JOSÉ AUGUSTO
MOURÃO

 

Assunção

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Que anuncia esta festa? A nossa vida está inteiramente imersa no mar de Deus. Deus vem para a totalidade da existência, não apenas para a nossa alma: assim como nos acordou para a existência, assim nos adormecerá. A dormição da Virgem na Vida de Deus promete a nossa dormição em Deus. Nós somos, enquanto arcas que transportam a promessa, corpos em devir, a caminho da ressurreição.

  1. A assunção aponta para um mundo apocalíptico em que se desvelam as nossas orientações e as nossas energias. Esta festa indica o devir do nosso corpo, da integralidade do que somos assumidos por Deus, o que é morrer e o que é viver.
  2. Daqui olhamos o presente – o deserto – que é o lugar das tentações e da prova, das decisões éticas, lugar do crescimento da consciência inteligente que obriga a alargar os horizontes, que obriga à atenção e às escolhas contextualizadas, incarnadas.
  3. O tempo que aí vem (virtual, maquínico, efémero e presente trágico) está a desconstruir, através do seu plano de imanência mundial, todas as nossas evidências biológicas, éticas e políticas.
  4. Afinal, o presente é o tempo do Magnificat. A releitura das metamorfoses e das revoluções: não há só o que está porque assim é que convém (que haja quem abuse do poder, sem escrúpulos, quem acumule riquezas produzidas pelo trabalho mal pago, quem explore os corpos e os humilhe, senhores da vida e da morte diante dos sem defesa legal e sem partido - tanta gente a fugir da guerra; tanta fome ainda dizimando povos); há o que esperamos das promessas de amor e de justiça; há os fracos oprimidos aguardando a hora da liberdade e do direito; há a paz possível e uma ordem que não corresponde à nova ordem mundial que os poderosos deste mundo impõem.
  5. Maria precede-nos nessa percepção crítica, nessa indignação e nessa acção de graças pela liberdade que a marcou inteiramente como segunda Eva. É ela que nos revela o nosso destino de crentes a partir da sua experiência de desprendimento.
  6. A Assunção diz-nos que viver não é evadir-se do mundo, mas olhar de frente o que há em nós sem desesperar; nós todos reflectimos como num espelho a glória (2 Co 3,18); não temos que humilhar o nosso corpo de carne para melhor exaltar a nosso corpo de glória; é preciso afirmar uma certa continuidade entre o que somos e o que seremos. Há em cada um de nós um poder de metamorfose ascendente, uma capacidade de espiritualização do nosso próprio corpo; tudo depende da nossa maneira de habitar o nosso corpo e da nossa maneira de estar no mundo; temos de nos bater não só abstractamente pela dignidade do homem e da mulher, mas pela dignidade do corpo: o fantasma do corpo perfeito, o inferno da tortura, o aviltamento, a desfiguração não é uma fatalidade; a única resposta ao excesso do mal é o excesso do amor. Este mundo é cruel: os traços da glória de Deus neste mundo já não são as igrejas douradas, mas os sinais e os prodígios da caridade.
  7. A crença espera o espectáculo e inventa-o se preciso. A fé consiste em ver e ouvir o que não traz nada de excepcional para o olhar e o ouvido comuns. Ela sabe ver sem tocar. O mistério é aquilo que se ilumina por si próprio, aquilo que brilha do fundo da sombra. O corpo ressuscitado continua a ser um corpo terrestre e na sombra.
  8. A ressurreição não é um regresso à vida. É a glória no seio da morte: uma glória obscura cuja iluminação se confunde com a treva do túmulo. Em vez do contínuo da vida passando pela morte, trata-se do descontínuo duma outra vida na morte. A ressurreição não é um processo de regeneração (semelhante ao das mitologias de Osiris ou Dioniso), mas tem lugar na relação àquele que diz: “Eu sou a ressurreição”. A ressurreição não é uma reanimação: é o prolongamento infinito da morte que desloca e desinstala todos os valores de presença e de ausência, de animado e de inanimado, de alma e de corpo.
  9. “Quem se fia em mim, mesmo que estivesse morto, viverá”. Fiar-se nele, estar na fé, não é acreditar que pode haver regeneração do cadáver: é manter-se com firmeza diante da morte. Este “manter-se” constitui propriamente a anastasis , a ressurreição, isto é o levantamento (a insurreição, que é outro sentido possível do termo grego). Nem regeneração nem reanimação, nem palingénese, nem renascimento nem reincarnação: mas o levantamento enquanto verticalidade perpendicular ao horizonte do túmulo. Importa saber que a anastasis não provém de si, do sujeito próprio, mas do outro: ela vem-lhe dum outro. É o outro que se levanta e que ressuscita em mim morto. É o outro que resssuscita por mim. “Ressuscitei” não significa uma acção que eu teria exercido, mas uma passividade sofrida ou recebida. “Morri” (palavra impossível) e “ressuscitei” dizem a mesma coisa, a mesma passividade.
  10. Suspensa, como uma luz impassível entre o Universo e Deus, a Virgem dorme. Através da sua transparência serena, espraia-se a onda criadora, carregada de virtude natural e de graça. Que outra coisa é a Virgem? (T. de Chardin)
  11. A morte abre a relação, i.é., a partilha da partida. Cada um vem e parte sem fim. Aquilo que se apresenta como o fim revela-se sem fim. É o corpo carnal que revela o corpo glorioso. Só um corpo pode ser abatido ou levantado. Hoje é o dia em que festejamos a libertação total da existência, a sua assunção por Deus. Que a Virgem, Arca, nos transporte para o louvor e o Magnificat de todos os dias que é o nosso Credo.