COMUNICAÇÃO E RELIGIÃO:
o fantasma de uma oportunidade

"O carácter interactivo e bilateral da Internet já está a ofuscar a antiga distinção entre aqueles que comunicam e os destinatários da comunicação, e a dar forma a uma situação em que, pelo menos potencialmente, cada um pode desempenhar ambas as funções" (Igreja e Internet)

"Passé le portage statique des formes, aprés leur transformation, d'abord à froid, ensuite à chaud, vint le règne de l'information" (Michel Serres)

1. "A Igreja é uma communio, uma comunhão de pessoas e de comunidades eucarísticas que derivam da comunhão com a Trindade e nela se reflectem; por conseguinte, a comunicação pertence à essência da Igreja", lê-se no recente documento do Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais . Este é o lado "místico" da comunicação, que não pode ignorar o conflito latente que passou a organizar o nosso modo de vida actual, estilhaçado entre uma solidariedade orgânica e as formas de vida tecnológicas. Saímos do vínculo religioso, místico para entrar no vinculo formal, contractual e técnico da comunicação. Mecanicidade é uma forma de falar do contrato social. Comunidade virtual é outra forma de evocar a mística desencarnada das relações humanas. Passamos da solidariedade nas sociedades pré-modernas em que tudo estava ligado organicamente, ao insulamento. Entrámos simultaneamente no tempo das redes e na insularidade generalizada. A praga do niilismo parasita hoje tanto a religião como a comunicaçãoI.

2. A idade da religião como estrutura acabou, a sua função social está a apagar-se. Resta a função subjectiva da experiência religiosa . A religião pura e "primeira" era o dinamismo integrador e organizador do estar-em-comum e do estar no mundo em simbiose com a natureza; ela fundava este viver-com numa alteridade invisível, um passado imemorial e imutável assegurado através dos seus ritos. A força da religião estava no laço metatribal que a ligava ("Não há judeu nem grego, não há servo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus" (Gal., 3, 26). As comunidades pneumáticas tornaram-se rapidamente novos portadores de cadeias. A religião tornou-se uma escravatura, gerando novas nações, novas galeras, naves de loucos em que reina o despotismo ou o incenso. A religião tornou-se hipnótica porque nela se perdeu o real, o acesso ao seu próprio sofrimento, à consciência da felicidade, o direito à morte, logo à vida.

3. Tanto no caso das sociedades tradicionais como no das sociedades modernas, "os sociólogos não sabem por que ponta pegar a religião" . Associá-la à experiência da sacralidade do divino, do santo, do salvo ou do indemne? Ligá-la à experiência da crença (o crer ou o crédito, o fiduciário ou o fiável no acto de fé, o testemunhal, ou à experiência do indemne, da sacralidade ou da santidade? Ligá-la ao processo da "saída da religião", no sentido que lhe lhe empresta M. Gauchet: "saída de um mundo em que a religião é estruturante, em que ordena a forma política das sociedades, em que define a economia da ligação social" ? Fazer dela, como faz Derrida, a relação sem relação?

4. Passemos da religião à comunicação. Muito mudou e nos mudou, na passagem da comunicação à logosfera, depois à semiosfera e agora à videoesfera. O paradigma comunicacional infligiu de facto uma quarta ferida à humanidade, depois de ter descoberto que não está no centro da terra, que se inscreve na linha animal ou que o inconsciente a move. Sem querer simplificar demasiado, é claro que o elemento mais determinante dos acontecimentos que nos afectaram nestes últimos 25 anos foi precisamente a difusão dos meios de comunicação. O próprio despertar de muitos fundamentalismos, étnicos e religiosos, o racismo em particular, se poderia descrever como uma reacção de agorafobia, uma fuga em frente para a abertura dos horizontes culturais, religiosos, éticos e sociais que a mediatização global trouxe consigo. Falar hoje de comunicação é "sobretudo projectar o espaço de uma atmosfera de intensidades em que a comunicação se mistura com o consumo e com o lazer; o que quer dizer que falar «hoje de comunicação é projectar um espaço libidinal e retórico, que sobretudo reconforta o nosso sentimento narcísico" .

5. O cristianismo adoptou uma linguagem estranha - o logos grego e mais tarde a retórica; agora tornou-se inevitável o encontro da religião com as tecnologias da comunicação. A sociedade em que participamos é uma sociedade mediática e a vida da mensagem cristã e a sua transmissão estão confrontadas com esta sociedade. O mundo dos media é um dado de sociedade e de cultura. Nesta sociedade tudo pode ser inculturado, por assimilação, deformação e cópia. O artificial está a substituir o natural.

6. Que religião, seja ou não fundamentalista, dispensa hoje a cultura digital ou os media? Que encíclica não é de imediato traduzida, difundida? Não faltam documentos da Igreja apreciando as vantagens que os media permitem na difusão da Mensagem e na própria gestão burocrática do governo. Apesar de se saber que o mundo dos media parece ser indiferente, senão hostil à fé e à moral cristã. Apesar de se saber que nos sites de expressão católica o filtro do Magistério é de difícil aplicação e que esse meio é particularmente propício à proliferação da nebulosa místico-esotérica. A Instrução Pastoral Aetatis novae denomina a comunicação bilateral e a opinião pública como um "meio de realizar concretamente o carácter de communio da Igreja" . A Internet aparece como um meio tecnológico efectivo para a realizar de uma visão participativa no seio da Igreja. J. Derrida tem razão: "L'éther de la religion aura toujours été hospitalier à une certaine virtualité spectrale. Aujourd'hui, comme la sublimité du ciel étoilé au fond de nos coeurs, la religion 'cédéromanisée', 'cyberespacée', c'est aussi la relance accélérée et hypercapitalisée des spectres fondateurs" . Ao lado do optimismo beato que leva os apóstolos do ciberespaço a descrever os efeitos da "grande mutação" em curso como "uma civilização que nos projectará num algures, onde o tempo é abolido, onde o espaço se apaga, sem fronteiras, sem leis, sem Estados nem constrangimentos: um mundo regido por outros padres, outros soldados, outros produtores de riquezas, que transformará os nossos costumes, a nossa sociedade, a nossa democracia", está a instalar-se uma cultura do sentimento e um novo tribalismo - a vida quotidiana, ligada àquilo que Michel Maffesoli chama o "Tempo imóvel", que sela um politeísmo dos valores, ao mesmo tempo estrutural e recorrente, face a uma vida de constrangimentos políticos, sociais, profissionais.

7. O estudo de uma antropologia da comunicação deve ter em conta que a socialidade do presente reveste várias figuras. Destacarei: a) a alegria do mundo, quando a vida vivida como jogo significa "aceitação do mundo tal qual ele é", e lógica do querer ser, do querer viver mais; b) a aparência como nódulo da socialidade: culto do corpo, exacerbação do sensível em todos os domínios; c) a organicidade das coisas, o vitalismo que reabilita aquilo a que Kirkegaard chamava "o verdadeiro homem comum" que caracteriza "o homem sem qualidades", o especialista duma filosofia libertária da vida, do "pensamento do ventre", ou da "sabedoria demoníaca", presente nos diversos arcaísmos pós-modernos; o trágico como símbolo da nossa identidade cultural colectiva, incarnado naquilo a que Maffesoli chama viscosidade social, o regresso do feminino, porque "o feminino, o eterno feminino está em osmose natural com um tal fluxo vital" - " a feminização é sempre sinónimo de politeísmo, de valores plurais e antinómicos".

8. Uma teologia da comunicação deve ter em conta do sujeito humano como homo communicans, isto é, como um ser de relação dialógica. Que a experiência da corporeidade e da linguagem são experiências que não se fazem fora do campo social, logo, fora da vida em comunidade. Uma teologia da comunicação deve ter em conta que o mundo se desencantou, isto é, que desapareceram as representações mágicas do mundo, e que começou o processo de transferência para o Estado representativo moderno do poder de estruturação da sociedade primitivamente detido pela religião.

9. Abraçar a fé implica ipso facto para o crente uma auto-exposição às dificuldades duma situação de desolação: "A experiência é um embaraço absoluto (...) que pertence à vida do próprio cristão. A afirmação (da Palavra) é para ele uma auto-exposição à ferida da linguagem, antes de mais. Este embaraço é uma característica fundamental, uma inquietude absoluta no horizonte da parúsia escatológica" . O primeiro cristianismo transporta consigo os traços distintivos duma inquietude e duma incerteza que lhe são constitutivos - a escatologia ocupa o centro da vida cristã mesmo que esse facto tenha sido esquecido e rapidamente reprimido, pelo menos a partir do fim do século I da igreja cristã. A relação coma parúsia mantida por aqueles que vigiam não se pode caracterizar nem pela ignorância nem pela falta de interesse, mas por uma certa indiferença, a do "como se não": que significa ser do mundo sem lhe pertencer?

10. Podemos dizer: a religião é a resposta. Ou que assume respostas que manifestam a mobilidade e a fluidez da prática e da identidade cristã. Podemos dizer a Mensagem se volatilizou. De facto, aquilo que caracteriza a modernidade religiosa é uma tendência geral para a individualização e a subjectivação das crenças religiosas que se multiplicam enquanto "fracturam os dispositivos do seu enquadramento institucional" (D. Hervieu-Léger: 43). O cristianismo apresenta-se como Boa Nova, mensagem que deve ser anunciada e que se apoia no Verbo de Deus: Deus como palavra criadora, veio partilhar a condição humana em Jesus de Nazaré. Entre Deus e a história humana levantam-se mediadores, profetas e justos, até Jesus, o único Mediador. O anúncio da mensagem sempre privilegiou a Palavra. E o próprio da Palavra é ser interlocutiva. O mais próprio da palavra é o vocativo, não o nominativo. A palavra tem vocação comunitária, vocação de encontro com o outro na interlocução. A Palavra procura o seu interlocutor a partir da sua língua. A palavra enraíza-se numa "forma de vida", numa actividade comum, por isso ela é imediatamente "prática interdiscursiva". E nem tudo no discurso cristão é mensagem: a leitura é interpretação, é trabalho de inculturação. A Mensagem da Igreja deve integrar nesta "«nova cultura" criada pelas modernas comunicações.

11. A lógica da comunicação e a teoria da informação foram mobilizadas ambas para o serviço do todo-poderoso sistema tecnológico, cibernético e ciberespacial de circulação das mensagens, verbais, sonoras e visuais . A comunicação tornou-se uma indústria pesada que podemos comparar à indústria siderúrgica da segunda metade do século XIX ou à do automóvel por volta de 1920. É o sector em que mais se investe. Todas as empresas de redes, em particular os vendedores de fluidos ou do fluxo, detentores de uma rede de "tubos" (água, gás, electricidade, telefonia, televisão por cabo, caminhos de ferro, sociedades de auto-estradas, etc. ) aspiram a controlar uma parte do novo eldorado . A lógica dominante dos novos predadores passa pela interconectividade por todos os meios possíveis. Todo o novo senhor do mundo pretende ser o interlocutor único do cidadão a quem fornece informações, passatempos, desporto, dados financeiros, cultura.

12. O estranho da situação actual da comunicação é que "vivemos doravante numa enorme companhia de navegação, em que trabalhamos, pelo menos uma maioria, como mensageiros: transportamos menos massas, acendemos menos fogos, mas transportamos mensagens que por vezes dão ordens aos motores" . O estranho é que o mundo se tenha tornado volátil, e que afinal trabalhamos em espaços virtuais difíceis de representar, à maneira dos Anjos, velha, mas recente, figura da história das formas de comunicação, quando a religião se eclipsa ou se transmuda. A questão da verdade nebulou-se, como a questão do valor, sem desaparecer de todo. M. Serres fala da necessidade de um atlas para a verdade. Tornada mercadoria, a informação preocupa-se pouco com a verdade. O que conta é vender. O que conta é o "operativismo". As tecnologias de ponta provocaram uma multiplicação dos media. A principal consequência disso é a descoberta que a informação é uma mercadoria cuja venda e difusão podem dar importantes somas. O valor da informação deixou o parâmetro da verdade.

13. Às grandes potências militares, políticas, industriais, sucede o império dos signos. A tecnognose sucede à gnose espiritana (Natália Correia) ao pentecostalismo (The web of the text and the web of God, Purves) ou à utopia dum cristianismo mundial (Cl. Geffré). O nosso mundo começa já global. As religiões também. O fantasma de qualquer religião é o imperialismo e a dominação universal a partir dum centro. Onde está a diferença entre deter o sentido das mensagens; tornar-se senhor dos canais e dominar o material que torna as passagens do local ao global, do privado ao público, do público à humanidade inteira, a rede de todas as redes, e deter o monopólio da verdade e dos enunciados?

14. Paradoxos. Ao mesmo tempo que nos dizem que tudo é comunicação, o tempo é de paralisia da palavra, de suspeita, do Readymade, da psicologia da decadência pós-moderna em que a massa já encontrou o seu panorama no ecrã de televisão. Vivemos submergidos pela ideologia da inovação nos media digitais , mesmo se, como nota Espen Aarset "The digital medium (singular) never existed, and chances are overwhelming that it never will" . Ou ainda: "The digital medium (singular) in other words is a vague and confused phrase that completely lacks analytical value, and should be abandoned" (Ibidem: 4). Os media digitais são legião. A novidade está nos bits, segundo N. Negroponte. As novas tecnologias desempenham hoje o papel da sedução, e da promessa outrora do domínio das religiões. Os termos interactividade, virtualidade, hipertexto são em grande parte o prefixo ("hype") da ideologia tecnocientífica do nosso tempo.

15. É preciso fazer a crítica das ligações na era da técnica , sabendo que a revolução que se produz na comunicação é mais do que uma simples revolução tecnológica: "É a recomposição completa daquilo através de que a humanidade apreende o mundo que a envolve, verifica e exprime a sua percepção" . É preciso fazer a crítica do estatuto da verdade - nós vivemos mergulhados vivos no encantamento mágico de um novo politeísmo - sem cair na tentação do dogmatismo e do fundamentalismo. Pode a religião conviver com o paradoxo da comunicação precária?

16. O universo tecnológico é universal, não centrado, o meio está em toda a parte, o centro e a circunferência estão em toda a parte: "a Monadologia de Leibniz sucede ao espaço de Descartes" . Temos de pensar nos efeitos do desencantamento do mundo: a deslocalização técnica da informação arrasta consigo a desmodalização e a desmobilização. A velocidade de libertação que os media prometem é a estrada real da desencarnação.

17. O processo de multiplicação infinita da informação, o desaparecimento dos centros, o apagamento progressivo das figuras de poder, dá lugar a uma ilusão de liberdade e de autonomia. A geografia das redes (supostamente) acentradas radicaliza, de uma forma imparável, os mecanismos da sociedade liberal desenvolvida, reproduzindo, sem cessar, os princípios, as imagens e os valores dominantes na ausência da menor violência física e sem o mais ténue vestígio de discurso autoritário.

18. O ciberespaço radicaliza a racionalidade do espectáculo; nele, o indivíduo torna-se espectador de si mesmo, do seu poder e da sua liberdade. Os ambientes gráficos enquadram o ciberespaço numa ilusão de mundo configurável pelo indivíduo. O ciberespaço "existe" no interior de um espaço virtual acentuadamente gráfico e configurável pelo sujeito. O sujeito pode, assim, organizar e ordenar o cosmos à medida do seu gosto pessoal. O nosso planeta não é já a terra mas o Windows (ou o Linux).

19. O religioso que nos liga hoje é a comunicação. Nada que faça concorrência à fé do crente nem a uma outra divindade nem que pronuncie a morte de Deus. Não é o equivalente secularizado da promessa de eternidade, a comunicação torna-se hoje religião na medida em que para nós se revela nela a condição de estar-no mundo, a essência do laço possível com outrem e consigo. O acto de fala dirigido a um outro que responde pode trazer á luz o que há de mais escondido. Faz-nos existir expondo-nos. A ideia comunicacional responde à intuição duma transcendência que se abriga no interior da imanência. Religião simples, não pura, razão contida nos actos de comunicação, interioridade partilhada. O sentido é gerado no seu seio; torna-se comunicável às outras culturas na exterioridade da história; é pela comunicação entre os indivíduos que se forja uma comunidade social.

20. Estamos a assistir: a) à atomização das pequenas narrativas crentes em que a experiência pessoal se torna o seu próprio critério de verificação; b) à substituição progressiva da relação autorizada com a memória cristã (Magistério) por uma pragmática com o stock disponível das significações cristãs, transformada em caixa de ferramentas a que se vai conforme as necessidades - "a religião invisível moderna" (T. Luckmann); c) ao processo de eufemização das tradições na Tradição com as suas arestas, práticas e conflitos. O catolicismo sobrevive como "meio ético-afectivo" numa sociedade laicizada em profundidade. O cristianismo não pode pretender ao universal senão com a consciência da sua particularidade histórica: "É à luz duma teologia da cruz que se pode reaver a singularidade do cristianismo como religião da alteridade...A verdade cristã é relativa, no sentido de relacional à pluralidade das verdades próprias a cada tradição religiosa. À parte de verdade irredutível de que toda a tradição religiosa transporta" . A sociedade dos media coloca aos cristãos uma questão sobre o acto de tradição: um simples acto de repetição, ou de recriação do lado do emissor, se quer ser criação do lado do receptor? A perspectiva utilitarista e instrumental que a Igreja tem dos media é excessivamente redutora do seu papel - os media determinam novos universos mentais, uma nova cultura .

21. "O destino da nossa época caracterizado pela racionalização, a intelectualização e sobretudo o desencantamento do mundo, levou os humanos a banir os valores supremos mais sublimes da vida pública" (Max Weber). Um mundo desencantado é uma natureza que deixou a Natureza, um simples espaço que se explora e se conhece através do cálculo. É uma sociedade que não remete já para uma mundo transcendental mas para uma compreensão laicizada da vida social e política. A religião deixou, pois, de ser o poder constitutivo das sociedades contemporâneas, deixando de ser a reserva protegida num recanto da nossa cultura. M. Gauchet fala do cristianismo como a religião da saída da religião. Se definimos politicamente o religioso pela sua função geral de expressão do pacto social e da relação das partes ao todo, como o faz Durkheim, a abordagem de Gauchet parece pertinente. Gauchet (1985) define o religioso ontologicamente: o modo do religioso na sua essência é tal que é incompatível com a autonomia do indivíduo moderno. É a ideia duma religião pura, lembrança dum passado puro em que o arquétipo religioso nos é desmascarado como o que contradiz a pretensão à autoprodução do sentido social. Porém é menos fácil dizer que o religioso não possa sobreviver à secularização dos seus conteúdos. O que liga, precisará das representações tradicionais de um Theos, quando se reconhece na actividade comunicacional a simples religião dum Logos secularizado?

22. A modernidade dissolve a possibilidade duma vida religiosa. O que resta são "os élans, as efusões, as seguranças psicológicas que os indivíduos reclamam", por conta pessoal . M. de Certeau falava de um cristianismo cultural em pedaços (Le Christianisme éclaté, 1974) que deixa de definir associações e práticas particulares. A crise da ligação social cristã favorece o facto da espectacularização do cristianismo que tende a tornar-se no jogo mediático-político um emblema cultural flutuante, manipulável e manipulado. Este é um dos traços da disseminação da constelação eclesial.

23. Este é o tempo das redes - das novas vinculações e desvinculações. A cibercultura parece estar a atingir a velocidade de libertação. A apologia sistemática da velocidade está a tornar-se uma nova religião: "A realidade da informação", diz Paul Virilio, está inteiramente contida na sua velocidade de propagação" . Ora, aquilo de que precisamos é de uma consciência profunda da fragilidade da vida que levamos, que a velocidade de libertação é um fantasma mortífero. A retórica da velocidade de libertação é uma manha fatal que nos faz esquecer o saque da natureza, os rasgões do tecido social e o abismo que se cava entre a elite tecnocrática e as massas mal pagas.

24. A cultura está sujeita ao assalto da comunicação que, como a publicidade, se tornou "o discurso dos discursos" . Quem não sabe que a Academia define esta palavra, que entra no dicionário em 1694, como "Ne se dit que d'un crime commis au vu de tous"? A comunicação alçou o que era considerado crime ao estatuto de "crime perfeito", espelho e aparelho ideológico que serve para anestesiar a inteligência e a vontade através da inoculação de falsas necessidades e para esconder a miséria do mundo sob os véus da estética. Outra deriva que Armand Mattelart, um dos mais respeitados teóricos da comunicação detecta e que ameaça de morte a religião: "O impulso das novas tecnologias funda-se no corte da comunicação e da cultura. Importa menos o conteúdo das mensagens do que a própria junção" . Crime será perder aquilo que, pelo menos desde Platão ligava os amigos da sabedoria: o combate do Logos contra a Opinião e contra o uso manipulador da linguagem, a produção de simulacros de imagens, a "venda de palavras" que caracterizava o sofista, esse primeiro "publicitário".

25. Não se trata de demonizar a tecnologia da informação em nome da "mensagem" e dos "Anjos" que outrora nos protegiam de nós mesmos. O Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais Sociais reconhece que "uma atitude de pura restrição ou de censura por parte da Igreja...não resulta suficiente nem apropriada" . Trata-se de reencontrar aquilo que liga o local e o universal, o singular e o intenso sem ceder ao panteísmo ambiente ou à promessa de uma maior harmonia universal através da Rede, em tempo real, sem os acidentes da comunicação, sem a carne do mundo que não é transparente, sem o caos do silêncio em que a palavra se forma e nos congrega.

26. Gosto de falar da tensão entre a palavra e o espelho. Há que ver o espelho na sua dupla face: enquanto mediação entre Deus e a criatura, é um receptáculo de Deus que não se pode olhar: "lugar de esplendor que a nossa vista não pode sustentar" (Minazzoli), deserto de imagens e de palavras. Mas há uma segunda face do espelho feita de errância e de multiplicidade: uma cena plural da linguagem, dicção de Deus: "Queres aprender a gramática? Aprende a declinar Deus no plural" (Pedro Damião). Prega-se uma convergência entre as novas tecnologias e a cultura. Entre a comunicação e a religião há-de haver respostas, responsabilidades. É preciso filtrá-las e partilhá-las. Sem nos confiscarmos. Sem a miragem do "operativismo" e da irresponsabilidade que varre os céus de uma nova vulgata: a comunicação.

27. "The research on cyberspace is a quest for God". Podemos tomar o desejo de Virilio por realidade??