NOMINA SUNT NUMINA
(UNL-DCC)

1. A experiência do sagrado é a de uma inquietude, estranheza, o tremendum fascinosum que encontramos na base de qualquer experiência religiosa. A religião confronta-nos com o "Absolutamente Outro". O terrível familiar e estranho. O que caracteriza o sagrado primitivo é que o sacrifício de uma vítima tem o poder para instaurar e restaurar a transcendência, ao mesmo tempo que recria a unanimidade entre os indivíduos.

2. R. Thom propõe que se veja o sagrado como o resultado duma compactificação ao infinito do eixo semântico definido pela oposição atractivo vs repulsivo. Diante do ser sagrado que o fascina, o sujeito, simultaneamente atraído e rejeitado por uma força de intensidade infinita, fica imobilizado. Assim o leitor do tetragrama será incapaz de o exprimir. Esta situação só se altera se este singular potencial fascinador se dilui. Só um fluxo que emane dessa forma transcendente e que atinge o sujeito poderá suscitar um contra-fluxo de resposta. Estabelece-se então uma estrutura de diálogo, provavelmente também de conflito (A "luta" com o Anjo").

3. É a genealogia dos afectos que permite entender a génese das grandes formas das religiões: politeísmo primitivo, teísmo popular, teísmo especulativo e religião natural.

4. Segundo P. Tillich, "um acto que realiza uma significação ou um objecto dotado de significação é sagrado, na medida em que é o suporte da significação incondicionada: é profano na medida em que não exprime a significação incondicionada" (Philosophie de la religion, Genève, Labor et Fides, 1971).

5. Já para René Girard é a violência que constitui o centro do sagrado - ambivalente, benéfico e maléfico - a transfiguração da violência humana tem uma função antropológica e social evidente. O sacrifício apazigua a sociedade contra a sua própria violência. Mas não dá conta da experiência primordial do sagrado. A experiência do sagrado religioso está ligada à experiência duma hierofania, à irrupção do divino na trama do mundo. O sagrado não religioso está ligado à experiência duma ontofania. Para os pagãos, o divino era o mundo como totalidade. O real enquanto epifania, irradiação do ser é não conhecível; por isso precisamos de exprimir este excesso de sentido numa linguagem simbólica.

6. O sagrado tem as suas derivas e as suas patologias sob formas tão diferentes como o fundamentalismo, a intolerância, a conversão forçada, a conquista pela espada ("Dieu le veut"). As ressacralizações são uma possibilidade sempre em aberto. "Mesmo se a instituição cristã foi pontualmente o instrumento ou a instigadora da caça às bruxas, o cristianismo é o seu verdadeiro destruidor, pois ele fez ver aos homens o arbitrário das escaladas persecutórias que desembocam na violência" (R. Girard, Quand ces choses commenceront, Arléa, 1994, p. 21) Do ponto de vista girardiano, operou-se uma verdadeira ressacralização da mensagem cristã, convertendo a cristandade medieval num sistema cultural fechado e persecutório (Le Bouc émissaire, Grasset, 1982, pp. 289-299). A explosão de loucura persecutória que se centrou nas feiticeiras na era moderna, ou o combate com a heresia, representa uma das resistências e tentativas de reactivação do mecanismo sacrificial já em decadência.

7. Das religiões primitivas até ao cristianismo pode-se considerar que se desenvolve uma anti-religião face a todas as outras. A crítica do sagrado violento e a progressiva dessacralização do mundo e do pensamento são obra a longo prazo da Revelação bíblica, na sua desmontagemn das causalidades mágicas e persecutórias (cf. José M. Dias Costa, O Desejo como História, tese de doutoramento defendida na Fac. de Filosofia de Braga, 2001, p. 311).

8. A história só dispõe de um critério, que é o critério de verdade (fenómeno visível e por isso objectivo). Não é a objectividade a verdade que reconhece a ciência?

9. O Budismo ensina que contemplar o Buda não significa olhá-lo exterior, objectivamente, mas reflectir e iluminar-se do princípio do seu próprio si. Olhar Deus exteriormente seria uma forma de magia. No Budismo, a essência do homem é errância. E a errância é a fonte do mal.

10. Porque aparece a exigência religiosa? Porque é que sofremos à medida que reflectimos no fundo de nós mesmos? Porque, responde Nishida Kitarô, "o nosso si é um ser absolutamente contraditório e que por outro lado a razão do nosso si é uma contradição em si" ("Logique du lieu et vision religieuse du monde", RPL, nº 1 1999, p. 108). Em termos budistas na expressão do Grande Veículo "porque Buda existe, os seres sensíveis existem e inversamente". O homem é salvo confiando-se unicamente ao Nome Sagrado de Buda Amida. A "iluminação" significa penetrar até às raízes do seu nada, a fonte dos seus pecados. "Estudar a via do Buda é estudar o si, e estudar o si é esquecê-lo".

11. O judeo-cristianismo teve uma enorme influência sobre a vertente utópica do nosso imaginário social grego-ocidental, expresso, por exemplo, no messianismo triunfante do milenarismo. Com as suas derivas também daquilo que significa a escatologia: o "ainda não". E. Bloch arruma assim as várias religiões: "O instaurador da religião dionisíaca funde-se em escuma face ao seu deus da natureza, o do mito astral estiola, e mesmo a grande auto-redenção que incarna Buda, cai, no fim, no acosmos do Nirvana. Pelo contrário, Moisés força o deus a segui-lo e faz dele a luz do êxodo dum povo; e Jesus comporta-se como tribuno humano que irrompe na transcendência e a transforma em utopia do Reino" (Princípio Esperança, 1402).

12. O princípio ascético está em todas as religiões. Em todas as religiões é necessário um esforço de negação de si ou de conversão do imperativo mimético, ou ainda na desmontagem da concepção cíclica do tempo, como o eterno retorno de Nietzsche.

13. Ninguém pode dizer a um outro: "eu sou o (teu) caminho, a (tua) verdade e a (tua) vida". A vida vem de Deus - ninguém nasce de si mesmo, ninguém nasce de pé; desde que começa a produzir-se a si mesmo, o sujeito torna-se uma mãe que dá ao mundo, não verdadeiros filhos, mas monstros de autonomia, seres de pé, sem mãe, obras, doutrinas, tábuas da lei; há em nós um instinto para a verdade, mas a verdade encontra-se intersubjectivamente; há um caminho a fazer, aberto, mas com (viver é viver com).

14. À experiência do sagrado é fundamental a esperança, que é o mais importante dos afectos de expectativa, a afecção fundamental que nos abre ao todo do ser, desvelando-nos o mais vasto dos horizontes possíveis. Como contra-afecto da angústia e do temor. O correlativo objectivo da esperança é um mundo ainda inacabado, processual.

15. A modernidade define-se como um projecto de imanentização radical das mediações, como desmagificação do mundo: perda da analogia, perda da comunicação do homem com o todo. O mundo moderno perdeu a unidade e o sentido que recebia do facto de ser lido como reflexo deste cosmos sagrado. Esta crise da visão religiosa do mundo vai de par com o processo histórico da diferenciação das instituições, antes de mais com o processo jurídico-político de emergência do Estado. A laicização, a separação progressiva das Igrejas e do Estado inscrevem no dispositivo sócio-institucional a perda do domínio das instituições religiosas sobre a sociedade. O campo religioso torna-se um campo institucional especializado, parte ele mesmo dum campo simbólico e dum campo cultural diferenciados.

16. O sagrado é uma forma de estar no mundo, fora do formal e do operatório. Nas sociedades modernas a morte do sagrado deve-se mais à monstruosidade fria dos gestores do que à violência crítica de uma qualquer razão. Não é o pensamento que mata o sagrado, é a ordem gestionária que extermina os segredos e as ambivalências das trocas humanas e das relações com o mundo. O sagrado e as ciências estão perto da violência, produzindo-a e contendo-a. Estará a ciência hoje sacrificial (a guerra é uma solução sacrificial que depende da ciência e da tecnologia), destinada a tornar-se numa nova ciência não-sacrificial? (M. Serres, “One God or a Trinity?”, Contagion - Journal of Violence and Culture, Vol. I, 1994, pp. 1-17).

17. O que caracteriza o sagrado primitivo é que o sacrifício de uma vítima tem o poder para instaurar e restaurar a transcendência. A unanimidade alucinada, cega, entre os indivíduos, já não assenta no sagrado. Ficam algumas questões por responder: o "inimigo" é a figura necessária para que a identidade se constitua? o acidente é necessário ao determinismo? o sagrado é sempre invenção da violência?

18. Passámos da solidariedade nas sociedades pré-modernas - tudo estava ligado organicamente ao insulamento, ao pavor da desvinculação e à tragédia das vinculações. Tudo passou a desligar-se - a praga do niilismo. A religião eclipsou-se? Onde está a força da tradição que contraria a ideia do eterno retorno e da irreversibilidade?

19. A ressacralização da mensagem é uma ameaça permanente: da cristandade medieval aos fundamentalismos mais recentes. Como eliminar o sagrado? Como pode tornar-se o Cristianismo atraente enquanto predominar nele uma concepção romana de Deus (S. Weil)?

20. Pensar a religião hoje implica necessariamente analisar o fenómeno designado por "regresso do religioso", fenómeno que assume a maioria das vezes a forma catastrófica do terror, do fanatismo, do "redobro de promessa reafirmador"[1]. A religião está associada à violência no passado e continua a estar ligada à violência no presente. O terrorismo de inspiração religiosa surge misturado com a violência perpetrada pelos fundamentalismos mais diversos, passando pelo terror exercido sobre as populações ou por pressões políticas e morais por parte de minorias ditas "morais". Daí o amálgama: as religiões são intolerantes, obscurantistas, violentas.

21. No corpo daquilo a que se chama as "grandes religiões mundiais" desenvolvem-se sintomas inquietantes e o próprio sentimento religioso desenvolveu modalidades de expressão aberrantes. Como perguntar, como P. Valadier: "Haverá algum ponto comum entre fundamentalismos e 'comunidades' que se partilham a atenção e mobilizam a opinião que comprometa duravelmente a causa da religião?"

22. Vivemos hoje uma participação mítica ou mágica com a natureza e com as Artes, uma fusão no todo natural e social como expressão desse trágico difuso de que Dionísio é o emblema. Vivemos num mundo trágico e a vida como um bem colectivo. Enquanto os políticos se preocupam com o território, a segurança é o seu fantasma mais obsidiante, os percursos iniciáticos são todos os lugares fronteiras em que se elabora uma cultura alternativa, neo-pagã, a meu ver. Fora do Templum, o terreiro permite comunicar com o estranho em nós (o Numinosus), não em função dum ideal longínquo, de uma utopia, mas em referência a valores vividos, na intimidade das "ocasiões", última figura da imanência e da vida que dispensa totalmente o conceito de tempo. A sensibilidade trágica vive no dia a dia, na dimensão duma divinização da existência colectiva, obedecendo à incitação estóica de "viver a fundo a piscadela", duma fusão natural e matricial correlativa do trágico. Quem pode ainda falar de Revolução?


[1] Derrida, Ibidem, p. 250.

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José Augusto Mourão é dominicano, semiólogo, professor na Universidade Nova de Lisboa (DCC)