das contas a dar – não há leitura impune – uma conta que não se calcula previamente, que está sujeita à discrição do desejo do Outro, do desejo radical de Deus. Nunca estamos sozinhos a ler e a escrever sobre este ou aquele autor. Fazemos parte de uma cadeia de legentes que não começou hoje. E que é uma comunidade senão um corpo acordado para a linguagem e para a percepção através da percepção de um outro corpo que fala? Não é a comunidade é um corpo em devir, um lugar de mutações, transversal ao tempo onde acontece o diálogo dos mortos e dos vivos?

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(1) Hilary Putnam “God and Philosophers”, Midwest Studies in Philosophy , XXI (1997), p. 178.