HIBRIDISMO E SEMIÓTICA:
OS QUASI-OBJECTOS
Resumo
Abordam-se aqui aquilo a que, na esteira de Michel Serres, Bruno Latour deu o nome de "quasi-objectos", essas entidades indeterminadas, híbridas, metade objecto metade sujeito que romperam com a separação que a modernidade instaurava entre Natura vs Sociedade. Os anjos ontem, como figura pré-moderna da metamorfose, os "anjos biónicos", mistura da biologia e da técnica, ou os ciborg hoje, são figuras/conceitos inquietantes porque de certa maneira escapam ao controle daquilo que vive sob a alçada do poder ou da matéria. Estas duas figuras inscrevem-se na "semiotic turn" como "seres" que gozam de um estatuto misto de entidades ao mesmo tempo naturais e culturais, ao mesmo tempo sujeitos e objectos, não podendo ser definidos nem como simples "objectos" nem como simples "sujeitos", tanto o seu "estado" é a permanente metamorfose. O "ciborg" é talvez o mais óbvio exemplo contemporâneo dessas perenes misturas de humanos e não - humanos. A imbricação do ser humano com a tecnologia electrónica produziu uma identidade nova, identidade a que Scott Bukatman chama "terminal identity", uma nova "hard-wired subjectivity", em que o corpo é máquina. Como nomear essa mistura hoje ainda sem nome, mas tão frequente e espalhado, de objecto em si inerte e morto por um lado e de sujeito, vivo, animado, luminoso, transparente?
Abstract
We discuss here what Bruno Latour, following Michel Serres, called "quasi-objects" those indeterminate, hybrid entities, half object, half subject which broke with the separation that modernity had introduced between Nature and Society. Yesterday, angels, as a pre - modern figure of metamorphosis, today, "bionic angels" a mixture of biology and technique, or cyborg, are disturbing figures/concepts because in a way they escape from the control of the umbrella of power or matter. These two figures inscribe themselves in the "semiotic turn", "beings" which enjoy the mixed status of entities which are at the same time natural and cultural, subject and object, which cannot be defined neither as simple objects or as simple subjects, since their status is in constant metamorphosis. The cyborg is perhaps the most obvious contemporary example of this perennial mixture of human and non-human. The imbrication with electronic technology has produced, a new identity which Scott Bukatman calls "terminal identity" a new "hard-wired subjectivity" in which the body is a machine. What are we call this as yet nameless though so widely usede mixture of object, in itself inert and dead on the one hand, and of subject, alive, animated, luminous, transparent, on the other?
"Street boys of the green with cruel idiot smiles and translucent amber flesh, aromatic jasmine excrement, pubic hairs that cut needles of pleasure - serving insect pleasures of the spine - alternate terminal flesh when the egg cracks." William Burroughs
"Un homme peut habiter cette place mais aussi bien un objet - ,quand le roi des grenouilles se transforme en poutre - que j'ai appelé autrefois un quasi-objet. ...Cent quasi - objets circulent dans les collectivités, comme des furets, donnat naissance à l'échange: balle, argent, serments, esclaves, femmes, nous voilà revenus à des sujets, vainqueurs ou victimes." Michel Serres
"Quelle sottise c'était" de rejeter le fétiche dans les ténèbres de l'illusion manipulatrice, mais quelle sottise plus grande encore ce serait de rejeter le beau médicament moderne dans les tènébres de la seule raison objective." Bruno Latour
Grande parte do Leviathan de Hobbes ocupa-se da exegese do Antigo e do Novo Testamento. Aí se diz que um dos perigos maiores para a paz civil vem da crença nos corpos imateriais como os espíritos, os fantasmas ou as almas a que as pessoas apelam contra o julgamento do poder civil. Antígona, ao evocar a superioridade da piedade sobre a "razão de Estado" de Creonte, é um perigo para a cidade; os igualitários, os Levellers e os Diggers são-no ainda mais, ao invocarem os poderes activos da matéria e a livre interpretação da Bíblia. Quer dizer, uma matéria inerte e mecânica é tão essencial para a paz civil como uma interpretação puramente simbólica da Bíblia. Nos dois casos, é necessário evitar que possam invocar uma Entidade superior - a Natureza ou Deus - que o soberano não controlaria plenamente . Exorcizar a transcendência do domínio político ou científico era um programa comum a Hobbes e a Boyle. Já então, ou era o Estado - reduzido ao papel de Actor - ou o laboratório - um não-humano - que arbitravam quer sobre a "coisa pública" quer sobre matters of fact.
Porém as leis universais das coisas e os direitos imprescritíveis dos sujeitos, que eram as garantias constitucionais dos modernos, entraram definitivamente em colapso. A natureza dos processos reguladores societais modificou-se. Como nota João Caraça: "Com a emergência de novos sectores na indústria e nos serviços, baseados em modernas tecnologias da informação, e com o peso crescente do investimento imaterial ou intangível na economia (I&D), software, educação e formação, marketing, design) torna-se claro que a própria natureza dos processos reguladores societais se modificou, e profundamente" .
Cada vez ignoramos mais o que seja uma coisa. Nomes como natureza, sociedade, fantasma, mal os pronunciamos, logo caem na suspeita, logo os achamos mal ditos. "E, no entanto", escreve Filomena Molder, "as nossas palavras (...) procuram de cada vez a coisa a que se referem" . Os espectros pertencem ao domínio do visível invisível: são a visibilidade de um corpo sem carne. A fotografia, que é a fixação da aparência, começou por ser pensada como emanação do referente. Mas é também o lugar por excelência de multiplicação dos espectros. Baudelaire considera-a um duplo maléfico. Se nela o narcisismo medra, também é nela que o medo da instabilidade do sujeito mais cresce. Passa-se muito de semelhante hoje com a imagem virtual. Com efeito, a imagem virtual não tem original nem modelo exterior de real, a imagem desertou o real e passou-se completamente para o lado do simulacro, da similitude, da simultaneidade e da dissimulação. "Desapareceu o divino parentesco da visão com a luz, que implicava a aceitação do que não pode ser visto. A reificação da imagem pelo ecrã tornou quase impossível imaginar, enquanto distância nunca preenchida em relação ao não-visto". Ficou o fantasma, que é uma figura da sombra - manifestação da materialidade e da opacidade dos corpos em interacção com a luz que os torna visíveis. Mas precisamente o que falta ao fantasma que é uma figura iterativa, obsessiva, do género dos quasi-objectos, é a aparição, a carne. É uma "coisa" que não é coisa, uma percepção, uma imaginação. Pressente-se, imagina-se em toda a parte, teme-se como o objecto mágico, como o mutante, o fetiche. Como se fala num amputado de membro fantasma. O objecto fantasma define um além de uma presença mundana, uma excrescência que pode remeter para outros mundos. Paradoxalmente, ça parle (há barulhos) e isso que "quase" se ouve é ao mesmo tempo inominável. O modo de presentificação do fantasma está muito próximo da ordem do qualisigno: é uma impressão vaga, icónica, remática. Não é uma substância, mas pode ser constante. É uma instância, a condição de possibilidade da diferença. Em último caso, o fantasma vive dos seus crentes e do seu poder de sedução . Pode dizer-se do fantasma, o que se diz relação ao fetichismo: "alguma coisa que em si própria não é nada mais do que o ecrã vazio no qual projectamos, erroneamente, as nossas fantasias, o nosso labor, as nossas esperanças e paixões". O anti-fetichismo não é tanto acerca das qualidades ou do estatuto do objecto e da sua relação com ele, mas mais um modo de argumento: "é sempre uma acusação. Acusa-se uma pessoa ou algumas pessoas de se deixarem levar - ou, pior ainda, de manipular gente crédula - por alguém que tem a certeza de escapara a essa ilusão e querer libertar os outros também: ou da crença ingénua, ou de serem manipulativos. Mas o antifetichismo é obviamente uma acusação, não é uma descrição do que acontece aos que acreditam ou são manipulados" . Em vez de fetiche, Latour propõe que se fale de factish, um quasi-objecto que tem de ser fabricado e inventado. O factish vem demonstrar a associação entre humanos e não humanos e vem recusar a oposição desastrosa entre sujeito e objecto.
O Império do Meio
Uma casa assombrada exorciza-se, evita-se. Não assim a múltipla e heterogénea ontologia de humanos e não humanos que está a emergir, ligando as crenças e as práticas, na fronteira irresolúvel que alia o tremendum e o fascinosum e que define o sagrado que Rudolfo Otto designava . Slavoj Zizek adverte-nos para o seguinte: "As funções capitais como a Coisa irrepresentável, apresentam apenas nos seus efeitos, em contraste com um objcto material particular que miraculosamente 'cobra vida', começa a mexer-se, como se ficasse dotado de um espírito invisível" . O sonho do positivismo foi o de descobrir uma realidade sem parêntesis: um reino de puros dados e de factos, as manchas vermelhas "ali", as dores vivas "aqui". Este reino - chamado "Ciência" - dava-nos a ver a realidade. Outros reinos - a arte, a moral, a religião, a metafísica e o sentido comum - davam-nos simplesmente interpretações. Havia os factos, de um lado, e os valores, do outro. Muito tempo passou até se reconhecer que afinal a ciência é um problema hermenêutico. Que a ciência é interpretação. O próprio Wittgenstein o reconhece, quando fala da mecânica newtoniana: "Assim, ela nada diz sobre o mundo, excepto que ele se deixa descrever, como é de facto o caso" . "O "facto" não significa um "real-ali-agora" sem nenhuma interpretação, mas uma possibilidade verificada; o reconhecimento dos dados carreiam teoria e toda a investigação é interessada. Não há dúvida que o efeito mais visível do "linguistic turn" foi o de ter obrigado quer o romantismo quer o positivismo a colocar entre aspas a palavra "realidade". A realidade é aquilo a que chamamos a nossa melhor interpretação. A realidade já não é algo dado, os factos brutos não dizem (não são nada); a realidade é - o enquanto expressão mediada, interpretação, racionalização; virtualizada, sujeita a múltiplas possibilidades dos processos mediados da expressão. Não está nem aqui nem ali: é constituída pela interacção entre um texto, seja um livro ou o mundo, e um intérprete que questiona. Depois do abalo que representou o "linguistic turn", um outro abalo se anuncia, o "semiotic turn". A "semiotic turn" depara-se-nos como uma outra estratégia para cuidar do "meio" que separa os dois pólos que são o sujeito e o objecto. É no interior desta "perturbação" que se situa o trabalho de B. Latour e, entre outros, de Katherine Hayles. Entremos, pois nesse ambiente, híbrido, metamórfico, em que sobressaem essas criaturas estranhas. que são os anjos biónicos e os ciborgs.
Bruno Latour (1988) aplica na sua ideia de quasi-objectos ao domínio social. As nossas tecnologias não nos são estranhas, não estão radicalmente separadas de nós. São objectos simultaneamente naturais e sociais. São os nossos "lieutenants". Na esteira de Michel Serres, Latour chama quasi-objectos esses híbridos "que não ocupam nem a posição de objectos prevista para eles na Constituição, nem a de sujeitos, e que é impossível entalar na posição mediana que faria deles uma simples mistura de coisa natural e de símbolo social" (Latour, 1997: 73). De facto, Michel Serres descreve como as relações humanas emergem da circulação de quasi-objectos. A socialidade inscreve-se na esteira das coisas no modo como elas passam entre humanos: "La société, la collectivité, ivres de bruit, comprennent-elles objet, sujet ou dieu, transcendants par rapport à elles, mais qu'elles disent sans cesse, bruyantes, produire d'elles-même" ? É isso que torna o destino humano poderosamente ligado ao destino do objecto, um destino que põe em jogo o apelo de Serres para um contrato natural. Há, contudo, uma segunda parte no argumento de Serres: as tecnologias que suportam a comunicação generalizada não é que propaguem mais rapidamente a circulação de objectos, mas antes aumentam a circulação dos sujeitos e dos seus avatares. Partes de nós circulam à volta de redes globais. Deveríamos por isso falar de como a circulação de quasi-objectos cria aquilo que habitualmente reconhecemos como socialidade. Os quasi-objectos e os quasi-sujeitos estão presentes nas novas tecnologias. De certo modo, a crescente rapidez com que as novas versões e "upgrades" de sofware são introduzidas através de sítios regionais de uma organização conduzem à produção de diferenciais de poder. De certo modo, os objectos tecem as relações. Num outro sentido, o uso de "e-mail" como meio principal de transportar comunicações conduz a estratégias inteiramente diferentes para a organização e manutenção de relações de mútua responsabilidade. Neste sentido, os quasi-sujeitos são enviados a manter as coisas em conjunto. As tensões entre estes dois movimentos é por demais visível na relação da "sociedade virtual" em que entramos. Para Serres como para Latour o ser humano é o voo de Hermes, a incessante passagem de um nível a outro, a momentânea transcendência do caos através de uma auto-sustentada espiral da transmissão: "J'appele délégation cette transcendance sans contraire. L'énonciation, ou la délégation ou l'envoie de message ou de messager permet de rester en présence, c'est-à-dire d'exister (...) Nous partons du vinculum lui-même, du passage et de la relation, n'acceptant comme point de départ aucun être qui ne sorte de cette relation à la fois collective, réelle et discursive (...) Le monde du sens, celui de la traduction, de la substitution, de la délégation, de la passe" .
Metamorfismos: anjos e ciborgs
O discurso tornou-se um mediador independente tanto da natureza como da sociedade. O Império dos Signos substitui o Império do Meio. O princípio da imanência passou a estar na base das ciências da linguagem e decorre da autonomia da linguagem. Por via deste princípio, o sentido autonomiza-se. Doravante, tudo o que significa obedece a leis internas próprias, independentes, em parte, pelo menos, dos dados exteriores. À "referência" sucede a "ilusão referencial" (R. Barthes) e o simulacro do real (Courtès, 1991: 55). Os objectos estão a modificar-se profundamente. Tornou-se evidente que a linguagem não é um puro signo, e que nem tudo é produto da linguagem. Depois da separação total (as coisas em si versus o sujeito transcendental), depois das aventuras da mediação, depois dos equívocos da incomensurabilidade entre os dois pólos, tudo está a ser agora objectalizado pela imagem.
Anjos biónicos
Proponho que se vejam os "anjos" e os "ciborgs" na perspectiva de Bruno Latour e Madaleine Akrich que é a de uma "semiotic of human and non human assemblies" . Integra-se nesta perspectiva Dona Haraway, muito receptiva à descrição que faz Latour dos não-humanos em ternos de híbridos da natureza/cultura e Katherine Hayles, que fala de "material/semiotic actors", muito sensível de resto à ideia de "constrained constructivism" . Os anjos ontem, como figura pré-moderna da metamorfose, os "anjos biónicos", mistura da biologia e da técnica, ou os ciborg hoje, são figuras/conceitos inquietantes porque de certa maneira escapam ao controle daquilo que vive sob a alçada do poder ou da matéria. Estas duas figuras inscrevem-se na "semiotic turn" como "seres" que gozam de um estatuto misto de entidades ao mesmo tempo naturais e culturais, ao mesmo tempo sujeitos e objectos, não podendo ser definidos nem como simples "objectos" nem como simples "sujeitos", tanto o seu "estado" é a permanente metamorfose. Tratemos, pois, dos anjos, antes de mais e a seguir daquilo que deles herdaram os anjos biónicos.
Anjos
Sabe-se que lavrava um desacordo considerável entre os autores medievais e patrísticos acerca da "imaterialidade" dos anjos. Agostinho e Orígenes especularam acerca da possibilidade dos corpos angélicos, seres compostos de matéria, embora de uma matéria mais "subtlil". Duns Scotus aceitou a doutrina recebida da incorporeidade angélica, mas desafiou a imaginação dos seus leitores teorizando que os anjos deviam ter uma espécie de matéria "incorpórea", e em consonância com esta teoria, Duns Scotus pensava que os anjos deviam de certo modo raciocinar discursivamente. Se houvesse qualquer espécie de matéria nos anjos - "subtil ou "incorpórea" - o salto de seres completamente imateriais para seres materiais seria formidável, e a analogia entre a instantaneidade espontânea dos anjos e as operações lineares, sequenciais dos computadores seria ainda mais afim" .
A comunicação angélica é uma comunicação imediata, que não supõe qualquer signo, nem sensível nem mesmo espiritual, como o demonstrou Suarez (Suarez: 1856: 234). Linguagem da vontade, pura abertura de si ao outro, comunicaçâo instantânea que coincide com a própria vontade de comunicar. O espírito humano está velado pela espessura e opacidade do corpo mortal. O quadro que Jean-Louis Chrétien nos dá da linguagem angélica parece de todo suficiente (Chrétien: 1990: 96s). Imediata, a linguagem angélica não apela à mediação do signo, ignorando tanto a mediação do espaço como do tempo. Proporcionando um conhecimento intuitivo cria uma audição que é também uma visão. Perfeitamente livre, depende apenas da vontade do anjo que é soberana. O que o anjo quer dizer, di-lo, sem perda nem excesso. Franca, quer dizer ou inteira ou não, e sem retenção. Na sua nudez, diz o que diz. O anjo não conhece nem a ambiguidade nem a reticência. Nem litote nem hipérbole, nem ironia nem sentido duplo. Por isso esta comunicação é segura e eficaz, universal e original. Esta linguagem inverte todas as propriedades da linguagem humana, sem signo, sem mediação, sem veridicção, sem discursividade. E contudo esta é a linguagem que o humano tem como horizonte ou como a sua ferida que a palavra cura. Acrescentemos à linguagem angélica o que lhe falta: a corporeidade, a espaço e o tempo, e da química da sua e da nossa linguagem esperemos o milagre de ter asas tendo um corpo (Chrétien: 1990: 86ss.).
Howard P. Kainz, tentou aproximar a teoria das substâncias separadas de Tomás de Aquino para ultrapassar a velha questão da "reducibility" ou "irreducibility" da consciência às suas condições materiais, encontrando algumas analogias interessantes com a tecnologia contemporânea dos computadores. Aquilo que se espera destas analogias é talvez demasiado, mas elas podem levar a um retorno de interesse na Angelologia entre os tecnófilos. Talvez aqueles que estão interessados pela metafísica do problema "mind-body" may as julguem sugestivas:
• Microprocessadores e Auto-possessão Angélica
• ROM e Ideias Inatas
• RAM e a Potência Negativa Activa de Substâncias Separadas
• Discos Duros e Memória Intelectual
• O Sistema Operador e a Recepção da Informação
Software e Espécies adquiridas por hábito (Habitually Acquired Species)
• "Downward Compatibility" e Universalidade Proporcional
• Multitarefas
• Modems e a capacidade para transferir informação
• Redes e transmissão de Ideias, via Hierarquias
• Speed-caches e Efeito da Imaterialidade
Não há dúvida que são muitas as analogias entre o modo de ser dos anjos da tradição ocidental e os novíssimos anjos biónicos. Ninguém melhor do que Michel Serres se deu contra dessa transsubstanciação. Com efeito, a angelologia de Serres é simultaneamente uma filosofia das relações, amelhorada, e uma teodiceia implícita. Primeiro é a conexão, a multiplicidade que se torna global: “Os Anjos conseguem desde há muito aquilo que desde há muito eu tento pensar: um universo misturado, flamejante, rigoroso, hermético e pânico, sereno e aberto, uma filosofia da comunicação, atravessada por sistemas em redes e por parasites, exigindo, para se fundar, uma teoria das multiplicidades, do caos, do ruído, antes de qualquer teoria” (Serres: 1993: 93). A seguir, o fascínio da unidade: é o Éros que conduz à solução do problema do mal e da violência (Serres: 1993:294).
Quem são estes anjos? Eles são, ao mesmo tempo, mensageiros, simultaneamente seres seráficos, um avião, um foguete, um fax, um computador, o sopro agitado de uma brisa. O mundo da informação, “complexo e volátil”, de mensagens, redes, interferências e parasitagens encontrou nos anjos o seu mais subtil agente. O anjo é um actor sincrético em que se resumem o dançarino multiforme e semáforo ou o Arlequim. Tal sincretismo convém ao nosso filósofo para prolongar a relação ao presente tecnologizado e racionalizado em crise, insuportável.
E ciborgs
O "ciborg" é talvez o mais óbvio exemplo contemporâneo dessas perenes misturas de humanos e não-humanos. Como um acontecimento narrativo que se prolonga desde os tempos arcaicos até hoje, a transformação metamórfica dos corpos humanos, a mistura do humano com o não-humano é uma linha pré-moderna do incidente literário que atravessa o período da modernidade e emerge uma vez mais na pós-modernidade como um modo central do imaginário cultural. O ciborg refere-se a um organismo cibernético, uma criatura que é em parte orgânica e em parte artificial. É a figura por excelência da ficção científica: meio-humana, meio-máquina. Era igualmente o fantasma do determinismo tecnológico que assombrava as obras de J. Ellul (1964), H. Marcuse (1964) e M. MacLuhan como o pesadelo (militar) da vigilância total. O destino das figuras é transfigurar-se. A figura do ciborg é re-escrita à volta dos anos 1980 pela socióloga Donna Haraway (1985). Nós somos todos, de certa forma, ciborgs, afirma então. As lentes de contacto, os Walk-man, os "pacemakers", a parafrenália de próteses que nos acompanham manifestam bem esse nosso lado de criaturas híbridas. A máquina está no corpo, o corpo-máquina é um objecto submetido a um ser exterior que do interior o influencia. Mas esta figura era sobretudo o instrumento perfeito para atravessar fronteiras, ao mesmo tempo que uma figura teórica que poderia ser útil para atravessar as fronteiras politicamente carregadas e socialmente construídas entre humano e tecnologia, entre humano e animal, entre macho e fêmea, todas as binaridades que constituem o mundo moderno. Haraway pretendia usar o ciborg como a categoria ideal que permitiria minar estas categorias, desconstruí-las. Aquilo que a figura do ciborg melhor revela são os princípios fundamentais que estruturam a idade moderna. O moderno, afirma Bruno Latour (1991) predica duas funções: purificação e hibridização. O autómato é a figura por excelência do híbrido, simultaneamente objecto técnico e objecto filosófico. A função de purificação é que produz as binaridades que proliferam no interior das sociedades modernas: a distinção radical entre o mundo social e o mundo natural. A hibridização é a proliferação daquilo a que Latour chama quasi-objectos, objectos que são simultaneamente sociais e naturais. Não há nenhum objecto que seja puramente social ou natural, apesar do esforço dos cientistas para classificar e purificar o seu objecto de estudo. Os humanos são especialmente sociais e naturais. O "Sida" é "An Epidemic of Signification", escreve Paula Treichler, e não penas uma doença do foro epidemológico . O corpo não é apenas um constructo discursivo. Não há apenas actores humanos: a Natureza ou outros actores não-humanos, como as máquinas, são-no igualmente. As paisagens, os parques, as fábricas são ao mesmo tempo sociais e naturais. Nos termos de Latour, o ciborg é um quasi-objecto, mostrando o processo de purificação ao trazer para a luz a proliferação de quasi-objectos, de híbridos.
Objectos cabeludos
"No mito moderno", diz Bruno Latour, "os objectos em que acreditávamos tinham três particularidades. Primeiramente, possuíam bordos nítidos sem nenhuma aderência ao mundo social. Em segundo lugar geravam consequências imprevistas, que, idealmente, não deviam existir, mas que descobríamos por acaso ao longo da sua carreira de objectos. Em terceiro lugar, projectavam-se sobre eles valores, símbolos, signos que pertenciam ao mundo social. Das crenças e das representações" . O exemplo do medicamento é ilustrativo. De acordo com a tripartição dada, defini-lo-íamos primeiro pela sua eficácia objectiva, em segundo lugar pelas consequências inesperadas (efeitos placebo, v.g.) e em terceiro lugar pelos valores simbólicos que se acrescentam ao substracto material do medicamento. Tobie Nathan dá-nos uma outra relação de objectivação e outros dispositivos produtores de objectos que são explicitamente agregadores de social e constitutivos das ligações sociais. Este é o género de objecto "échevelé" construtor de natureza e de sociedade, fora já da liça entre crença e desrazão. Deixou assim de estar de um lado a objectividade científica e do outro, as consequências mais ou menos imprevistas da enorme rede farmacêutica, experimental, afectiva, humana que constitui, por exemplo, a pílula contraceptiva para o macho (LRF). Os objectos modernos, "objets chevelus", como B. Latour lhes chama, não podem já classificar-se conforme ao registo modernista da verdade ou da crença. Esses objectos deixaram de ser mortíferos, deixaram de precisar que os purifiquemos.
Per Aage Brandt dá-nos uma versão semiótica dos objectos muito próxima daquela de Latour. "O mundo é fundamentalmente um mundo de constrangimentos", escreve Brandt . Não se pode confundir o mundo dos objectos puros, "descritivos" (que, como tais, não existem) com os objectos do mundo simbólico. "Para que tais objectos se possam encontrar é necessário que sejam encontrados por um sujeito, i. é., que sejam objectos encontrados'" (Brandt,1992: 291). Os objectos concretos (sólidos) referem-se a domínios (circunstâncias) , limitados por condições físicas e por contextos de material específico. Brandt dá o exemplo da cadeira referida a um lugar em que as pessoas se sentam, protegida de distúrbios metereológicos, e a cadeira no oceano, ou no céu, como um objecto 'fora do domínio', obrigando a uma outra interpretação. As máquinas de Tinguely inscrevem-se num dispositivo estético em rotura com o domínio prático. Os concretos têm forma e substância; a substância é tomada como uma propriedade emergente, resistindo ao causal, ao fluido, à matéria causal (physis), enquanto a forma aparece como uma propriedade ideal final, projectada ou projectável (inteligível pela polis). Um animal é um "objecto natural" e concretiza-se como emergente, mas está submetido a um protótipo de uma identificação final, cultural, quando reconhecido como um concreto. Uma máquina é um "objecto cultural" e o seu percurso vai desde a forma (design) à substância (implantação) à função (estrutura ou forma do seu uso). Há máquinas funcionalmente equipadas com a propriedade de emitir sinais que informam acerca do estado da sua substância. Um sinal desses é um ícone (de algo a imaginar), um símbolo (de uma função) e um index (de um estado material). Bruno Latour e Katherine Hayles são os autores que mais profundamente questionam o destino dos objectos.
O destino dos objectos
Dos constrangimentos metodológicos, passamos aos constrangimentos físicos: "Os constrangimentos físicos, pela sua consistência, aludem a uma realidade para além de si próprios que não podem expressar; os constrangimentos semióticos, gerando negatividade em excesso, codificam esta alusão em ilusão. Há uma correspondência entre a linguagem e o nosso mundo, mas não é a harmonia misteriosa pressuposta por Einstein quando disse que o mistério do universo é ser compreensível" . Mesmo se autores como Donna Haraway e Katherine Hayles se referem à semiótica de Greimas, sobretudo aos seus conceitos de "actante", "constrangimento", e até utilizem o quadrado semiótico como instrumento heurístico de descrição de categorias, a sua distância em relação ao seu idealismo de base é também notória. Os actores revestem figuras do mundo. O actante não é um actor, é um feixe de relações, uma posição formal. Sujeito e objecto só existem como tais através da relação-função que mutuamente os liga. Em relação ás máquinas, "o aspecto fundamental da semiótica das máquinas é a sua capacidade de passar dos signos ás coisas e vice-versa" . A fraqueza da semiótica esteve sempre em considerar a significação como uma produção fora daquilo que a natureza das entidades realmente são. A "semiotic turn" oferece um caminho promissor para a futuro estudo das ciências quando feita numa determinada direcção. "A semiótica, não como papeis actanciais e papeis temáticos, mas nos acidentes e contingências e da história e da forma como se naturalizam pelos signos, pode, como demonstram as Visões de Primatas, conduzir a uma historiografia da ciência amplamente enriquecida. Estudos destes sublinham tanto a natureza material e contestada dos signos como evitam o formalismo árido, insistindo em conhecimentos encarnados e situados, pelos quais unicamente, como nos recorda Nietzsche, "ver se torna ver alguma coisa'" .
Na semiótica continental, Peirce distingue o objecto imediato ("the Object as cognized in the Sign”: CP 8. 183), i. é, o objecto tal como o signo o representa, e o objecto dinâmico (“may be the Object as it regardless of any particular aspect of it to be” (CP 183), o objecto tal como ele é, na realidade, exterior ao processo de sentido, mas sempre indicado pelo objecto imediato: “O signo representa o seu objecto, não em todas as suas relações, mas em referência a uma espécie de ideia a que chamei por vezes o fundamento (“ground”) do representamen” (C.P. 2.228; D. p. 121). “O objecto é para Peirce o conhecimento que possuímos já duma coisa e que nos permite concebê-la como signo” (Th. Calvet de Magalhães, 1981, p. 164). O objecto dinâmico não é um “referente” exterior ao processo da semiose, mas um produto da acção do signo. O objecto brondaleano é um objecto ou coisa enquanto “capacitas formarum”, uma capacidade de forma, isto é “uma certa capacidade neutra de determinação qualquer” e uma “capacidade de determinação” (Brondal 1948: 83). É um objecto-subjectivo. Torna-se assim possível encontrar relações importantes entre o objecto subjectivo de Brondal e o interpretante peirceano. Em cada uma das teorias, a noção de objecto é utilizada como ponto de articulação de situações limites, e em cada uma das teorias o carácter duplo do objecto é uma pressuposição necessária para a sua pertinência semiótica Em Du sens II, Greimas fala da importância decisiva da noção de objecto, interrogando-se acerca da possibilidade de uma estética se não objectiva, pelo menos objectal (Greimas, 1983: 13). O que está no centro da discussão aqui é a semanticidade do objecto, a sua constituição como objecto de sentido em geral. O traço mais nítido na argumentação de Greimas é o facto que o elemento-chave do processo semiótico é o processo de inferência que faz começar a transcodificação específica, ligada à forma científica, do mesmo modo que em Peirce, em que o argumento e a inferência é também o motor da semiose .
Coda
A ambiguidade da comunicação marca a subjectividade dos quasi-objectos: se faço barulho para comunicar, tanto objecto como sujeito da transmissão. A noção de colectivo veio substituir a distinção entre sociedade e Natureza. Os colectivos formam-se reconfigurando um grande número de objectos. A noção de redes ou de rizomas permitiu esvaziar dos dois lados a crença na noção de cultura. Escreve Bruno Latour: "Du côté occidental elle permet passer à l'idée de surfaces pleines, lisses et objectivées à des multiplicités, rares,.alongées, fragiles, bariolées, précieuses. De l'autre côté, elle permet de se débarasser de la notion de structure cohérente et symbolique, fragile, qu'un rien peut briser et qui ne peuvent se modifier sans se briser pour toujours. Avec les réseaux, les cultures cessent, si j'ose dire, 'de se mettre en boule'" . Ao multiplicar essas criaturas híbridas, meio-objectos, meio-sujeitos, que Latour chama máquinas e factos, os colectivos mudaram de topografia. Não há dúvida que a "ciberpercepção", ainda prisioneira do "visual display", está a mudar a percepção da "realidade" que Nabokov aconselhava meter entre aspas. É tempo de abandonar a premissa da absoluta alteridade do objecto da ciência: "todas estas figuras continuam a ser assimétricas". Latour "concebe um sujeito não moderno que cria os objectos que o criam, uma sociedade de quasi-objectos constituída sobre relações restabelecidas com o reino dos quasi-objectos" (Bruce Clarke). O objecto é também a alteridade radical. Como diz Baudrillard: "Seule reste l'Objet comme attracteur étrange...C'est l'Objet qui est passionant, car il est l'horizon de ma disparition." . O esplendor dos objectos nunca pertenceu unicamente à sua "objectividade". Na percepção estética, a fenomenologia mostra bem que o sujeito e o objecto coexistem. O quadro nada é sem o olhar, mas o sujeito nada é sem a experiência estética graças à qual descobre que, para ser sujeito, é necessário deixar-se apanhar pelo lugar do objecto. Não há objecto estético nem dimensão estética dos objectos do mundo fora de um olhar ou de uma leitura. Falar de um objecto estético é, antes de mais, falar de um objecto que pode assegurar a actualização dum valor com lexicalizações numerosas (beleza, graça, sublime, eu-não-sei-quê). O conceito de "saisie esthétique" é determinante em semiótica. De certo modo, o objecto faz-se sujeito quando o sujeito, no mesmo momento, se faz objecto. Daí os limites da representação: o objecto está sempre a exceder os modos como um sujeito o pode representar. Se o acto de representação é um meio clássico para manter a distância entre o sujeito e o objecto, a fusão do sujeito com o objecto implica uma ruptura da representação. Samuel Beckett é um dos escritores deste século que melhor permite pensar a relação entre a linguagem e a representação, mas também a recusa da palavra a dizer outra coisa que palavras . Entramos há muito na experiência da desagregação da linguagem. Experiência dolorosa por proceder do reconhecimento do abismo que separa as palavras e as coisas . Agora vacilam as coisas e vacila o sujeito: "Je dis je en sachant que ce n'est pas moi" . A primeira garantia de uma Constituição não moderna é "a não separabilidade dos quasi-objectos, quasi-sujeitos". A ordem da comunicação, que Lucien Sfez descreve como um sistema totalitário e auto-reproductível , arrasta consigo o desabar da relação clássica entre o sujeito e o objecto, na medida em que as redes e os seus sistemas tecnológicos definem o lugar e a função do "sujeito que comunica" do mesmo modo como se definem os usos e as funções dum objecto. O princípio de objectalização radical que os media interactivos impõem assinala o horizonte da minha desaparição. Com os computadores e os ciborgs, a simbólica do objecto desaparece, dando lugar às linguagens simbólicas que caracterizam o seu próprio modo de funcionamento. A linguagem computacional é subsimbólica; corresponde às regras de agenciamento do sistema formal dos signos. A semiótica propõe que se articulem segundo a relação significante/significado (ou expressão/conteúdo) não apenas os "sistemas de representação" (a "linguagem"), mas também o próprio referente. É assim que fala de figurativo (tudo o que releva da percepção do mundo natural), de temático (que releva do conceptual). Entre o figurativo e o temático, várias relações são possíveis. Na estrutura do símbolo a "balança", no plano figurativo, está associada, ao nível temático, à justiça. A "anémona" está ligada, na "linguagem das flores", à /perseverança/, a "camélia" à /altivez/, as "rosas" ao /amor/. Um discurso parabólico apresenta um mesmo dado conceptual (um tema) sob expressões figurativas diversas. Contrariamente ao simbolismo - que coloca em relação tremo a termo uma unidade figurativa e uma unidade temática - o semi-simbólico trabalha sobre a associação, a correspondência de categoria a categoria. Um sistema semi-simbólico resulta da combinação entre uma categoria da expressão (rítmica, v.g. ) e uma categoria semântica de natureza axiológica, havendo sistemas semi-simbólicos muito complexos que combinam texto, imagem, linguagens verbais e não verbais . Jean-Marie Floch estudou anúncios de imprensa da comunicação psicotrópica centrada no seu visual. Para este autor um sistema semi-simbólico não é nem um sistema simbólico (linguagens cujos planos estão em total conformidade - as linguagens formais: o semáforo, v. g.), nem um sistema semiótico (onde não há conformidade entre os dois planos - as "línguas naturais"). Os sistemas semi-simbólicos relevam de outra forma de semiosis. Porque, finalmente, "Quand l'objet s'autonomise définitivement, quand il échappe à tout contrôle, le sujet existe comme la proie des objets" . Em nome de quê resistem as palavras senão para contrariar a ideia que os objectos da comunicação vivem sem nós, ou somos nós, afinal, a sua presa?
In : Revista de Comunicação e Linguagens, Universidade Nova de Lisboa, DCC, 29, 2001.
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José Augusto Mourão é dominicano, semiólogo, professor na Universidade Nova de Lisboa (DCC)
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