MORRER E RESSUSCITAR
(2 Mac, 7, 1-2. 9-14; Lc 20,27-38)

1. A acreditar nos exegetas, as consciências judaicas e depois cristãs, fizeram um certo trajecto que, partindo dum projecto nacional de sobrevivência, deu num projecto pessoal de ressurreição. O cristianismo substituíu a ressurreição de Cristo num esquema culturalmente disponível que era o da sobrevivência. É certo que o judaismo tardio, lido pelos cristãos, tinha personalizado a ideia de ressurreição, que era um tema próprio ao além da catástrofe que foi o exílio. Ruptura do exílio e da destruição, depois reconstrução. O texto de Ezequiel era uma profecia nacional e tornou-se uma profecia da ressurreição pessoal.

2. A única sobrevivência, no plano empírico e histórico, é a vida dos sobreviventes. Este tema permite de facto não deixar o horizonte da vida. Que faço dos meus mortos na minha memória? É um problema de quem vive a respeito daqueles que já não vivem connosco. Projectando-me no outro que me sobreviverá, amigos e descendentes, participo antecipadamente ao dever de memória, como se no futuro anteri eu fosse sobrevivente da minha morte. Mas a cultura do "desapego" implica colocar entre parêntesis o cuidado de ressurreição pessoal. A forma "imaginária" do cuidado parece dever ser abandonada, i.é., a projecção de si no além da morte em termos de sobrevivência. A sobrevivência é uma representação prisioneira do tempo empírico, como um "depois" que pertence ao mesmo tempo da vida.

3. Não tenho que tratar da morte de amanhã, enquanto estou em vida. O morrer tem de ser ainda um acto de vida. O morrer tem de ser interno à vida. Ao fim e ao cabo a vida é feita de abandonos e renúncias. A acusação de Nietzsche não tem que nos atingir: a cristianismo não é uma cultura do sofrimento nem é animado pelo desprezo e a calúnia da vida. Tenho de incorporar ao trabalho de luto a certeza que a alegria é ainda possível quando se abandona tudo.

4. “As provas fatigam a verdade”, escreveu Braque. É verdade. Como se pode provar a ressurreição? O crente pode referir a sua liberdade diante do mal à confissão de fé no Cristo ressuscitado; mas não pode adiantar provas. A atestação da ressurreição pelos primeiros cristãos provem da segurança dada pelo Espírito que nem o mal nem a morte são fatalidades, porque o amor de Deus, revelado neste homem que fez o bem, é mais forte do que elas. A cruz e a ressurreição são a mesma coisa: é o centurião que reconhece no crucificado o Filho de Deus, completando assim o grito de Jesus: "Meu Deus, porque me abandonaste?" É na qualidade da morte do Justo que o esboço do sentido da ressurreição. A "elevação" de Cristo começa na cruz, diz João. É preciso compreender a ressurreição como ressurreição na comunidade cristã, que se torna o corpo de Cristo vivo. A ressurreição consistiria em ter um corpo diferente do corpo físico, quer dizer um corpo histórico.

5. A fé na ressurreição existia no judaísmo tardio, nos séculos que precedem imediatamente Jesus, e o mais belo exemplo encontra-se no segundo livro dos Macabeus (escrito por volta do ano 100 antes de Cristo e chamado o “livro dos mártires de Israel), com a história dos “sete irmãos mártires” e da sua mãe (cap. 7). Eles aceitam o martírio porque acreditam numa ressurreição dos mortos. Mas é uma ideia que está longe de ser aceite por toda a gente. Tem-se mesmo a impressão que os discípulos de Jesus estavam bastante afastados desta esperança. Os saduceus recusam explicitamente esta ideia, como se vê no texto de Lucas que ouvimos ler.

6. Jesus acreditava na ressurreição dos mortos. Ele teve o pressentimento da sua morte e evoca a sua ressurreição por Deus. Fala do grão de trigo que deve morrer para produzir fruto, o que nos coloca diante da consciência que ele tinha de si mesmo antes da morte. Que sentido tem esta morte? A ressurreição era em si mesma uma passagem através da morte e obrigava a procurar as razões desta morte. O amor de Deus pelos homens parecerá mais claro na passagem pela morte do que na glória da ressurreição (e da vitória). Mas as duas estão ligadas: a ressurreição é entendida como a abertura das portas do céu para todo o homem, logo como uma manifestação do poder do amor, “forte como a morte”. Por outro lado há o silêncio de Deus, a impotência de Deus diante da morte de Jesus. Ele não intervém. Este silêncio de Deus torna-se uma nova revelação: a de um novo rosto de Deus, que não nos salva mergulhando-nos no seu poder, mas manifestando um amor incondicional por nós. O cristianismo não recebe a revelação de Deus no triunfo de Deus, mas na fraqueza da morte de Jesus que nos liberta antes de mais do medo de Deus, como as religiões o apresentam. É este medo que destrói a liberdade do homem criado à imagem de Deus, que gera as manipulações idolátricas do divino, que leva por mimetismo à vontade de poder e de dominação do próximo. A cruz é a chegada da liberdade do homem face a Deus. Abdicando do seu poder, Deus revela que é amor e que é o amor que salva da morte.

7. Acautelai-vos do fermento dos fariseus e dos saduceus” (Mt 16, 6). Porquê desconfiar das histórias que conta o saduceu/fariseu? Estes personagens só parecem conhecer um tipo de lógica – espacializante e binarizante – a lógica do terceiro excluído (polémico, contratual). O saduceu advoga uma concepção belicista, hierárquica, classista, da vida. É o homem da consciência clara, o empirista céptico que recusa o milagre de haver anjos e o milagre da ressurreição. Ele precede o liberal moderno, indiferente, para quem as manchas da pobreza são ficções angélicas, quer dizer, inexistentes. Mas a vida põe em causa as oposições binárias – o hibridismo, o contraste, a contradição só estão “presentes” numa experiência espacializante rarificada de qualquer temporalidade. Nenhuma pacificação duma polémica prévia é necessária para que haja fusão: a comunhão dos amantes é a melhor prova disso. Será tudo conflito, contratual ou negociável, como o fariseu a si mesmo se prescreve? O saduceu/fariseu hipostasia a ideia de origem/diferença: Deus e o homem estão separados por um abismo de transcendência e de incomunicabilidade. Acautelar-se deles porque são incapazes de pensar a ideia de origem/dependência, a ideia de fusão originária ou de começo, o Amor do amor.

8. Que dizem os saduceus e os fariseus do nosso tempo sobre o homem ou a vida do homem sobre a terra, para que tenhamos de resistir à sua doutrina? É evidente que a tecnologia funciona como ersatz da teologia. O facto capital do século XX é a aparição da noção de possibilidade ilimitada. O nosso século responde à morte de Deus através da técnica. Se a morte não pode ser salva pela redenção, tem de ser abolida tecnologicamente. O mundo antigo tinha Deus ao centro. Esvaziado esse lugar, surge o nada, mas o centro não desaparece, é um abismo que inexplicavelmente atrai. Se já não há salvação, venha o desastre absoluto – é essa a moral do Crash de Ballard. Há a tecnologia e com ela a natureza espectral de tudo. O que chegou ao fim foi a sensibilidade. O fetichismo e o niilismo apropriaram-se de tudo. O futuro foi devorado por um presente devorante para além do bem e do mal.

9. Há entre nós um espaço de realidade que ignoramos e de que nada podemos dizer senão que existe e nos dispõe em profundidade de modo que quando vamos a Ele, a questão do encontro ultrapassa o simples facto de o ver. À nossa profundidade responde a sua profundidade. Não quer dizer que o que está em causa esteja votado à ignorância ou ao anonimato – isso surgirá no dia último, aquando da ressurreição. Entre estes dois campos, actualmente disjuntos, o da origem, disposto pela mão do Pai e o da ressurreição, proposto à guarda do Filho, situa-se o lugar de encontro em que um personagem singular se apresenta ao acto singular do crer: creio na ressurreição dos mortos. Há uma fronteira no interior de nós – entre o que nos é dado e o que em nós acredita. Do que nos é dado não decidimos; do crer, devemos decidir.

10. Recusar a ressurreição de Cristo é resignar-se a acabar. A ressurreição de Jesus é de certo modo a eternidade que entra no tempo, ou o tempo que acede à dimensão da eternidade. A vida (eterna) está em nós e a comunhão nas nossas vidas (de filhos), nas nossas experiências, nos nossos amores, se aceitamos viver, sentir, amar, sob o signo do jardineiro que anuncia a Páscoa.

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José Augusto Mourão é dominicano, semiólogo, professor na Universidade Nova de Lisboa (DCC)