JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

Deus na literatura
O Nome e as formas (5)

 

   
Deus morreu .

Deus morreu – eis a declaração maior do niilismo, que é a dissolução de qualquer fundamento último. Para os modernos, a dissolução dos fundamentos liberta. O niilismo é o pensamento que sabe poder visar o universal somente passando pelo diálogo, o acordo e, se queremos, a caritas: “veritatem facientes in caritate” (Ef 4,15). Niilismo e hermenêutica são sinónimos para G. Vattimo (1). Não acabou com Nietzsche o motivo da morte de Deus, presente na literatura alemã desde o romantismo. A originalidade de Nietzsche está em interpretar a morte de Deus como um crime . Crime ritual? Não precisa o insensato de solenidades expiatórias e de ritos de purificação? No começo do parágrafo 343 da Gaia Ciência Nietzsche evoca-o assim: "O maior acontecimento recente - a saber que "Deus" morreu, que a crença no Deus cristão caiu em descrédito - começa desde já a estender as suas primeiras sombras sobre a Europa" (3, 573). Que Deus é este que o insensato diz morto? Parágrafo 125: "Que são ainda estas igrejas, se não túmulos e mausoléus de Deus?" É o Deus venerado nas igrejas, o da fé cristã, que morreu. Mas afinal, que Deus morreu? Heidegger diz que as grandes metáforas que dizem esse facto - a seca do mar, o apagamento do horizonte, a terra que perde o seu heliotropismo natural para se tornar em astro errante - convêm perfeitamente ao Deus da metafísica ocidental, i.é., ao Ente Primeiro da onto-teologia (2). O Anticristo : "Aquilo que nos distingue não é o não reencontrar nenhum Deus, nem na história, nem na natureza, nem por trás da natureza, é o ressentir que aquilo que veneramos com o nome "Deus", não como "divino", mas como miserável, absurdo, como prejudicial, não apenas como um erro mas como um crime contra a vida" (6, 225). Quem são esses que vivem ainda das sombras de Deus? Mesmo continuando a dizer que este mundo é vontade de poder e nada mais, eterno retorno e nada mais, Nietzsche visa também aqueles que vivem na ilusão de poder dispensar a hipótese "Deus" continuando a manter os valores e as categorias fundamentais que têm a sua origem em Deus: ordem, beleza, forma, sentido, finalidade, etc. Um mundo sem "Deus" é uma ficção insustentável.

A frase: "Só um Deus ainda nos pode salvar" (Heidegger, 1966), não é evidentemente um extremo e religioso "recurso" a Deus. A palavra de Nietzsche segundo Heidegger "nomeia o destino de vinte séculos de História ocidental, significa que "o lugar vazio (de Deus) exige de certo modo ser de novo ocupado". Este vazio é o da "desvalorização" dos mais altos valores, de onde decorre o niilismo: a modernidade julgou preenchê-lo recriando outros valores e entulhando-o através da vontade de poder. É necessário ainda um "Deus": não o Deus-morto de Nietzsche nem aquele que está nos céus, mas "aquele" cuja ausência faz com que o homem, diante do mundo e de si mesmo, se coloque como aquele que impõe, domina, manipula e destrói da maneira mais bárbara ou segundo as técnicas mais refinadas. Podíamos chamar-lhe morada, sítio, dar-lhe um nome qualquer desde que indique a possibilidade para o homem de se tornar "o testemunho ardente do Ser", de ser Acolhimento, Palavra que se dá e Palavra que se recebe, e assim, talvez, salvar o Hoje da "raiva niilista".

"Só um Deus ainda nos pode salvar" Quem é o Deus último que nos pode salvar e que Heidegger anuncia como uma palavra testamentária? Não se trata do Deus-Princípio da metafísica, nem do Deus vivo da religião. Talvez se trate do Deus que na época da "viragem", Heidegger designa como "o Deus último" ( der letzte Gott ). Que Deus é esse, se não é o da metafísica nem da religião? Só o pode ser o dos poetas. No ver de Badiou, não é da ordem do luto, como o será a relação obscura com o Deus morto. Também não é da ordem da crítica, ou da defecção conceptual da totalidade, como o pode ser a relação filosófica ao Deus-Princípio. É uma relação nostálgica em sentido estrito que vê na melancolia as possibilidades dum reencantamento do mundo através do improvável regresso dos deuses (3). Este ateísmo radical é também o fim de qualquer promessa (4). A injunção aos poetas: "O imperativo do poema é hoje conquistar o seu próprio ateísmo, e portanto destruir do interior das potências da língua a fraseologia nostálgica, a postura da promessa, ou a destinação profética do Aberto. O poema não tem que ser o guardião melancólico da finitude, nem o recorte duma mística do silêncio, nem a ocupação dum improvável luto" (Ibidem : 21). Esperar um "deus a vir" como o sugerem Hölderlin e a tradição romântica, é idolatrar a ilusão. Idolatrar a ilusão, negar a morte será a função da "religião"? Ficamos com quê? O Infinito? Mas o infinito confronta-nos com o carácter perspectivista da existência, o infinito aterroriza (3, 480). O ateu rigoroso sabe que não pode voltar a rezar, nem haverá mais "Vingador" nem razão naquilo que lhe acontece. Insuportável. Em que acreditas, tu, ateu? "É necessário determinar de nova maneira o peso de todas as coisas" (3, 519). E que amas tu nos outros? A resposta de Nietzsche é esta: "As minhas esperanças". Como ler a crença das crenças que é o eterno retorno? Será esta uma réplica da doutrina paulina da ressurreição dos mortos, que é sempre a dos corpos? E a morte mesma que é vista então como uma festa da vontade?

 
Notas

(1) G. Vattimo, « Nihilisme et émancipation », in LV, nº 258, p. 7.

(2) Martin Heidegger, "Le mot de Nietzsche "Dieu est mort", p. 253-322.

(3) Alain Badiou, Court traité d'ontologie transitoire , Seuil, 1998, p. 19.

(4) Sobre a promessa vide Peter Sloterdijk, la mobilisation infinie, C. Bourgois, 2000.

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