ONDE VAIS, DRAMA-POESIA?

Maria Gabriela Llansol
Anagnoses
(Relógio d'Água, 2000)

Excertos:
"eu, Maria Gabriela Llansol, sou responsável pelo texto que dou a ler" (p.187)

"ofereço-lhes o texto que escrevo, ignoro se o entendem, como ignoro se a minha presença activa bate asas como a borboleta que causa um tufão sobre o Pacífico

"'é para si', e concluo 'é para nós'" (p. 179)

"não darei um passo à margem do fulgor, diz o texto" (p. 94)

"O que sentimos fisicamente com o sexo que temos, o que as imagens vêm procurar em nós, não é o sexo que praticamos, é a vibração pelo vivo e pelo novo. Chamei-lhe fulgor porque é assim que sinto" (p. 33)

"está escuro, diz Elvira, acenda o texto, respondo-lhe" (p. 274)

"assim, contudo, quais forem as circunstâncias, o texto volta-se para o legente,

e pede-lhe que leia o ente criado,

visível quando Elvira faz um movimento vertical com a peneira,

apenas som vocal quando ela pára os braços, e sente a dor nos

punhos" (p. 278)

"o fulgor é preferível à verosimilhança" (p. 199)

"o texto vê uma relação amorosa, libidinal, não só degradada

mas provavelmente

perdida, entre os sexos humanos e o sexo da natureza" (p. 187)

1. A lógica que rege o discurso académico é linear, hierárquica, separável, carceral. À semelhança do pensamento de Platão, que era comandado pela hierarquia do logos e pelo temor dos transvio ou do derrame. "Os formadores e os construtores não querem uma comunidade humana em simbiose com o sexo da paisagem. Excluem a voz do vagabundo. Desprezam os poetas", escreve Maria Gabriela Llansol (p. 47), que não quer ser vista como escritora do fantástico, do romance histórico ou de ficção científica. Platão anatematiza a escrita pelo prazer que provoca, pela leviandade que acarreta, pela disseminação que comporta. Como praticar então uma escrita menos preocupada com o sentido e mais centrada no movimento?

2. O pensamento cínico, estóico, epicurista, nietzschiano, "moderno", afastando-se deste logos, é fluido, perverso e híbrido. A divisa aqui é : "arriver à l'inconnu par le dérèglement de tous les sens" (Rimbaud). Deleuze di-lo de outro modo: "Il n'y a pas de logos, il n'y a que des hiéroglyphes" (Deleuze, 1964: 124)[1]. À ascensão, Deleuze substitui a circulação: os signos circulam, repetem-se na diferença pura, em si mesma, fora de toda a progressão, de qualquer dialéctica integrativa, ou finalidade, num campo de forças e de pequenas sensações. "Fiquei a saber que o dom poético é a língua tocada pela expansão do universo, que este caminha para o vivo" (p. 21).

3. O pensamento não linear está associado à criatividade, a interacção entre as componentes, como nos saltos por associação, é uniforme e promete a libertação do cárcere. É o que promete o hipertexto, que continua a ser um espaço linear multidimensional. De acordo com a movência teórica deleuzeana, as estruturas hierárquicas e lineares são logocêntricas, e as lisas e não lineares são nómadas. A escrita de Llansol inscreve-se na sensação ondulatória com que sobe e desce à voz do poema sem-eu, no mesmo gesto com que foge "à mediocridade da autobiografia" (p. 18) e à compulsão da escrita realista. As suas figuras (que no seu texto são muitas vezes pessoas históricas do passado) vêm do futuro. Do texto a haver. Da execução do texto pelo legente. Da anagnose.

4. "A literatura está a morrer", escreve Maria Gabriela Llansol (p. 264). A que luz se escreve este enunciado? As relações semânticas entre textos são provavelmente infinitas. Em último caso, todos os textos estão ligados uns aos outros. Se o texto constitui o produto textual da prática generativa, o intertexto constitui de certo modo o produto textual da prática interpretativa. O enunciado da guardiã do texto, como a si mesma Llansol se chama pode ser lido à luz do intertexto que concerne a anagnose na sua unidade e as suas interacções, no interior de uma entidade ainda mais global, que cobre teoricamente toda a produção interpretativa duma época. Se uma palavra se tem de sitiar num texto antes de podermos determinar o seu sentido, também um texto tem de ser colocado no contexto da análise de um leitor, uma entidade (inter)textual, a sua anagnose, antes de poder ser plenamente analisado.

5. Não se trata aqui de uma anagnose normativa e descritiva (que tem por objectivo a reconstrução da sistemática de um género) mas produtiva. O espaço da leitura é um espaço de fulgorização. Como criação do leitor, como projecção textual do seu contexto de análise, a anagnose pode ser vista como representativa do espaço interpretativo do leitor. Assim o enunciado "Deus morreu" (Nietzsche ou Jean Paul) toca de certa maneira com estoutro de Mallarmé "On a touché au vers" com toda a carga semântica que recebeu das anagnoses em que foi incluído e das relações que mantém com os outros textos em cada anagnose. "A Literatura está a morrer": o face a face deste enunciado já não é com a religião e a filosofia, mas com a própria linguagem e com os modos narrativos e a enunciação clássica. O drama-poesia move-se no registo da ficção que não imita nada, mas que segue o percurso generativo do texto móvel, vigilante, generoso.

6. "A matéria do texto era refulgentemente espiritual" (p. 145). A obra literária é um objecto invisível. Aquilo que vemos é sempre um livro, manuscrito ou impresso, e neste páginas cobertas de manchas de tinta com formas diversas. Ler é reconhecer estas manchas e estas manchas na obra literária como sinais de uma escrita, relacioná-los com os sons duma linguagem e compreender as associações destes sons e aquilo que significam, designam ou exprimem. Mas o livro não é apenas um suporte da obra literária, não programa apenas o comportamento dum destinatário de modo a fazer dele um leitor. Remete para um destinatário que lhe é exterior e para uma significação invisível que este pode extrair dele, lendo. O livro é um objecto visível investido de significação - é, pois, um semióforo (K. Pomian).

7. O texto passa do visível ao não visível: das pavanas de Purcell à parte velada do corpo de Elvira. Llansol fulgura como a escrita em que se dá a ler, nada propondo "que não tenha sido antes um risco assumido e vivido pelo próprio rosto no texto" (p. 25). Escrever para quê? Para "Criar lugares vibrantes a que se possa aceder pelo ritmo, criar na linguagem comum lugares de abrigo, refúgios de uma inexpugnável beleza, reconhecer-se nobre na partilha da palavra pública, no dom de troca com o vivo da espécie terrestre" (Ibidem). Escrever para quê? Para dizer apenas o desejo que vê (p. 37).

8. Na obra de Llansol o corpo e o poema constituem um ambo constituídos de matéria, cores em movimento, perguntas, sensualidade. "La vie de tout individu ne pourrait-elle pas être une oeuvre d'art? pourquoi un tableau ou une maison sont-ils des objets d'art et non pas la vie?", pergunta Foucault. "L'oeuvre que nous avons à faire n'est pas principalement une chose (un objet, un texte, une fortune, une invention, une institution) que nous laisserions derriére nous mais tout simplement notre vie et nous-mêmes. Pour nous, il n'y a oeuvre d'art que là où quelque chose échappe à la mortalité de son créateur; pour les Anciens, la techne tou biou s'appliquait, au contraire, à cette chose passagère qu'est la vie de celui qui la mettait en oeuvre, quitte, dans le meilleur des cas, à laisser derrière soi le sillage ou la marque d'une réputation"[2].

9. Forjar o estilo da sua própria existência - o carácter, diz Nietzsche - sem recorrer a valores "plantados no céu inteligível" nem no conhecimento racional, nem nas leis universais, mas entre os sexos humanos e o sexo da natureza. A preocupação de autenticidade remete para um modo de ser do sujeito preocupado com a lucidez e a transparência consigo e os outros. Ora a relação consigo é estruturada como uma prática que pode ter os seus modelos, as suas conformidades, as suas variantes, mas também as suas criações. O sujeito cria valores través dos seus actos e da sua conduta. Para Foucault, nos Cahiers pour une morale (1983) o papel da criação torna-se o nó central dessa pesquisa de uma "moral concreta": "O pintor só pinta porque quer ir até ao fim do seu desejo. O homem só dá em beber para suprimir a sede e quando se respira uma flor, é o odor que se limita à finalidade do acto.". A moral remete apenas para o movimento que realiza a acção e que é criador sem ser forçosamente autêntico.

10. Tanto Foucault como Sartre procuram construir uma moral depois da morte de Deus, o que os leva a apelar ao movimento interno da criação. "da ideia que o eu não nos é dado, penso que podemos tirar uma consequência prática: devemos constituir-nos, fabricar-nos, ordenar-nos como uma obra de arte." A concepção da criação não é a mesma para os dois autores. Sartre entende-a na alteridade: "Quando crio, escapo a mim mesmo, fujo, perco-me. Devo perder-me para me encontrar. Arrisco a alteridade porque na obra me dou ao outro. É por isso que toda a criação é uma paixão em que a minha subjectividade, que me é roubada e incorporada na do outro, não se realiza menos". A criação, inclusive a criação de si mesmo, é dom e releva do valor privilegiado que é a generosidade; consiste em aceitar ser alterado pelo olhar do outro, de ser mudado pela actividade da sua liberdade: é o que constitui o pacto de generosidade entre o escritor e o leitor de que fala Sartre em Qu'est-ce que la littérature?, conforme à sua prática criadora, ao interrogar-se: "para quem se escreve?", supondo uma liberdade do leitor que pode por seu turno transformar a obra. A criação para Sartre é inseparável do outro que a perturba e altera mas a quem ela se dá numa generosidade que faz o seu valor e o seu risco; a intrusão do outro compromete a criação de si, corre o risco de a desiquilibrar, de a afastar, de a perturbar. É uma procura, não um fim, porque o percurso reflexivo que é interno à constituição do sujeito moral não está desligada do imediato, espontâneo, irreflectido que liga um ao outro, e é neste chão da linguagem, dos sentimentos e do pensamento, dos medos e dos transportes, nas palavras que ferem ou reconciliam, que se cria o sujeito moral: a escolha não está apenas entre a criação duma existência ou dum objecto de arte, mas interna a uma relação de alteridade através da qual se constitui (ou falha) o sujeito moral e este "si" que, como diz Foucault, felizmente nunca atingimos.

11. Gabriela Llansol diz que não inventa a escrita: "Eu re-nasço dela, e, escrevendo, re-sisto, re-existo, na minha forma singular de existência" (p. 211). A autora fala do que a escrita vê. E que vê esta escrita? Renascimentos, fulgurações. A escrita, como a comunidade dos legentes são seres por vir. A escrita, avançando, tateante e meio cega, imprevista, tão pronta para a rasura como para a jubilação do definitivo, serve pelo menos para fazer perder ao inerte o seu hábito de vida conformada com que o que está. A leitura segue um caminho já traçado, que pode retomar, que frequentemente antecipa. Trabalha sobre o que já lá está - “é uma criação dirigida”, diz Sartre.

12. Nas palavras de Gabriela Llansol: "as palavras são vivos e não instrumentos, movimentos de poder e de vibração que transformam as coisas em formas, rodeadas de pontos mortos" (p. 82). O texto está sempre ameaçado de des-texto, como a criação de des-criação. Nascer significa vir numa carne. Todo o vivo é carne. O dualismo alma vs corpo não concerne o homem originalmente compreendido como um vivo. O homem ignora o dualismo. João compreende Deus como a Vida: "E o verbo fez-se carne". Impressional e afectiva. Carnal e invisível. O Deus cristão não é o deus grego, "impassível", longínquo, inabitado, vazio. A "Transcendência designa a imanência da Vida em cada vivo" (M. Henry, 2000: 176).

12.Quando as paisagens são sempre feitas de sensibilidade, não pode o visitante (hermeneuta, legente, ou outro) inclinar a autora para a razão "que delimita e nada explica, sem nada nos dar em troca" (199).

14. "O fulgor é preferível à verosimilhança" (199). Porque é no fulgor que está a verdadeira troca. A humildade e a pobreza brilham de dentro, não se parecendo com nada do que é sabido sobre elas nos compêndios de vida espiritual (Bartolomeu dos Mártires).

15. Da visio beatifica. A teologia eckhartiana da pobreza atinge também de caras a teologia da visão beatífica dos mestres de Paris. A pobreza de espírito exclui a tese do conhecimento reflexivo ilustrado nos anos 1300 por Jean de Paris e D. de Saint-Pouçain. O homem pobre é também o homem humilde e o homem nobre do Livro da consolação divina, aquele que conhece Deus em douta ignorância, não sabendo nada de nada, e não aquele que conhece que conhece Deus. Tese lançada no sermão 52 (o homem pobre é aquele que não sabe nada, que nada quer e que nada tem) e que data pelo menos de 1318. Um homem único: humilde, pobre e nobre. não poderá agradar a toda a gente: nem aos teólogos de Paris, nem aos espirituais franciscanos, nem ao papa. É ao falar da humildade que Eckhart se expõe à censura. A suspeita parece legítima.

16.   Eckhart escreve que o homem humilde e Deus são a mesma coisa - um só ser e uma só vida- o homem humilde nada tem a pedir a Deus. A resposta moderna é rápida: ele é um místico e especulativo. O escândalo nasce de uma inadequação da língua à alegria experimentada. Mas é preciso reler o nosso Mestre que não é um místico do excesso. É um mestre em teologia que ensina em Paris e que dez anos depois nos conventos de mulheres rediz em alemão aquilo que dissera em latim. A Gabriela o, poema pede que não oiça, nem veja, mas se deixe absorver, se deixe evoluir para pobre e se torne, a seu lado, uma espécie de poema sem-eu (p. 13).

17. Aí está de novo convocada a comunidade mística que a pratica desta escrita "cria". O texto que Maria Gabriela Llansol pratica "cria" seres futuros, que não são projecções imaginárias, mas algo a que chama "reais não-existentes": "inesquecíveis seres que estão aqui e estão por vir" (p. 198). Para fugir ao drama da egologia. Para exorcizar a escrita sobre a monocultura do humano. Para se conjugar com o corpo místico a que refluem Rimbaud, Dickinson, Musil, Holderlin .Para não romper nem com Dionísio nem com o Crucificado que fulguram ambos o encanto do mundo e a misericórdia - "a única palavra que a morte é realmente incapaz de corromper" (p. 233). Para dar ao texto as asas que outrora pertenceram ao anjo, matéria leve, metamórfica, ubíqua.

18. O texto começou legente. Como apelo e quimera. "Ler é ser chamado a um combate, a um drama" (p. 18). Os livros esperam o seu legente. Para incandescerem. Para abrir o mundo ao seus inumeráveis possíveis. "Só depois de escrito percebemos que tudo se passou no futuro. O que eu vivi, tão imperfeitamente, virá mais perfeitamente ao coração legente, eis porque lhe escrevo" (p. 134).

19. A guardiã do texto abriu a porta que dava para o nosso rosto legente. É entrar e habitar a matéria e o fulgor deste estético convívio.

20. "Divina eloquia aliquo modo cum legentibus crescit" (Gregório Magno).

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1. "A escrita faz a anamnese da sua matéria, as palavras... A escrita, literária ou pictural, perelabora a "língua", quer dizer tudo o que foi recebido através dela com as palavras, as cores e as linhas: a imensa textura de significantes e de significados potenciais - a fim de produzir, quer dizer de expor e manifestar, uma maneira de língua, um idioma, que procede da tradição mas que não resulta dela"(J. F. Lyotard, Misère de la philosophie: 103).

2. A escrita é um caso da leitura. "Écrire comme lire cherche la lecture" (Pascal Quignard). Ler é anagnosis, algo que não anda muito longe da anamnese freudiana, da Durcharbeitung. À imagem de um autor, mas a um outro nível, o leitor cria e modifica esta nova entidade textual, instaurando novas proximidades, dependências ou liberdades, i.é., novas relações entre textos, para privilegiar (ou aniquilar) determinadas aferências e não outras.

3. O texto fora dum contexto de análise só pode ter uma significação relativamente pobre em relação ao seu sentido obtido numa prática de análise filológica, dentro de uma "sociedade de textos" que constrange, enriquece ou rectifica a interpretação das suas partes. "A comunidade apropria-se da linguagem, escraviza-a ou pensa escravizá-la para os seus pretensos fins de auto-fundação, de auto-promoção. Nestas formalidades que são falar, dialogar, negociar, a língua é reduzida a um instrumento universal" (J. F. Lyotard, ibidem: 294). Um texto num contexto da análise dum comentador constitui uma "ocorrência" dum texto "tipo". Obtém uma descrição semântica própria na análise precisa do comentador.

4. "A escrita é o que a figura vê, é o que fica depositado nos que a lêem - a nostalgia inexpugnável dos seres que estão por vir" (p. 201). "A minha escrita é esta - imagem quase felina - , mas sem crueldade no olhar. E sem displicência" (p. 38).

[2] H. Dreyfus et P. Rabinow, Michel Foucault, un parcours phisolophique. Questions et réponses, p. 329, Gallimard, 1984.
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José Augusto Mourão é dominicano, semiólogo, professor na Universidade Nova de Lisboa (DCC)