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JOSÉ AUGUSTO
MOURÃO
Natal 2004
 

 

 O Natal responde ao longo pedido que o livro de Isaías descreve: “Eles procuram-me dia após dia, desejam conhecer a conduta que me agrada...Informam-se junto a mim sobre as exigências da justiça, desejam a presença de Deus” (IS. 58, 2). O Natal é o desejo tornado presença.

No começo, o Logos ou o Verbo. Depois a vida, a luz e os homens. Entre a vida e os homens, a luz e o lugar de João: ele veio para testemunhar da luz. Não temos em João uma definição orgânica da vida, nem do conjunto humano consistente como tal. Há uma linha traçada por um gesto único, um vector de alta energia que atravessa o campo em que aparecem os homens, e que se afirma como luz. Imanando directamente do Verbo e da vida que está no Verbo essa irradiação torna-se luz num ponto da sua trajectória, iluminando e redefinindo o que são os homens, pondo em questão o que deles imaginamos. Podemos dizer como Lévinas que a “o homem nunca foi criado, nunca veio ao mundo. Veio na Vida. É nisso que ele é semelhante a Deus, feito do mesmo estofo que Ele, que toda a vida e que todo o vivente” Quando o Verbo vai encarnar para se fazer homem, não é no mundo que veio, mas numa carne, “nos seus”.

A luz tem efeitos de divisão e de suspensão no campo que dizermos humano. Entre a luz que brilha e um determinado obstáculo houve um encontro e uma ligação problemática. A luz exige uma “testemunha”, no sentido em que é preciso um indicador de presença e um índice da transformação. O Logos é a Palavra. Mas falta a esta representação do Logos a dimensão energética. É a dimensão do Acto. A esta energia se ligam a Vida e a Luz. Nós vivemos tocados pela luz e pela vida que vem do Logos.

Aqui começa uma nova época nunca dita nem em língua grega nem em língua judaica: uma teologia de Deus feito homem, encarnado, e uma ontologia do corpo como “corpo glorioso”. O cristianismo começa com o anúncio de que “todo o mundo será salvo”: catolicismo é uma palavra que aparece pela primeira vez em Inácio de Antioquia para dizer esta inteireza do humano que faz ir pelos aresr todas as restrições anteriores e restritivas do “mundo”.

A crise da imagem foi primeiro uma crise da linguagem que começou desde a fundação do cristianismo. Uma palavra abala todos os hábitos do pensamento especulativo. É uma palavra habitada pela imagem no sentido em que João diz que o verbo “veio habitar no meio de nós”. A palavra coloca um problema de habitação. O oikos da imagem é o mundo, esse é o sentido da encarnação. Não é por acaso que os iconoclastas sejam tratados de onotomatómacos, batalhadores de palavras e de iconómacos, isto é inimigos da economia. Como garantir pela palavra a invisibilidade que garante a redenção do visível?

Vem de longe a audácia retórica feita à secularização do Natal. Para H. Heine, Shakespeare, a cujos dramas ele queria chamar o “evangelho profano”, nasceu “nas Belém do Norte, que se chamava Statford-upon-Avon”. Diz também que “Zwiebrücken foi a Belém em que a jovem liberdade, o Messias, estava no seu berço e choramingava resgatando o mundo”. Quase na mesma época, Goethe escrevia no seu diário, lendo Galileu, que Newton nascera no ano em que morreu Galileu e acrescentava: “Aqui reside a festa de Natal da nossa época moderna”. Um pouco antes, Goethe descreve, num artigo de Zelter sobre A Criação de Haydn, o nascimento do compositor da maneira seguinte: “Enfim, aparece, não anunciado, na fronteira entre duas nações, no presépio de um ateliê de carpinteiro, o novo infante pródigo nascido pobre na terra, que deve libertar a nossa arte da tutela e de formas estrangeiras”.

Nicolau de Cusa apresenta a encarnação como consequência intrínseca à criação, deduzindo a predestinação eterna do Filho de Deus a tornar-se homem (de que Duns Scot falara). Num sermão de Natal escreve: “Deus criou todas as coisas segundo a sua própria vontade e de modo que o universo só atinja a sua plena grandeza e perfeição em relação a si. Mas o universo não pôde chegar à unidade com ele porque não existe proporção do finito com o infinito. É por isso que toda a coisa tem a sua finalidade em Deus através de Cristo. Porque se deus não tivesse adoptado a natureza humana que contém nela as outras naturezas como um intermediário, o conjunto do universo seria inacabado, e nem seria sequer real”. A encarnação não se contenta com cumprir a criação, é a sua realidade decidida desde a eternidade que a torna possível. Nesta perspectiva, a cristologia não tem só sentido salvador na redenção, mas na realização da possibilidade de essência do mundo e do homem. Por isso a encarnação adquire o sentido de um acontecimento universal, cósmico. Não é o pecado que obriga deus a sacrificar o seu Filho. Aquilo que levou a esta consequência é a criação não o pecado, são as falhas da natureza, não as falhas do homem.

O caminho espiritual consiste em nascer, nascer sempre, encarnar-se completamente, confundir-se com a vida até que o mundo se torne a palpitação da sua própria existência. O mais difícil é descer, aceitar a nossa encarnação. Fugimos sempre do nosso nascimento. Fica-nos o nosso campo de batalha, o livre o campo para o sofrimento. Só podemos santificar o mundo se o habitamos, até nos menores recantos do corpo, da matéria e do sofrimento. Para a grande obra de transmutação nada é vil ou baixo. A encarnação significa que somos divinos desde a origem até à ressurreição.

Que mundo responde ao nosso sonho de homem nesta festa? Algo em nós nos diz que o deus que vem estava já no horizonte das nossas esperas. Nesta noite, Deus fez-se homem na pessoa duma criança, a mais, como nas ruas de São Paulo. Não esta criança a imagem de um Deus que será sempre inoportuno, excedentário? Aceitai a fragilidade do não poder.

O ícone não é um ídolo porque não é uma coisa animada pela presença de um deus, nem uma coisa inanimada, um fetiche. Deus não se esconde no ícone, mostra-se, Deus não se vê no ícone, deserta-o e cava-o como figura do desejo que quer inspirar. Que a criança nos ensine a reconhecer em cada um a imagem de Deus e a encontrar uns nos outros a mesmo respeito com que os cristãos do Oriente, à entrada do santuário, beijam e tocam um ícone, como para retirar a poeira e fazer aparecer em todo o seu brilho a pureza do seu fundo dourado. No ícone do rosto está o “oceano interior” do olhar, a “chama das coisas”. Alegra-vos, pois! Enquanto no seio da noite a luz se entretece, ele torna-se a imagem de quanto o homem espera: Jesus, como um rosto de homem modelado à imagem do Pai, é o filho de Deus, Primogénito de toda a criatura. Que por causa disso o mundo inteiro se torne Eucaristia!

 
 
 
Professor na Universidade Nova de Lisboa, co-director do TriploV, presidente do ISTA (Instituto São Tomás de Aquino), José Augusto pertence à Ordem dos Pregadores (Dominicanos).