UMA HISTÓRIA (DEFECTIVA)
DO OLHAR

Em torno de um poema de Eugénio de Andrade

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO
(UNL-DCC)

   
Publicado no volume de homenagem a Maria Leonor Buescu, "Em louvor da Linguagem", Colibri Editores, Lisboa, 2003
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"Je vous regarde comme on regarde l'impossible"
Jacques Lacan

L'âcre amour m'a gonflé de torpeurs enivrantes.
O que ma quille éclate! Ô que j'aille à la mer!"
Rimbaud

"Est mystique celui ou celle qui ne peut s'arrêter de marcher et qui, avec la certitude de ce qui lui manque, sait de chaque objet que ce n'est pas ça, qu'on ne peut résider ici ni se contenter de cela"
Michel de Certeau


EUGÉNIO DE ANDRADE

"Não, não é ainda a inquieta
luz de março
à proa de um sorriso,
nem a gloriosa ascenção do trigo,

a seda duma andorinha roçando
o ombro nu,
o pequeno e solitário rio adormecido
na garganta;

não, nem o cheiro acidulado e bom
do corpo, depois do amor,
pelas ruas a caminho do mar,
ou o despenhado silêncio

da pequena praça,
como um barco, o sorriso à proa;

não é só um olhar." (1)

Estamos perante um texto literário, um texto lírico, que não obedece aos critérios tradicionais de delimitação do texto poético "strictu sensu": a isometria dos enunciados (o sistema métrico) e o sistema rimático, versos livres, versos brancos. Esta circunstância desculpa-nos mais facilmente de pôr de lado a abordagem do código fónico-rítmico, sem subestimarmos a relação importante que ele mantém com o código grafemático, o código métrico ou o código estilístico. Esta opção, imposta pela materialidade do próprio texto e pelas nossas preferências metodológicas, não ignora todavia que no policódigo literário os vários códigos mantêm entre si relações sistémicas mutuamente interferentes. Abordaremos este texto de um ponto de vista dominantemente de ordem semântico-pragmática. Como é sabido, o código semântico-pragmático exerce uma funçäo dominante no policódigo literário porque a estrutura profunda do texto é de natureza semântica e só a partir desta estrutura se pode analisar a estrutura superficial do texto e as regras e convenções fónicas, prosódicas, grafemáticas, métricas, estilísticas, técnico-compositivas e semântico-pragmáticas que a organizam (2).

Deveria bastar ver este texto como um objecto semântico, absoluto, semiótico, um micro-universo semântico estruturado, topológica e temporalmente delimitado, fixo. Se as análises linguísticas se cantonam no domínio da frase é porque investem demasiado na álgebra e esquecem a geometria. Atrevam-se a ler o último verso, isoladamente. Faltando-lhe a sua sintagmatização, falta-lhe também o sentido que o precede e o liga ao corpo textual de que faz parte. Ler um texto é seguir o jogo das pistas do sentido nesta construção polissistémica, dialógica, translinguística que é o texto literário. Ora, este é daquela espécie de textos só se articulam bem em segredo, negativamente. Não descobrimos a mensagem de um texto senão tendo-o procurado (como a fé). Sartre falava de uma "hermenêutica (adivinhatória) do silêncio" (3). Ler é procurar saber como é que o texto diz o que diz, como classifica e dispõe as suas informações, a sua linguagem e o seu enigma. E esperar que ele interpele a nossa própria linguagem, as nossas próprias maneiras de dizer, de contar a vida, a morte, o amor, o silêncio. Então, talvez seja ele o primeiro a interpretar-nos. O sentido dum texto não se encontra à vista desarmada, não é da ordem do óbvio mas do secreto: descobre-se porque se procurou. São as mediações deste encontro que são importantes: o movimento das suas figuras, a perspectivação das suas vozes, o intenso do seu ritmo. A quantidade da tensão que o encena é que é responsável pela qualidade da sua atracção. Neste espelho do texto é que se projectam os nossos encontros passados e o desejo que sustenta o nosso presente.

Vamos ler o poema XX de Branco no Branco de E. de Andrade, como quem pretende esclarecer a estrutura de conjunto, encontrar ligações, "estruturas que ligam" - é isso a estética, na definição de G. Bateson. O poema lírico é revelação, não representação, que essa pertence ao modo narrativo ou dramático. O exterior, no texto lírico, não é nunca senão um pretexto em relação à estrutura e ao significado desse texto. "A essencialidade do poema", escreve Aguiar e Silva, "consistirá na emoção, nas vozes íntimas, na meditação, na ressonância mítica e simbólica" (4). Por isso mesmo, o texto lírico, se comporta elementos descritivos, é apenas para evocar uma atmosfera, uma paisagem interior. O descritivo no poema tem a função do suporte, de célula germinativa do universo subjectivo, anímico que apenas sublinha a separação , o vazio da subjectividade olhando da janela o pleno do mundo. De resto, o dispositivo narrativo, que corresponde a diferentes graus de proximidade vs distância entre o autor/auditor texto, ainda acentua mais o grau de distância que vai entre o autor e o herói, não havendo senão uma terceira pessoa, estática, "categoria-resto" (5) que conta uma história de dois mundos separados. Em termos de enunciação narrativa, o tempo da narração é o presente, o nível narrativo é uma mistura de um nível ulterior/anterior e a "pessoa" é o ele da "não-pessoa", o narrador heterodiegético. Como é sabido, o dispositivo enunciativo faz intervir dois níveis diegéticos encaixados: o dos actantes extradiegéticos (autor, leitor) reais, mas logicamente virtuais e o dos actantes intradiegéticos (narrador, narratário), fictícios, mas linguisticamente reais. Os actantes intradiegéticos são “personae” (Butor), isto é, representantes dos actantes extradiegéticos e a sua máscara; funcionam como operadores de identificação e ecrãns interpostos entre o Autor, o leitor e o texto (6). Em último caso, ninguém neste poema fala. estendem-se as figuras der um percurso narrativo que, a haver, teria o cortejo destas figuras que uma "não-pessoa" mostra.

Comecemos por destacar as estruturas sémio-narrativas implícitas e explícitas, estruturas que pressupõem um "antes" e um "depois", coordenadas espaciais, a interacção da terceira pessoa "categoria-resto" e o leitor implícito e/ou real a quem cabe "concretizar" este poema. É que também os poemas contam "histórias". A seu modo. Senão, vejamos. Se uma história é sempre a história de "alguém", definamos a narrativa como o faz Bremond: "uma mensagem que enuncia o devir de um sujeito." Mas não esqueçamos também a distinção, já clássica, de Jakobson: "é na associação por similitude que assentam os versos." A construção do poema rege-se, fundamentalmente, pela ordem da metáfora e do paralelismo, por oposição à narrativa. O discurso literário atrai a atenção sobre si mesmo, graças a estruturas como a perífrase, que simultaneamente aumentam e reduzem a precisão, ou como a anáfora que permite repetir o mesmo "topos" como uma batida ao mesmo rítmica e semântica, ou a negação que tem aqui uma pertinência retórica fundamental.

Eis uma história (a história de um olhar) que um narrador elidido evoca ou rememora. O "centro" organizador do poema é de facto o "olhar". À vista há um "começo", uma "fábula" de história. O que atenua ou diminui o seu desenvolvimento no tempo balisado por um "agora" e um "ainda não". O último verso: "Não, é só um olhar" contém em germe uma história abismada. É como se o poeta nos propusesse o que a teoria literária chama "abismamento" - esse fenómeno de reduplicação duma obra no interior dela mesma (como o é o "teatro dentro do teatro" no Hamlet de Shakespear). O horizonte dessa história vem anunciado anaforicamente por formas da negação "Não", "nem". No olhar, as fronteiras do activo/passivo são incertas. O olhar do amor não existe antes da percepção do ser amado: inflama-se à vista do outro que deseja segundo o princípio do "ubi oculus ibi amor". .É relativamente a um órgão sensor, um sensorium que se medem as aproximações com o outro. Diríamos que este momento final se situa numa intemporalidade estática e ao mesmo tempo num espaço separado de uma história não acontecida. Como se estivéssemos numa ordem espácio-temporal em abismo, não dita (o silêncio despenhado) que funcionasse como a metáfora do branco da história. O discurso especulativo é unitário por natureza; a unidade é o princípio da sua validade: o que é branco não é preto. Ora, o próprio do discurso ficcional é diferir o real soba forma de "assim mas não ainda". O poema põe o branco no preto numa tensão transformadora, conciliando os, diferindo-os, colocando a distância espácio-temporal que os liga, separando-os. Em presença está uma tensão activa em que intervêm diversos tipos de diferimento: por temporalização: o negro não é ainda o branco; por espaçamento, que funda o não-idêntico: o negro é diferente do branco; por conflito ou diferendo: o negro vs branco. Tudo na "armadura" deste poema, desde a sua modalização negativa, dos eus enunciados marcados negativamente com a forma verbal é , com sujeitos e predicados elípticos (vejam-se nos versos 4, 5, 7, 8 e 9), desde as conjunções coordenativas editivas (nem e não), desde o uso do gerûndio simples, contemporâneo da forma anterior do verbo da oração principal no particípio: adormecido, acidulado, despenhado, desde a locução adverbial de tempo "ainda" que marca o diferido da acção em curso, desde o advérbio "só", palavra ou locução denotadora de exclusão, tudo conspira para indeterminar qualquer programa narrativo em curso.

Ninguém no poema diz "eu"; ninguém incarna a posição do "eu" em face de um "tu". Tudo se passa como se as coisas se contassem por si mesmas. Uma "não-pessoa" as conta. Apesar de sabermos que tudo é predicação na língua e que tudo é afirmação de existência (Benveniste). No último verso, uma proposição completa sobre um começo e/ou um fim que a negativa, (não), o advérbio de exclusão (só), e o indefenido (um) marcam disforicamente. Focalização zero? (Segre).

O espaço da ficção instaura-se no poema a partir da ocultação do sujeito que a conta e da sobreposição dos sucessivos sintagmas que jogam com a similaridade e o paralelismo. Que sugerem estas equações, estas aproximações de uma paisagem amorosa num percurso (de viagem) - unidade relacional feita de lugares de primavera e corpos, convergente no amor e desenlace dobrado com resultante feliz e em aberto. As iterações criam um efeito de paralelismo. Há paralelismos indexados pela forma sintáctica ou fónica. Outros são próprios do plano do conteúdo. Vejam-se essas figuras:

figuras de primavera: Março/ ascensão do trigo/andorinha

figuras do corpo: ombro/garganta/sorriso/cheiro/barco/proa

figuras do desenlace dobrado: do corpo, depois do amor /pelas ruas a caminho do mar

figuras do espaço : rio/mar

e um facto - o "olhar": unidade relacional cúmplice - acontecimento - singularidade no espaço-tempo. Olhar "engate" - detonador pulsional, promessa de encontro (diferido). A passagem duma identidade a outra, do "eu" ao "tu", supõe uma história . Para que o "Eu" deixe de estar separado do Tu" será preciso que o sujeito se fixe um programa de acção que o "Tu" reconheça como realizada. Cada estrofe sugere uma etapa ainda a vir (incompleta, não acontecida) até ao último verso - o da epifania do olhar, da visibilidade. Cada estrofe desenha uma abertura possível, desejável, mantida nesse estado de "animação suspensa" (Winnicot), liminar, enumerado sob o mesmo modo negativo: não, não é ainda. A estrofe três reúne esse espaço, essa juntura do não e do nem que não desloca, não resolve a clausura do verso final, limitado a um olhar: é só um olhar.

Vejam-se as operações:

Negar é esclarecer. Dizer que "não era ainda" é deixar entender que, é sugerir que p era possívelmente verdadeiro. O último verso funciona como um separador. Até o "sorriso", que poderia indicar um começo (de viagem), algum possível encontro, fica suspenso, retido como um barco que não saíu à pesca. Numa narrativa as coisas avançam por polarização, retorno (peripécia) ou deslocação. Aqui, apenas resta olhar suspenso do seu objecto de desejo, adiado, a sonhar com um cenário de história havida ou a haver. O espaço real do olhar é reduzido a um puro olhar em abismo sobre o espaço onírico. Ora, como é sabido, os sonhos não caminham. não é dado nem o poder de virtualização. Esta história que vos conto é apenas um começo de incandescência, de uma história a vir. É apenas uma forma de encontro virtual. O que vos conto é o que falta, o negativo dum encontro que produz este tipo de escrita negativizada. Afinal, uma das funções da escrita é produzir deslocação, atopias, ausência. O que vos conto é o que não aconteceu. Ou o que me falta e que se codifica em termos de visão. Não temos outra alternativa: ou tomamos o partido de considerar este poema uma narrativa de transformação zero (Coquet), ou o verso final funciona como o conector da história que se conta acima segundo o esquema do post hoc ergo propter hoc. Nesse caso, o último verso inauguraria um itinerário sem impor trajectos fixos. Ou permanecemos no limiar do olhar, permanecendo de fora, à distância, no limiar do olhar à "inquieta luz de Março", na pre-visão de um estado amoroso virtualmente aberto, ou decidimos que o "real" da história acaba aí. O tempo do texto e o tempo do sujeito elaboram-se um ao outro num gesto simultâneo e indistinto.

Como Aristóteles, Plotino faz da negação ou uma impotência, ou uma privação ( II 4, 13, 20 e ss) . O conhecimento "através do não-ser" que evoca Aristóteles pode entender-se como uma comparação. De facto, a negação e a privação não fazem senão comparar uma coisa a um referente positivo. Plotino sabia que, pela sua indeterminação, a negação traz consigo um perigo: o de nos precipitar no vazio (VI 9, 7; cf. VI 7, 36, 9-21). A teologia negativa deve inscrever-se num programa de regresso ao Um para evitar cair no nada. No plano teológico, Plotino convida a ligar a caminhada apofática aos outros métodos: vias de analogia e de gradação. Tudo isso nos instruirá acerca do Um sem contudo o fazer conhecer: "«Tudo o que se diz do Um é apenas negação" (VI 8. 11, 34-35). A união mística faz-se por "contacto", repentinamente, não por método nem por sucessões de negações que levam ao não-ser. Donde a estratégia da gradação, a modulação melancólica dos estados, a tensividade que permanece não resolvida e que se aspectualiza como a medida da fruição. Tudo caminha para o lugar do encontro eutópico: a fusão do corpo no amor. Mas o verso final lembra a negatividade do sujeito em processo na própria enunciação ou predicação - contra o que o seu corpo quer (no fantasma): o todo, e aquilo que (na predicação) "um olhar" é já trabalho do luto: sem renunciar ao desejo, não procuro a fusão no outro (a posição mística: X ^ Y), mantenho a tensividade entre o processo e o facto (a falha: espreitar por um buraco o objecto de desejo total, entre-ver). O semema "entrever" diz bem os limites de uma percepção.

J. C. Coquet diz que podemos entender a falha como uma função narrativa que traduz uma relação lógica de disjunção e que recorre frequentemente, no plano da manifestação, ao campo lexical da vista (7).A falta manifesta-se no próprio jogo do olhar: O autor lembra que estamos perante um modelo muito geral: o fantasma. Vejamos como C. Clément o caracteriza: "é antes de mais uma estrutura através da qual passa o olhar, (...) quadro (...), passagem para a visão (...) desfiladeiro estreito onde o sujeito deve arrumar os seus objectos" (8).

No plano semântico, a falha codifica-se em termos de visão. O semema /entrever/ diz suficientemente os limites duma percepção. É assim que o novo espaço aberto aos olhos do sujeito recorta-se segundo a forma estreita, negativa, indeterminada, do olhar . O "ver como" prepara uma estratégia do desdobramento, pois. A outra cena: "à luz de Março", "andorinha", "o rio adormecido", o "silêncio da praça" são figuras que subsumem estados, processos, mostrando, entreabrindo um outro espaço, uma dixis positiva, latente, "sub-entendida". Donde o podermos falar de uma narrativa com uma dupla estruturação espácio-temporal: à imagem do fechamento visual do Todo "o sorriso à proa"/" como um barco a caminho do mar".

Não é de uma "aventura" do sujeito que se trata neste poema? Espacializemos o modo e a ordem desta "aventura": Num primeiro tempo o "olhar" aparece como pólo detonador de um processo (em aberto) , como forma significante. Mas logo todas as estratégias do discurso concorrem para a clausura do "olhar", logo da viagem: "não, não é...". É a clausura do "olhar" que o separa do processo relacional de que seria o detonador; um corte ocorre; o reconhecimento positivo do "olhar" é o reconhecimento negativo da viagem. O "olhar" torna-se então insignificante. Em síntese: o facto , a singularidade no sujeito presente é separação no tempo, diferimento: "não é ainda". O processo , a viagem, unidade relacional feita de lugares de primavera e corpos, convergente no amor e desenlace dobrado com resultado feliz e em aberto ("como um barco a caminho do mar") é anulado quando a tensividade que o ligava o facto e o processo se torna insignificante: "é só um olhar".

O pathos ontoteológico (tanto na forma do indizível como na outra - equivalente - da absoluta dizibilidade) não é estranho à escrita de Eugénio de Andrade. Grande parte das obras da mística correspondem àquilo a que H. Corbin chamava "romances teóricos", quer dizer discursos em que a expectação teórica é alterada pelo imprevisível. Isto é o que acontece na maneira de escrever dos místicos: algo acontece, relativo a um quadro teológico, teórico, e a relação entre os dois é um romance teórico em que se reconhece a função da fábula, entendida como começo. O poema XX conta a história de um começo previsível, mas ficcional, "fontal". São Boaventura falava da luz divina como de um "objectum fontanum", de um objecto-fontal, de um objecto-fonte. O que equivalia a dizer que a luz era simultaneamente indubitável e inapreensível (9). O outro é invisível. O homem não é uma imagem que se pudesse ver. O homem não é nada de visível. Nunca ninguém viu Deus, mas nunca ninguém viu um homem - um homem na sua realidade verdadeira, um Si transcendental vivo. Porque a vida não é nunca visível. É porque Deus é Vida que é invisível. A teologia negativa marca a impotência do nosso pensamento categorial para pensar o ser de Deus, sempre para lá do que podemos dizer ou pensar dele. Pode ser também uma via negativa, um caminho que leva a uma teologia mística em que o silêncio, em vez de fracasso, se torna realização da palavra. Para Merleau-Ponty não é a luz divina que é o objecto-fonte, mas a luz , invisível, do Ser do mundo. É porque o Ser se manifesta indirecta ou obliquamente que o caminho do pensamento é ele próprio indirecto (10).

Por um lado, tudo é dizível ou expressável, por outro, a experiência encarrega-se de nos mostrar as dificuldades que temos para exprimir determinados sentimentos, vivências, pensamentos. Do ponto de vista da comunicação, se algo não se diz, "não existe". Tudo o que se exprime na linguagem existe, pelo menos linguisticamente. Será verdade o contrário: tudo o que existe exprime-se? A nossa luta com a linguagem consiste em fazer-lhe dizer o indizível. Também sabemos que fala e fruição se excluem, como o oral de certo modo exclui o escrito e o enunciado a enunciação. A cena em que as coisas acontecem é o corpo. O discurso é a formalidade possível do nome dado à experiência. Escrever é uma prática mística. Para o místico a escrita é a experiência. E por experiência é preciso entender experimentação. Neste reino da linguagem, o corpo desloca-se, viaja, e as palavras são o rumor do corpo que se põe a falar. A enunciação está ligada ao desejo. Quando o místico diz: volo tal quer dizer que a sua linguagem diz: "fazes-me falta". Mas o sujeito que escreve nada pode dizer da fruição. A voz articula no mesmo lance o corpo e a linguagem. O fruto da fruição, esse não é uma fusão; é uma união que, para ser plena, não abole a distinção daqueles que ela une. Esta fruição é a intimidade realizada pelo mútuo amor (11). É conhecida a crítica dos místicos do século XVI contra os "estados" (visões, êxtases, etc. ) em que o espiritual descansa, como se fosse isso a experiência divina. É por serem protegidos contra a ultrapassagem necessária ("não é isto, nem aquilo") que se tornam tais experiências "doenças da alma" (12).

O tempo do poema, não sendo o do passado, pela própria modulação remete para um tempo da nostalgia e da distância. Aquilo que a nostalgia descobre na sua procura da unidade original é a angústia profunda suscitada pelo tempo inorgânico, o sentimento da contracção, da ausência de abertura e de escapatória.

O poema XX é, como o discurso místico, um discurso ferido por aquilo que designa sem poder dizê-lo. É um discurso que mostra aquilo que não pode nomear. Como se fosse atravessado por algo que não pode dizer. Ou se detivesse no limiar do dizível. O "olhar" é a metáfora de um começo, isto é daquilo que vem de outro, percebido mas não respondido, por isso defectivo. Dizer: "é só um olhar" pode querer dizer que este "olhar": a) promete; b) contempla. Porque nenhum olhar é só olhar. O olhar reconhece-se pela força que exprime, que afirma, que convoca uma presença, um começo de viagem. A perturbação que provoca o olhar deflui da tripla função que o marca: óptica, linguistica e háptica. O olhar é informação (ensina, mostra), mas é também relação (troca) e possessão (tocar). Vede "A seda de uma andorinha roçando o ombro nu"; vede como um barco "o sorriso à proa". O "olhar" é bem o lugar da significância, provocador de sinestesia. O poema de Angénio de Andrade ensina uma vez mais que o texto lírico é iminentemente dialógico, na sua inconfundível voz erguida do silêncio. Ensina ainda que só o desejo impede a perversão da alegria e ainda que o vazio é uma plenitude. Porque, finalmente, a questão do poema é uma questão ética: pode resumir-se assim: o olhar vai abrir a porta ou fechá-la? Há de facto uma forma de tornar esta história insignificante: "foi só um olhar", "a história foi só isto"; mas há também uma forma de a tornar significante: ao contá-la de modo negativo, está-se a assinalar o diferido do sentido na sua defectividade e na sua abertura. Assim a negatividade poética reinventa da mais alta forma o pudor da linguagem que por muitos modos e figuras narra a história do encontro e do desencontro do olhar.

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NOTAS

(1) Andrade, Eugénio de, Branco no Branco, Porto, limiar, 1984, p. 30.
(2) Ver Silva, V. M. Aguiar e, Teoria da Líteratura , 4ª ed., Coimbra, Almedina, 1982, p. 104.
(3) Sartre Jean-Paul, L'Idiot de la famille , Paris, 1971/72, III, p. 29.
(4) Silva V. M. Aguiar e, op. cit., p. 552.
(5) Silva, V. M. Aguiar e, op. cit ., p.554. (5) Kerbrat - Orecchioni, C., L'énonciation, Paris, PUF, 1987, p. 172.
(6) Jean-Claude Coquet, Le discours et son sujet I. , Paris, Klincksieck, 1984, p.45.
(7) Clément C. B. ,"De la méconnaissance: fantasme, texte, scène", Langages 31, Paris, 1973, p. 43 e 37.
(8) Cf. Gilson Etienne, La Philosophie de saint Bonabenture, Paris, 1978 (2), p. 323.
(9) Merleau-Ponty Maurice, Le Visible et l'invisible, Paris, Gallimard, 1964.
(10) Leclair Serge, Psychanalyser, Paris, Seuil, 1968, p. 137.
(11) Certeau, Michel de, "Historicités mystiques", Recherches de Science Religieuse , t. 73, 1985, p. 346.