O INFERNO DA INTERPRETAÇÃO -
o segredo de Fátima
"C'est un véritable complot de sucrerie pieuse qui s'organise pour dissoudre dans une répugnante confiture sacrée mariale le défi vivant au putanat du tout marché mondialisé où nous pataugeons" - Jean Cardonnel
"A interpretação, dizia a Irmã Lúcia, não compete ao vidente, mas à Igreja" - Cardeal Ratzinger
"A fotografia obscurece o visível por ser tão visível, só visível, e cega aquele que olha para ela. Tendo o visível sido representado, o irrepresentável coincide com o nosso olhar cego e é submergido, devorado e confundido com a retórica própria das condições de representação" - Maria Filomena Molder
Analisa-se aqui o documento produzido pela Congregação para a Doutrina da Fé e assinado pelo Prefeito da dita Congregação, Cardeal Ratzinger, "A Mensagem de Fátima". Este documento, ao confrontar-se com o problema da interpretação final, em nome da comunidade (a Igreja) levanta um outro problema, o da semiose infinita e decidível, isto é vaga. Decidir sobre o sentido dum texto em termos de enunciados terminativos é simultaneamente romper com o dialogismo do imaginário humano, excluir a semiose e transformar a comunicação em ameaça ultimativa. Como situar a hermenêutica da Congregação para a Doutrina da Fé frente à semiótica do texto? Se explicar é reduzir ao sentido literal, que resta da nubelosa em que pairava o "segredo" e o mistério da sua sedução?
Se o princípio hermenêutico assenta na asserção de que tudo o que está escondido será revelado ("Não há nada oculto que não se torne manifesto, nem secreto que não seja conhecido à luz do dia" Lc 8, 17) ou ainda, em termos de semiótica modal: "todo o parecer promete o ser", no que respeita ao "segredo de Fátima" parece termos caído naquilo a que chamo "o inferno da interpretação", não porque a interpretação seria infinita, mas porque definitivamente se selou, para desespero dos nunca acabados "voyeurs" apocalípticos. Quando Vieira, no Sermão da Sexagésima, repreende os oradores contemporâneos por torcerem os textos e os arrastarem para significações que não as suas, não estava isento de culpa: podia exemplificar o que censurava com escritos da sua lavra. Por exemplo: porque é que a vitória de Portugal sobre Espanha tem maior mérito do que a que o mesmo país obteve sobre a Holanda? Não representa Olinda a bíblica Raquel, desejada por Jacob? E não a obteve este depois de sete anos de posse de Lia - a mais velha e menos bela, símbolo da cidade do Salvador, capital de Estado ? A questão nuclear em qualquer interpretação é, em último caso, esta: quem decide do sentido? Haverá interpretação fora da violência hermenêutica? Como sair do paradoxo aparente da interpretação, ao mesmo tempo aberta e determinada, e da semiose, ao mesmo tempo infinita e contudo decidível?
Umberto Eco e a interpretação
Umberto Eco nas suas Tanner Lectures de 1990 meteu ombros à tarefa crítica, semiótica e filosófica de estudar o conceito de interpretação no seu contexto canónico: Autor - Texto - Leitor. O seu ponto de partida passa pela contestação da declaração de Valéry segundo o qual "il n'y a pas de vrai sens d'un texte", pela aceitação da ideia segundo a qual um texto pode ter vários sentidos e pela recusa que um texto possa ter um sentido qualquer. É verdade que o leitor ou o auditor são a única fonte da diversidade dos sentidos possíveis? A este propósito, Umberto Eco emite algumas reservas. Em Os Limites da interpretação lembra ele que a abordagem hermenêutica dum texto pode incidir sobre diferentes objectos: a intenção do autor (aquilo que ele quis dizer), a intenção da própria obra (aquilo que o texto diz), e a intenção do leitor (aquilo que ele vê no texto). Segundo Eco, a intenção do leitor não é a única causa da diversidade das interpretações: os kabalistas da Idade Média e da Renascença consideravam que Deus mesmo tinha querido que os seus textos fossem indefinidamente interpretáveis, o mesmo podendo dizer-se de determinados poetas. Eco adopta este ponto de vista, não apenas ao declarar a "obra aberta", mas pondo-o em prática. O seu romance, Le Nom de la rose encena a investigação de um monge franciscano num convento medieval em que se produzem mortes suspeitas. Acaba por descobrir um manuscrito desaparecido. Concebido como um labirinto com múltiplos andares, a narrativa oferece ao leitor a possibilidade de ver nela um relato histórico sobre as heresias, um romance filosófico ou uma intriga policial, ou os três simultaneamente. Guilherme de Baskerville (O Nome da Rosa) é o primeiro detective conscientemente semiótico da literatura.
Na sua Apostille au Nom de la rose, Eco explica que "um narrador não tem que fornecer interpretação da sua obra, ou não valeria a pena escrever romances, uma vez que eles são, por excelência, máquinas de gerar interpretação". O leitor, pelo contrário, pode perfeitamente, por gosto pessoal ou porque está metido nos hábitos da sua comunidade cultural, não aceitar senão uma interpretação. A liberdade não está sempre do seu lado: pode ser dada mais ou menos pelo autor em função daquilo que ele imagina do seu leitor. Será esta liberdade ilimitada? Por outras palavras, pode um texto assumir um número infinito de significações, não sendo uma mais verdadeira do que outra? Neste ponto U. Eco demarca-se daquilo a que chamou a tradição "hermetista". O hermetismo procede como se um enunciado (ou um símbolo) qualquer pudesse remeter para todos os outros enunciados (ou símbolos) possíveis neste mundo. Ao contrário dos seus defensores, Eco afirma que todo o texto comporta uma "intenção" própria: grosso modo há um "sentido literal" que proíbe determinadas interpretações sem todavia prescrever uma em particular.
O enunciado mais acutilante da Obra Aberta é este: “A mensagem (ou o texto) surge como uma forma vazia à qual podem ser atribuídos vários sentidos possíveis”. O pensamento serial tem em vista as produções da história e não a redescoberta, sob a história, das abcissas atemporais de toda a comunicação possível. A leitura que Eco faz dos anúncios baseia-se acima de tudo na teoria da informação e no conceito de redundância versus abertura (A Estrutura Ausente). Eco adopta o conceito peirceano de “semiose ilimitada” no seu Tratado de Semiótica Geral para falar da abertura dos textos. Finnegans Wake é ”uma metáfora do processo de semiose ilimitada"” . Ou ainda: “A linguagem, num processo de semiose ilimitada, constitui uma rede multidimensional de metonímias, sendo cada uma delas explicada por uma convenção cultural, e não por uma semelhança original” (Ibidem, p. 101) .
Descodificar ou compreender?
Interpretar é perceber, propor, justificar coerências. Ou percorrer e explicitar as ligações que enlaçam singularidades. Segundo Peirce, o fenómeno da interpretação é antes de tudo uma relação sintagmática entre um corpo primário e um corpo interpretante que se separa. Peirce dá esta definição: "Eu defino um signo como algo que é por um lado de certa maneira determinado pelo seu objecto e que determina por outro lado uma ideia na razão de um homem de tal modo que esta última determinação, a que chamo o interpretante do signo, é determinado indirectamente por este objecto". Para evitar um mal entendido, sublinhe-se que o termo interpretante não designa uma coisa, mas um acto determinante, a determinação de uma correlação entre uma coisa e um objecto. Este acto está situado na razão, sendo portanto um acto de inteligibilidade de uma correlação determinante entre uma coisa e o seu objecto. Este não é uma coisa, mas uma posição em face de uma coisa, i.é., um objectum em sentido estrito: um elemento que se opõe a uma coisa. Se um signo é "algo", i.é., um corpo material e sensível que tem como objectum e como determinante o corpo humano, a correlação entre o corpo humano e esta "coisa" é uma determinação, constituída pelo acto da separação, acessível à percepção. Esta separação determina o acto interpretativo indirectamente, i.é., apenas por meio da separação.
Á interpretação Eco prefere não chamar descodificar, mas antes compreender, com base em alguma descodificação prévia e que se assemelha ao tipo de inferência filosófica a que Peirce chamou “abdução”: ou por vezes define como “construir uma hipótese”: (Bondanella, 1996: 97). As particularidades, as deformações individuais que são a vida duma língua só o são em relação a regras que lhes dão a existência. A interpretação não poderá ser assegurada por um puro sistema semântico-sintáctico; e é por isso que não há língua universal. Essa reduzir-se-ia a um código, não transmitindo nenhum conteúdo novo, deixaria de ser uma língua.
O segredo Fátima
Umberto Eco analisa fundamentalmente o texto literário e não pragmático: o leitor empírico não é interpelado no seu acto de ler "situado e deôntico, mas unicamente como agente epistémico, que deve imaginar modelos", escreve P. A. Brandt a propósito das Tanner Lectures . Como reconhecer os textos autobiográficos da "vidente" Lúcia? Paranéticos? Proféticos? Apocalípticos? O Cardeal Sodano empresta-lhe, não sem alguma ousadia, o género de visão profética, comparável às da Sagrada Escritura. Porque não descrevem de forma fotográfica os detalhes dos acontecimentos futuros, a chave da sua leitura só pode se de carácter simbólico. No quadro que F. Gonçalves nos traça e em que evoluem os "Homens de Deus" lê-se que "Vários traços os situam no mundo da mântica. Só bastante mais tarde, provavelmente na época persa, é que eles são chamados profetas" . O mais interessante é saber que nenhum dos quinze 'profetas escritores' se declara a si mesmo profeta. No meio de profetas, homens de Deus, visionários, videntes e adivinhos de toda a espécie, há porta-vozes de Javé que não pertencem a nenhuma das classes professionais. A ironia da sorte faz com "que os ferrabrás de profetas dos séculos VIII-VII se tenham tornado para a tradição os profetas por excelência" .
Longamente escondidos de qualquer leitura crítica, estes textos quando analisados pelas "autoridades competentes" são-no em função de uma interpretação final que tem tudo a ver com o sentido deste sentido, isto é o valor como sinal de identidade, de coerência-na-diferença, como assinatura autêntica, no sentido jurídico. Brandt lembra que é esta interpretação final que é impessoal e que julga do valor literário da obra. "É impessoal porque se faz em nome da comunidade, doravante universal, que através dela decide receber ou recusar esse estranho que pretende ser dos nossos" . Só que no caso das cartas da "vidente" de Fátima essa interpretação final faz-se em nome duma comunidade eclesiástica que decide do seu valor em conformidade com os valores da "ecclesia", sendo interpretados à luz do jogo de linguagem religiosa e não já literária e da sua reintegração neste jogo. Como é sabido, a primeira e a segunda parte do "segredo" de Fátima dizem respeito à pavorosa visão do inferno, à devoção ao Imaculado Coração de Maria, à segunda guerra mundial, e depois ao prenúncio dos danos imensos que a Rússia haveria de causar à humanidade. Sobre estas duas primeiras partes do "segredo" segue-se o texto escrito pela Irmã Lúcia na terceira memória, de 31 de Agosto de 1941. A terceira parte do "segredo" foi escrita no dia 3 de Janeiro de 1944. Esta terceira parte foi sendo sucessivamente remetida, por João XXIII, primeiro, por Paulo VI depois, para o Arquivo do Santo Ofício, com a decisão de não publicar o texto. Após o atentado de 13 de Maio de 1981, João Paulo II pediu o envelope com esta parte do "segredo", devolvendo-o igualmente ao Arquivo do Santo Ofício.
Perguntas
É o carácter não fotográfico das visões que levou Oliveira Faria a trazer a público, primeiro em 1975 e depois em 1986 Perguntas sobre Fátima. Era um conjunto de interrogações a pedir aos teólogos, biblistas e historiadores de Fátima resposta esclarecedora para pontos duvidosos que têm surgido sobretudo com a publicação das novas revelações da Irmã Lúcia. Essas perguntas foram mais censuradas do que respondidas. O exame crítico dos textos ficou para sempre adiado. O livro "Perguntas sobre Fátima" levantava uma questão decisiva: no tempo das aparições sempre se falou de um segredo. Mas segundo as novas revelações da Irmã Lúcia, já parece que houve três segredos. "A crítica deve apurar bem se alguém não terá manipulado o segredo" (p. 146).
A Irmã Lúcia descreve assim o que teria visto em 13 de Julho de 1917:
"A Senhora abriu de novo as mãos como nos dois meses passados. O reflexo pareceu penetrar a terra, e vimos como que um mar de fogo: mergulhados nesse fogo, os demónios e as almas, como se fossem brasas transparentes e negras ou bronzeadas, com forma humana, que flutuavam no incêndio, levadas pelas chamas que delas mesmas saíam juntamente com nuvens de fumo caindo para todos os lados, semelhante ao cair das faúlhas nos grandes incêndios, sem peso nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dor e desespero, que horrorizava e fazia estremecer de pavor. Os demónios dintinguiam-se por formas horríveis e asquerosas de animais espantosos e desconhecidos, mas transparentes como negros carvões em brasa". ("Memórias e Cartas", p. 339-341).
Como se interpreta esta revelação? Faria de Oliveira interpreta esta revelação à luz do livro "Missão Abreviada" que descreve o inferno assim : "É um lugar no centro da Terra; numa caverna profundíssima cheia de escuridão, de tristeza e horror, cheia de labaredas de fogo e de nuvens de espesso fumo; lá estão os pecadores atormentados com os demónios, bramindo e uivando como cães danados. São atormentados por um fogo o mais devorante". É a descrição imaginária dum inferno de fogo no sentido próprio e material. Como interpretar esta versão do inferno com a versão bíblica do mesmo? O exemplo torna-se verdade exemplificada. O inferno como punição identifica-se com a sua imagem material: a caverna subterrânea com fogo, o inferno identifica-se com a sua imagem. Como salvaguardar a função da comparação e da metáfora?
Lúcia escreve a partir da "licença" que lhe vem do "Céu", antes de mais. Escreve depois a partir da autorização dos representantes de Deus na terra. O segredo consta de três coisas distintas: a vista do inferno, a segunda, a consagração do mundo ao Imaculado Coração, a terceira, revelada a 13 de Julho de 1917 e guardada desde 1957, o martírio do Papa. Para confirmar a revelação da terceira parte do "segredo" o Papa envia à Irmã Lúcia o Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé que tem com ela e o o Bispo de Leiria um colóquio havido a 27 de Abril de 2000. A Irmã Lúcia concorda com a interpretação segundo a qual a terceira parte do "segredo" consiste numa visão profética comparável às da história sagrada. Reafirma a sua convicção de que a visão de Fátima se refere sobretudo à luta do comunismo ateu contra a Igreja e os cristãos, e descreve o imane sofrimento das vítimas da fé no século XX. É neste colóquio que o Bispo vestido de branco é reconhecido como o personagem principal da visão. A vidente concorda plenamente com a afirmação do Papa (quanto à passagem do Bispo vestido de branco que é ferido de morte e cai por terra), sujeita o manuscrito que preparou para dar resposta a cartas de devotos e peregrinos à Autoridade Eclesiástica ("Se o Santo padre estiver de acordo"). A afirmação sobrepõe-se à interpretação, a autoridade à disseminação da interpretação.
A vidente retira-se: "Eu escrevi o que vi; não compete a mim a interpretação". Caberá ao Cardeal Sodano, em Fátima a 13 de Maio de 2000, fazer definitivamente a interpretação da terceira parte do "segredo" em termos modais que não são os da afirmação epistémica. A protecção que Nossa Senhora tem concedido ao Papa durante os anos de pontificado é uma protecção que parece ter a ver também com a chamada terceira parte do "segredo" de Fátima.
A interpretação oficial
O texto do "segredo" entrou numa cadeia de interpretação que começa nos pastorinhos, que passa pelo Cardeal Sodano, pelo Papa, pelo Cardeal Ratzinger que mutuamente se citam e se "falam". Enquanto a interpretação que faz a "vidente" passa por registos de percepção tão diferentes como "pressentimento", "intuição" (o envelope selado com a terceira parte do "segredo" tinha escrito no envelope exterior que podia ser aberto somente depois de 1960: "segundo intuição minha, antes de 1960 não se perceberia"), a interpretação que A Igreja faz do "segredo", e a mais profunda, a do Cardeal Ratzinger é metafísica e espiritual: abre-se assim o véu sobre uma realidade que faz história e a interpreta na sua profundidade segundo uma dimensão espiritual" . Na recolha da interpretação das cartas em que se relata o "segredo" intervêm em primeiro lugar a vidente, logo coadjuvada pela leitura do Arcebispo Bertone que cita o Papa actual e a "consagração universal" que o mesmo faz a 7 de Junho de 1981 e em que Bertone vê o "quase" comentário à Mensagem de Fátima nas suas predições infelizmente cumpridas. Lúcia ocupa nesta cadeia de actos de linguagem o lugar do destinatário da sanção: "Sim, está feita tal como Nossa Senhora a pediu, desde 25 de Março de 1984. É esta "vidente" que dá uma orientação para a interpretação do "segredo" numa carta dirigida ao Papa a 12 de Maio de 1982.
É ao Cardeal Ratzinger que cabe encetar uma tentativa de interpretação da revelação privada que é a visão de Fátima, e em particular a análise do texto do chamado terceiro "segredo" de Fátima. Reconhece este teólogo que a visão comporta simultaneamente uma vertente imaginal e uma vertente comunicacional. O seu carácter imaginal coloca-a no registo da piedade popular, o seu lado comunicacional coloca-a na esteira da profecia, não como previsão do futuro, mas como interpretação dos "sinais do tempo", como aplicação ao tempo presente da vontade de Deus. O que se situa de imediato é o seu estatuto: estas revelações privadas são um auxílio para a fé, requerendo "uma adesão de fé humana ditada pelas regras da prudência, que no-las apresentam como prováveis e religiosamente credíveis" (Bento XIV). Quer dizer, uma visão privada só é positivamente sancionada se orienta para um hiper-texto que é o "Evangelho". Será, pois, o seu lado de advertência e de consolação que coloca as visões do lado da profecia. Mas o mais interessante do estudo de Ratzinger é a interpretação antropológica que faz da visão. Não se trata, no caso vertente, de uma visão pelos sentidos, ou seja uma percepção externa corpórea (o que é evidente no caso da visão do inferno), nem de uma percepção intelectual, sem imagens, como a dos místicos, mas de uma percepção interior, imaginativa. É a situação em que "a alma recebe o toque suave de algo real mas que está para além do sensível, tornando-a capaz de ver o não-sensível, o não-visível aos sentidos: uma visão através dos 'sentidos internos'" . Deste modo a "visão interior" não é fantasia , mas uma verdadeira e própria maneira de verificação.
Escreve o Cardeal Ratzinger: "Se na visão exterior já interfere o elemento subjectivo, isto é, não vemos o objecto puro mas este chega-nos através do filtro dos nossos sentidos que têm de operar um processo de tradução; na visão interior, isso é ainda mais claro, sobretudo quando se trata de realidades que por si mesmas ultrapassam o nosso horizonte". Ora, como se sabe, "Não existe tradução objectiva, inocente, porque (toda a tradução) é inevitavelmente um fazer intencional, quer dizer um fazer ideológico", dizia Greimas . O sujeito vidente vê segundo as suas capacidades concretas, com as modalidades de representação e conhecimento que lhe são acessíveis. Na visão interior, há, de maneira ainda mais acentuada que na exterior, um processo de tradução. A imagem é captada segundo as medidas e as possibilidades do vidente. E regressamos ao problema da fotografia: "tais visões não são em caso algum a 'fotografia' pura e simples do Além, mas trazem consigo também as possibilidades e limitações do sujeito que as apreende" (p. 18). Em resumo, as imagens são uma linguagem simbólica (ícones) fruto duma percepção real e síntese entre o impulso vindo do Alto e as possibilidades disponíveis por parte do sujeito que as recebe. Processo de interpretação e de tradução, portanto. O teólogo chama em seu auxílio um outro teólogo (Sodano) para concluir que "Não descrevem de forma fotográfica os detalhes dos acontecimentos futuros, mas sintetizam e condensam sobre a mesma linha de fundo factos que se prolongam no tempo numa sucessão e duração não especificadas". O que conta neste processo de interpretação é a visão como um todo - a coerência interna de que fala Eco. É o conjunto das imagens (apocalípticas ou demoníacas), o centro absoluto da "profecia cristã" que permite compreender os detalhes.
Ratzinger pouco de original acrescenta à interpretação da terceira parte do "segredo" já dada pelo Cardeal Sodano, partindo dos critérios que desenvolve antes. Para salvar o "segredo" é preciso recorrer à palavra-chave que o compendia: "salvar as almas" ou "Penitência! Penitência! Penitência!" que o reinscreve na narrativa evangélica (Mc 1, 15). Os pastorinhos perceberam os sinais dos tempos que se aproximavam e é a partir dessa percepção que nos relatam, com o imaginário de que dispunham, os perigos a vir. O parêntesis autobiográfico que Ratzinger introduz (o colóquio que a Irmã Lúcia teve com ele) é a forma que tem um teólogo de traduzir o intraduzível, recorrendo à sotereologia ou à literatura bíblica que os videntes são incapazes de utilizar.
O irrepresentável
A ficção e as coisas da natureza partilham um terreno comum - um lugar comum - porque todas beneficiam da mesma "consistência óptica (Ivins, 1973: 12). A inscrição é insuficiente para explicar o poder da ciência. Toda a descrição envolve, sempre, como acentua Bourdieu, prescrição e proscrição. Aquilo a que se chama "neutralidade axiológica" dissimula, não raro, aquela subtil forma de opressão que Roland Barthes temia e que enuncia assim na "Lição inaugural": "aquilo que é opressivo num ensino não é, finalmente, o saber ou a cultura que ele veicula mas sim as formas discursivas através das quais enunciamos esse saber ou essa cultura". O que neste contexto de mostração mais conta é a forma em que os objectos são ordenados e mostrados. O que conta é a percepção visual, a montagem. O conhecimento textualiza-se, inscreve-se em espaços discursivos segundo modos, estilos de apresentação. Não há uma linguagem branca, nem para a ciência, nem para a teologia. A perspectiva é uma determinante essencial da ciência e da tecnologia porque cria "consistência óptica".
O próprio inferno não podiam os pastorinhos vê-lo com os olhos, sendo uma realidade espiritual, como diz S, Tomás de Aquino. E Santo Agostinho diz que "ninguém sabe como será o fogo eterno nem onde esteja o inferno" (A Cidade de Deus, XX, 16). A pergunta: eles viram o próprio inferno, ou antes uma figura de fogo que o representa'? Daí o conflito com a revelação bíblica. Viram uma figura de fogo a representá-lo? "O que ela descreve deve ser interpretado como metáfora" (Riffault, Angers, 14 de Junho de 1974).
A "vidente" testemunha do invisível. Maria Filomena Molder ensina que "O irrepresentável só pode ser testemunhado por aqueles que já não, nunca mais poderão testemunhar, que agora já não podem testemunhar, nunca mais. Deles dizemos que são testemunhos vivos, representados nas imagens como enviados certificadores de um estado de coisas, mas elas não se podem destacar de modo nenhum disso de que são os vivos, reais, testemunhos, pois foram atirados para um abismo, onde as categorias, os modos de dizer, se esvaziaram, e onde ser mãe, ser pai, ser filho, ser irmã, respirar, respirar, comer, desejar se tornaram intangíveis, isto é, não se pode em absoluto continuar a viver, embora se continue a viver ".
Se se trata de uma visão, como entendê-la, isto é como recebê-la? Devemos distinguir três processos na apreensão do sentido: a percepção, a impressão e a compreensão. A percepção implica a detecção dum fenómeno no espaço/tempo. Implica um investimento maior da parte do observador para perceber as grandes massas de sentido. A impressão marca a fixação e a instalação de massas de sentido. Concerne ao nascimento, à ruptura e ao começo dum fenómeno. A compreensão constitui a circulação da energia entre as massas de sentido que precedentemente foram fixadas e marca a duração do fenómeno. O conflito da interpretação em torno do "segredo" começa no seu momento "aplicativo" - quando o irrepresentável se literaliza ou se pessoaliza. As reflexões de Maine de Biran sobre a motilidade do corpo são decisivas para se entender a emergência de um concepção nova do observador e da percepção, que rompe com o empirismo escocês, fundado na recepção passiva das sensações. O visível escapa à ordem neutra e intemporal da câmara obscura paa se submeter à fisiologia e à temporalidade instáveis do corpo humano. O observador deixa de ser um espectador neutro que regista e mede as relações das coisas dentro de um espaço racional, mas um corpo vivo, activo, que só percebe na medida em que consente num certo esforço muscular, dentro da duração, e com alguma fadiga. A caracterização que aqui é dada do naturalista incorpora já essa conivência que Blake encontra: “As the eye, such the object”. O Inferno é definido afinal como um lugar, uma bacia atractora a partir da qual o sistema interpretativo categoriza as suas entradas (as classes de equivalência).
Coda
A linguagem é um jogo de determinações não controlável; é pura "différance" e não positividade; é falta continuamente deslocada, excesso de signo em signo. A noção perciena de "interpretante" é determinante; é necessário manter a falta que permite o símbolo, impossível num sistema fechado, totalmente determinado, porque o sentido continuaria bloqueado. Em último caso, nenhum signo é absolutamente transparente, remetendo sempre, através da sua sombra, da sua falta de presença, para outros signos, como mostrou Peirce. É isso que explica a transformação dos signos ao longo do tempo. É a ausência, no coração da linguagem, que faz que ela fale. Também é verdade que aquilo que permite que a linguagem comunique é o consenso, que é uma instituição histórica. Ora o consenso pressupõe a linguagem e arrasta consigo a necessidade duma pragmática. Umberto Eco esforça-se por tornar aparente a distinção entre interpretação e uso do texto. Há interpretação quando se respeita o "mundo possível" fundado pelo inconsciente do texto e o seu léxico, enquanto o uso serve para extrair do texto alusões à vida do autor que só se legitimam através de provas extra-textuais. Eco dá como exemplo Finnegans Wake, explicando que apesar de ser uma obra aberta há leituras que não permite como interpretação mas que poderão ser tentadas como uso. Um texto "aberto" não significa que todas as leituras possíveis são permitidas, apenas que pode suscitar leituras infinitas. Será sempre redutor privar a dimensão cultural ligada à especificidade linguistica dos textos. O léxico dos textos que a linguagem articula corresponde a um saber doxástico que inevitavelmente advém de criações culturais. As leituras reais, por oposição às leituras descritivas (F. Rastier) são de carácter produtivo, logo contradizem e negligenciam as instruções da interpretação do texto, propondo uma sua variante. Pode-se assim dizer que o sentido não é imanente ao texto e que apenas o são as condições impostas à sua produção. A análise semântica é um trabalho de paráfrase sem nada de tautológico, pois cada nova definição acarretará um novo conhecimento. Cada leitura irá acrescentar o texto a ajudar a desdobrar o sentido. Ratzinger sabe-o bem: a Igreja não está condenada a uma estéril repetição. E a propósito, cita Gregório Magno: "As palavras divinas crescem com quem as lê" (Homilia sobre Ezequiel 1, 7. 8). A cooperação interpretativa é um acto no decorrer do qual o leitor dum texto, por sucessivas inferências adbutivas, propõe tópicos, modos de ler e hipóteses de coerência, na base da sua competência enciclopédica. Acontece com o "segredo" que esta iniciativa interpretativa é visivelmente determinada pela natureza do texto. Fica esvaziada não apenas a patemização do sujeito (a interpretação teológica do "segredo" purga-o do seu imaginal arcaico e experiencial, transpondo-o para o regime da comunicação e do uso). Estranho é que um leitor (o Papa) identifique o seu próprio destino na visão do "segredo". A tradução do "segredo" é fortemente ideologizada: a personagem antevista, sem nome nem rosto (in effigie), é agora reconhecida como o herói da "história" que a "vidente" conta. Poderá dizer-se, como diz E. Prado Coelho que "a Igreja e a fé deixaram hoje de produzir imaginário" ? O problema não é que as instituições deixem de produzir imaginário, mas que o domestiquem, o traduzam, especular, ideologicamente. Ad usum. Só a descontrução é subversiva, só ela destrói a interpretação para saudar o autor empírico do texto como sujeito não-integrável. No caso do "segredo" não é o autor que conta, nem o texto, em último caso, mas o seu uso instrumental. a sua "aplicação". A questão parece ser aquela que Helène Cixous coloca em entrevista ao seu mais recente livro : "Quand j''ecris ce qui m'a été confié 'en secret' à mon tour je trahis mais autrement, en transfigurant. Écrire révèle et revoile dans le même geste. Déplace le sujet. Ce qu'il ne faut pas dire en l'écrivant je ne le dis pas. Je le 'sauve' par change" . Assim parece: nesta "troca" perde-se a "vidente" e o "segredo" perde o véu que lhe dava a aura e a nós a distância temerosa. Falta aquela parte que na hermenêutica se chama aplicativa. Reduzido o seu sentido, resta a pergunta: "O que nos diz a nós?" Apelo à conversão, impostura, a última palavra (da sagrada Congregação)?
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José Augusto Mourão é semiólogo, dominicano e professor da Universidade Nova de Lisboa
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