JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

 

Deus na literatura
O Nome e as formas(3)

   
Posições .
 

Há posições, no interior da prática literária, em que Cristo é o “último deus” (Schelling), o “intenso” (M. G. Llansol), uma impostura (W. Burroughs), Deus é uma palavra vazia para Rui Nunes e os seus Rostos , e a sua estética da desfiguração (1). F. Arrabal (El cementerio de automoviles, 1957), Jorge Luis Borges ("Cristo en la cruz", Los conjurados , 1985), Virgílio Piñera ( Jesus , 1948), Miguel de Unamuno, Don Manuel bueno, m á rtir , 1931) merecem uma referência alta na cultura espanhola. Mas poderíamos também citar Pessoa, Pascoaes, José Régio, que a si próprio se define como místico (cap. I V da Confissão dum Homem Religioso) Jorge de Sena, Ruy Belo, com o seu “deserto de Deus” ( Boca Bilingue, Homem de Palavra(s) e o seu “caminho do niilismo” ( A Margem da Alegria ), Rui Cinatti, Armando Silva Carvalho, entre nós. Em Agustina Bessa-Luís, “sem teleologia de redenção, os homens permanecem Os Incuráveis (1956) de paixões e hábitos sem outro horizonte que o de A Muralha (1957)”, escreve Seabra Pereira numa síntese notável sobre a literatura portuguesa entre 1950/2000 (2). O peso do imaginário e do léxico judaico-cristão está todavia presente, in nuce, ou expliciticamente, tanto em Pedro Mexia, como em Manuel Alegre de Babilónia, como no visionarismo órfico de Herberto Hélder, como no paracletianismo heterodoxo de Natália Correia, como no misticismo de António Barahona da Fonseca do Rizoma, e dos Lugares de Lume , como no Deus Nu(lo) de Ramos Rosa, ou mesmo no “ateísmo católico” do “Prefácio” de Jorge de Sena à 2ª edição de Poesia I, em 1977. Na poesia de Sophia de Mello Breyner (3) a componente religiosa da sua obra é interpretada de diversas maneiras: “poeta católico, no sentido mais estrito da palavra” (Graça Moura) – o que parece indefensável, a menos que se entenda em sentido de “universal”, ou então “Um dos raros poetas pagãos do nosso tempo” (J. Vidal) – o que parece demasiado simples porque teremos de dizer a seguir que o deus da Bíblia está por vezes presente nesta obra, que a figura de Cristo atravessa alguns dos seus mais belos poemas ou ainda em que Sophia quis reconciliar Apolo o Cristo (4). Está lá a solidão, o medo, o eclipse do divino a partir de 1950, mas está lá também a esperança “A terra emergirá pura do mar/De lágrimas sem fim em que me invento”.

Há posições em que explicitamente Deus é a personagem principal, Adélia Prado, por exemplo. ”Deus é para ela a explicação não explicada que tudo harmoniza e justifica” (Ferreira Gullar). Daí esse traço de constante júbilo alimentado por um sensualismo sem barreiras nem distinções. Clarice Lispector estará mais perto de Job, mas são dela estas palavras: “Deus repleta o ser” (5). Há posições que oscilam muito e que nunca são de clara assunção do teológico. Rilke, que vê no progresso técnico o horror omnipotente do homem que se libertou de Deus: “Vê como a máquina”, lê-se em Os sonetos a Orfeu , “rola e se vinga e se mete de través no nosso caminho e nos enfraquece”, é também poeta de um Deus impessoal, ausente, metáfora das metáforas, um ruído sem referente. O mundo técnico da máquina e da indústria, a morte anónima do mundo moderno não participam na construção do divino. Cristo a seus olhos não passa de um homem entre os homens, impotente, ladrão de todas as energias (6). A sua religião, sentimental e especulativa, seria de facto nietzscheana e ateia. A sua religião que, segundo Kierkegaard poderia ter-lhe permitido ultrapassar a dialéctica da estética e da ética, é demasiado angélica para ser reconhecida como autêntica (7). Resta-lhe “o espaço interior do mundo (Weltinnenraum ), simultaneamente mundo e divino interiorizados pelo poeta e eu poético exteriorizado no mundo e o divino, espaço total, equilibrado, aberto, um espaço tão intacto como o interior duma rosa, o espaço angélico” (8). Rilke escreve: “A minha verdadeira tarefa é o mundo já não visto pelo homem, mas pelo Anjo”. A tarefa poética consiste “em transfigurar as coisas no invisível”. O Anjo das Elegias de Duíno será essa figura terrível e perturbadora de beleza supraterrestre que dá acesso a um mundo superior, que será o garante da invisibilidade. Escreve Rilke a Hulewicz: “o Anjo das Elegias é essa criatura na qual a transformação do visível em invisível que nos realizamos aparece já realizado”. Aqueles que não se sentem seguros no “mundo interpretado”, o espaço angélico, “tão intacto como uma rosa”, está lá para figurar essa eterna corrente “barroca”, que vai da vida à morte, esse fluxo incessante entre os “dois reinos” que percorre a metaforicidade poética (9). Se pensamos na mística religiosa cristã em sentido preciso e técnico, Rilke não é um místico. O Deus ou o Anjo que ele encara não é o Deus pessoal e histórico da Bíblia, incarnado em Jesus. A religião de Rilke, sentimental e especulativa, é de facto nietzscheana e ateia. A sua religião é demasiado angélica para ser reconhecida como autêntica. Maria Gabriela Llansol, que traduziu Frutos e Apontamentos de Rilke, escreve na introdução que “Os Anjos de Rilke reconheciam certamente a sua impotência face à estabilidade dos sentidos e das formas” (10). O Deus-Catedral do Livro de horas é um Deus inacabado, em pedaços, que o artista reúne em interlocução com ele. Diante deste Deus está o monge, pintor, poeta que se sente solidário dele, em interdependência com ele, de tal modo o sente: “Que farás tu, Deus, se morro/ Eu sou o teu vaso (e se me quebro)?”

Há outras posições. G. Agamben revela-nos um imenso poeta italiano deste século, Giorgio Caproni, que morreu a 22 de Janeiro de 1990. A tese de Caproni é uma espécie de plagianismo levado ao extremo: a Graça é um dom tão profundamente infundido na natureza humana que é sempre res amissa , inapropriável (11). Nem a noção de teologia negativa é aqui pertinente (12). Em Caproni a teologia poética (“pathothéologie”) da modernidade vai até às suas últimas consequências – ao seu colapso. Ora, esta ateologia poética nasce, segundo Agamben na alba do século dezanove pela mão de Hölderlin “Ele não tem necessidade de nenhuma arma, de nenhuma/ astúcia, enquanto a ausência de Deus o ajudar”. Aqui teria começado um desabar sonâmbulo do divino e do humano para uma zona incerta e sem sujeito, achatada sobre o transcendental. O próprio da ateologia poética, relativamente à teologia negativa, diz Agamben, é a coincidência singular do niilismo e da prática poética, através de que a poesia se torna o laboratório em que todas as figuras conhecidas são desarticuladas para dar lugar a novas criaturas para-humanas ou subdivinas: o semi-deus hörderlineano, a marioneta de Kleist, o Dionísio nitzscheano, o anjo e boneca de Rilke, até à ‘cabeça medusa' e ao ‘autómato' de Celan (13).

Jean-Luc Nancy mostra como, por exemplo, em Blanchot o nome de Deus não está simplemente ausente. Foge e regressa, é ou fechamento afastado depois evocado no seu próprio afastamento. “Blanchot, assurément, affirme un athéisme, mais ne l'affirme que pour mieux conduire vers la nécessité de congédier ensemble et dos à dos l'athéisme aussi bien que le théisme» (14). Blanchot associa de facto em L'Entretien infini o ateísmo à escrita. Qual o fito? Arrastar o ateísmo para o lado dum “absentheísme” do sentido, para lá de qualquer posição dum objecto de crença ou de descrença. “Le sens absent”. A escrita designa o movimento de exposição a essa fuga do sentido que retira ao “sentido” a significação para lhe dar o próprio sentido dessa fuga – um élan, uma abertura, uma exposição incansável que foge da fuga como foge da presença. Não estamos diante nem do niilismo, nem da idolatria dum significado. A única questão que resta é esta: o nome de Deus pronuncia-se. Deus é um nome sem conceito “à l'extrémité et à l'exténuation de la signification” escreve J.L. Nancy (15). Este nome não responde à questão do “que”, como o “ser” ou o “neutro”. Ao encontro do ateísmo e na escritura comparece o humanismo do grito o humanismo que abandona toda a idolatria do homem e toda a antropoteologia. “Il crie dans le désert”, escreve Blanchot, que tem manifestamente uma relação de fascínio com o Nada. A morte de que fala Blanchot não se confunde com a morte humana. O autor do «pleure sans larmes» faz dele irremediavelmente um niilista. Não há literatura sem uma experiência radical que recusa a subjectividade, que nos transporta mais para o rasgão do que para a trama das coisas. Esta experiência traz à cena o Nada, a cinza, o confronto com o abismo do vazio. Podemos, contudo, recusar identificar o poder revelador do Nada com “ a imensa passividade da morte”, como o diz Blanchot. Podemos recusar a necrofilia da literatura, podendo também trazer à luz a ressuscitação, o júbilo da existência.

 
Notas

(1) Rui Nunes, Rostos , Lisboa, Relógio D´Água, 2001. A Boca na cinza, Relógio D´Água, 2003.

(2) J. C. Seabra Pereira, “Problemática da fé e experiências cristãs na literatura portuguesa”, in A Igreja e a Cul tura contemporânea em Portugal 1950/2000, (coord.), Braga da Cruz e N. Correia Guedes, Univ. Católica Portuguesa, Lisboa, 2001.

(3) Malgré les ruines et la mort , trad. de Joaquim Vidal, Différence, 2000.

(4) Para Maria Gabriela Llansol « Dionísio e o Crucificado são os guardadores do mundo”, OVDP, p. 226.

(5) Clarice Lispector, Água V iva , 6ª edição, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980.

(6) Ver a peça em prosa: L'Apôtre , edição La Plêiade 27-32.

(7) Ver François Schanen, “La transcendance dans l'immanence”, in (dir.) Paul Plouvier, Poésie et M ystique, Paris, L'Harmattan, 1995, p. 91.

(8) Ibidem , p. 105.

(9) Christine Buci Glucksmann, La folie du voir , Paris, Galilée, 2002, p. 30.

(10) Rainer Maria Rilke, Frutos e Apontamentos, tradução de Maria Gabriela Llansol, Lisboa, Relógio D' Água, 1996, p. 8.

(11) Giorgio Agamben, op. cit ., p. 107.

(12) A tradição da teologia negativa em que se inscreve Mestre Eckhart e as relações subtis que ele mantém com os seus principais predecessores foram magistralmente expostos por Lossky. O mais adequado discurso sobre Deus é o silêncio. Veja-se a réplica de Jean-Luc Marion à objecção de Derrida segundo o qual (1) a teologia conhece apenas as duas figuras da predicação metafísica (afirmação, negação) sem terceira via; (2) inevitavelmente, a via negativa, para não cair no ateísmo, obriga os teólogos a positivá-la, de um modo que é ou vergonhoso ou honesto: (3) o recurso apenas retórico à eminência “sobreessencial” reforça a inscrição da questão de Deus no horizonte da essência; (4) a pretensa “teologia negativa” cai na alçada da desconstrução (De surcroît, puf, 2001, p. 179).

(13) Ibidem, p. 109.

(14) « Le nom de Dieu chez Blanchot», Dossié Blanchot, magazine littéraire, p. 66.

(15) J.L. Nancy Ibidem , p. 68.

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