ADÉLIA PRADO : O que está suposto na arte é amor divino, por isso é que é incansável, eterna, perene alegria. Artista nenhum gera a sua própria luz, disto ,sei, e quem mo contou não foi o sangue nem a carne, mas o Santo Espírito do Senhor. Mors et vita duello conflixere mirando. A atenção à linguagem “Escrita sem poética é de amargar”, avisa a autora de O homem da mão seca . Escrita sem fidelidade absoluta ao que se está sentindo, escrita que não é uma natureza, um sonho, um fenómeno corporal, escrita interrompida não presta. Escrita que não atinge o Logos é verborreia só. Escrita que não é um momento de graça não é a pura felicidade. Pode dizer-se de Adélia Prado que ela é o Arlequim consumado em que a vida é arte e a arte graça: “Tenho vontade de partir os queixos dos poetas que se acreditam criadores de sua própria obra. Vaidosos demais, não se vêem apenas portadores, vasos” Ou, de outro modo: “O transe poético é o experimento de uma realidade anterior a você. Ela te observa e te ama. Isto é sagrado. É de Deus. É seu próprio olhar pondo nas coisas uma claridade inefável. Tentar dizê-lo é o labor do poeta” . “Artista nenhum gera sua própria luz, disto sei, e quem me contou não foi o sangue nem a carne, mas o Santo Espírito do Senhor” (Cacos, p. 123). Não se vê na sua obra a arrogância do vate que pensa coincidir com a linguagem que profere. Ela não é, como os poetas modernos, um poeta soberano ou niilista. O formalismo é-lhe estranho, por capcioso, estéril. Preocupam-na os fins, não os meios, a tecelagem pela tecelagem, a pirueta verbal: “O meio é divertimento, lacrimoso teatro, intervalo, interregno, ensaio geral, piquenique dificultoso, onde factos memoráveis acontecem” (Cacos, p. 103). Os seus poemas trazem o selo do escatológico, como acontece ao Cântico, costurados do intervalo ou do momento que liga o já presente - o Reino - àquilo que há-de vir e que dá a este presente a largura da duração e a profundidade da admiração. Nesta poética dizer é mostrar. Ver Deus ou olhar Ramon - essa é a suprema delícia. Esta mineira redescreve as sensações do quotidiano como faz comida ou como reza: “Fazer poema é tão fácil, mas é preciso garimpar de um cargueiro de livros, um livro, um só, ou de um poema um verso, um só que retenha o clarão, o som da língua divina” . A finura está em atravessar o vitral sem o quebrar, como faz o Anjo. Aí está: a vocação do poeta é tentar dizer, com sua voz, aquilo que o Espírito lhe instiga. Sendo o Espírito ilocalizável, o mister do poeta é colar o ouvido àquilo que passa, dando um nome às coisas em que tropeça: “É necessário que eu escreva, acho que é uma necessidade divina de mostrar a Sua face, o Espírito quer ser adorado, ele quer ser visto...tenho que ser dócil a este desejo divino. Não obedecer a isto é pecar, é um pecado capital, eu não sou dona disso, não posso falar: não escrever mais, isto seria o máximo do orgulho, então eu tenho que escrever” . Escrever para reter o clarão que atravessa o quotidiano que é o material da sua experiência e da sua descoberta. A poética desta mulher “desdobrável” não é a poética romântica de uma nova totalidade (Schlegel) que visa anular o curso e as leis da razão, transferindo-se para a bela confusão da fantasia, o caos originário da natureza humana, fazendo da vida uma arte e dotando de vida a arte. A sua obra não é a espectacularização da existência, uma aparência pura. Esta poética é essencialmente uma forma de atenção às circunstâncias, à casa como mundo das pequenas percepções aos vestígios da passagem das personagem principal da sua obra: Deus. Ela mistura Deus em tudo, dirão os seus detractores. Como Job, escreve: “Deus não me dá sossego. É meu aguilhão” . Ao contrário do estranhamento do mundo “O mundo está certo! Graças a Deus dá para continuar.” “Graças a Deus que sou católica”, escreve, para se demarcar dos “crentes” que fustigam as mulheres com suas leituras fundamentalistas da Bíblia “que em muita coisa é uma poética” . O que importa ao poema é a coisa como manifestação, não o comentário sobre a coisa, o discurso. O que pressupõe que as coisas falem, se mostrem a fonte de onde emanam: Deus. É Deus que se quer mostrar, ser mirado - o espaço da criação artística promove essa “mostração”, essa “expressão” da divindade. Adélia Prado não escreve para separar os campos. Não exila a linguagem do mundo, nem o mundo da linguagem, nem o mundo da experiência, nem o mundo da crença. Não desencarna. Não se alimenta do discurso político nem do discurso estético, autotélico. Também não escreve a partir da religião que anda no ar. O Deus que habita a linguagem e o real da autora de Os componentes da banda não é um deus tácito, como o são os deuses do paganismo, mas um Deus que se fez Palavra no tempo: “Tenho confissão de fé católica. Minha experiência de fé carrega e inclui esta marca. Qual a importância da religião? Dá sentido à minha vida, costura minha experiência, me dá horizonte”. Tudo é palavra para esta mulher que “não fugiu à cama e à mesa”, que “pensa quase sem palavras” e que escreve por obediência a Deus, não a sua autobiografia, mas “coisas a que torcem o nariz” (Os componentes da banda: 139). Em regime cristão, o homem fala a Deus porque Deus primeiramente lhe falou - Et Verbum caro factum est - assumindo a infelicidade da linguagem, a inabilidade do homem para articular no tempo o seu desejo (de Deus) . A sua religião é explicitamente a religião da Trindade. O Espírito de que fala é o mesmo da Carta aos Gálatas. O seu combate é o mesmo que Paulo assinala. A “carne” não é o “humano” em nós com a sua face obscura, mas a “humanidade” na sua irreversível desaparição. Na sua derrota e no seu “falhanço”: “aqueles que semeiam na carne não herdarão o Reino de Deus” (Gal. 6,8). Entenda-se: a carne é em nós essa energia constante e obstinada que se enfurece em dar consistência real à ideia de que seríamos “seres humanos” uns sem os outros. Mas a carne é a guardiã da filiação, Paulo dirá o “pedagogo”. O espírito é o movimento que puxa para a frente, a promessa é a sua única garantia. O mais notável é que esta voz singular se inscreve entre a carne e a fala. Fora da palavra seríamos como surdos à voz que toca o coração e que reaquece a carne. O corpo do sujeito é o lugar de um pacto entre a palavra originária e espírito encarnado. É através do bordo da voz, por onde a palavra nos toca que o “mundanal silêncio” (Raimundo Panikkar) se conecta àquilo que falta dizer. O corpo toma então a palavra e responde-lhe. “estou aqui”. A palavra é a visita e a doçura do Espírito: “Muitas são as formas do Espírito. Gabriel é salvador do meu corpo” (Cacos, p. 83). Quando a palavra se faz ouvir, ela quebra o coração de pedra e restaura o coração de carne. Adélia Prado não repete o erro que consiste em opor radicalmente a carne e o espírito, nem tenta substituir o movimento do espírito pela deriva da carne. A carne tem tendência para passar sem o espírito e para se autonomizar, o espírito é a capacidade para justificar a carne e para a ordenar às necessidades da vida e dos seus estados. O espírito não é um agente de “humanização”, não suprime a carne, os dois estão em competição permanente. O cumprimento da Lei está fora do seu campo. É um corpo-sujeito, sujeito à divisão e aos seus efeitos. Paulo interroga-se sobre a vida e a morte, sobre o duelo estranho a que estes dois actores se entregam no campo do corpo a vir, por interposição da carne e do espírito. O que conta é o ardor e a esterilidade que ameaçam a passagem da brisa ligeira que bate à porta e que se reconhece nos seus frutos. A cruz atravessa aquilo que é da carne e do espírito. A grande inovação de Rimbaud no poema “Soleil et chair” (abril de 1870) é de proclamar que a redenção e a ressurreição virão da carne. Irradicar a carne é arruinar todas as possibilidades de redenção. É por isso que Rimbaud gostaria de volver a um tempo pré-adâmico em que os homens possuiria para sempre a carne, o sopro, a vida. O Sonnet des Illuminations vem ilustrar esse desejo: Homme de constitution ordinaire, la chair/ n’était-elle pas un fruit pendu dans le verger, - ô journées enfantes! Le corps un trésor à Prodigue. Para reinventar o amor, Rimbaud tenta fazer tábua rasa de um passado cristão para ele pesado e estéril. Em vários lugares da sua obra se fustiga esse passado. Veja-se em particular Le châtiment de Tartuffe onde aquilo que se rejeita é mais a hipocrisia religiosa do que a religião e onde Tartufo parte Jaune, bavant la foi de as bouche édentée, Enquanto os doentes do fígado (é evidente o jogo de palavras sobre os homónimos “foie” e “foi”) Font baiser leurs longs doigts jaunes aux bénitiers . A religião é malsã, abafante e só atrai criaturas à sua imagem, paralíticas, “espéces d’enfants tordus”, “épileptiques”, que, como Tartufo, “bavent la foi mensiante et stupide”. Rimbaud, nas peças VI a IX das Premières communions, é bem mais violento do que Nietzsche, na Aurora. O que é aqui visado é o amor místico, sórdida paródia do amor físico. A carne da virgem “fourmille du baiser putride de Jésus . O amor são, o verdadeiro amor é aquele que Rimbaud celebrava em Soleil.er chair, e que reinava antes que “o outro Deus” “nous attelle à sa croix” . Rimbaud escreve a partir de umas nostalgia de Deus como a possível “clé du festin ancien”, e de uma decepção: Hélas, l’Évangile a passé! L’Évangile! L’Évangile! Bastará passar os olhos por Une saison en enfer para identificarmos uma mistura de hesitação, de sonho e de inferno que atravessam aquele que no poema diz “eu”. Um abismo separa o conjunto da obra rimbaldiana, fundada na destruição da mensagem crística, e a poética de Adélia Prado. A literatura como teologema O lugar da literatura será também um lugar teológico? Sob que modalidade? O acolhimento entusiástico do P. Chenu a um verdadeiro manifesto a favor da literatura, a introdução do P. Pie Duployé à sua obra sobre Péguy, justifica o pedido que lhe fizeram J.P. Jossua e J.B. Metz para se pronunciar a este respeito no editorial do volume 15 da Revista Concilium (1976/5). J. P. Jossua tem-se dedicado desde há vários anos a determinar entre a teologia e a literatura um campo de questões comuns, decorrentes do uso não unidimensional da linguagem . Haverá de facto uma teologia literária? Pode a literatura fazer teologia explícita ou sequer latente? A literatura, escreve o P. Chenu, “em toda a sua extensão e segundo todos os seus géneros, é a expressão plena destas múltiplas densidades psicológicas, sociológicas, linguísticas, culturais, dos diversos grupos humanos. Ela não provoca só de fora problemas postos ulteriormente pelo crente; fornece o próprio material da aculturação da fé. Não é que a história literária seja uma história da teologia; ela é um lugar de encontro ou, como dizia o velho Eusébio, elogiando o Império Romano, ela é uma ‘preparação para o Evangelho’”, uma propedêutica . Está claro que o jogo de linguagem que é a teologia e o jogo de linguagem que é a literatura não têm as mesmas regras, nem a mesma sintaxe, nem a mesma performatividade. Quem faz literatura não cura de fazer teologia explícita. Pode acontecer, é o presente caso, que o escritor, porque é crente, transporte consigo alguns lugares teológicos a que dá expressão literária. Um teólogo não escreve como um poeta, podendo ambos escreverem sobre o mesmo "topos". O que muda é o registo de linguagem de onde ambos partem para abordar o mistério da Palavra feita carne. Os textos de Adélia Prado vivem do desdobramento da literatura e da Bíblia. Para P. Ricoeur o texto bíblico deve suscitar no leitor “o desejo de se compreender a si próprio nos termos do Grande Código”. Pela virtude centrípta de uma leitura autêntica, nós recebemos o texto e nos assimilamos a ele, fazendo assim do livro “um espelho” (Liber et Speculum). É a teologia que gera o modo narrativo, sendo a ficção promovida ao papel de instrumento hermenêutico. A linguagem poética em si, torna-se cerigmática para nós . Adélia Prado não faz poesia religiosa no sentido mais comum. Para ela é a poesia que é religiosa, sagrada, independentemente das inclinações ou crenças daquele que escreve. “Tudo é Bíblias” para esta mulher que escreve a partir do maravilhamento do quotidiano, do real, que é o tema maior da sua escrita. Tudo é ligado pela unidade orgânica do texto sagrado. O clarão, o som da língua divina, a reverberação ouve-se, reconhece-se, retém-se no tumulto da linguagem que nos é dado partilhar com o conjunto dos falantes. “Dado que a existência espiritual do homem é a própria língua, o homem não pode comunicar-se através dela senão nela” (W. Benjamin, Sobre el lenguage en general y sobre el lenguage de los hombres). A linguagem é o documento humano mais profundo para dizer Deus, ou o vivo, ou a morte. E o saeculum é a manifestação da simbiose positiva entre o homem e o cosmos. A uma antropologia cosmoteântrica acrescente-se ainda o espírito. Neste casamento do céu e da terra algo blakiano a arte literária e a teologia encontram-se á maravilha. A secularidade pertence à esfera última da realidade. Nem monista, nem dualista, a sua secularidade é sagrada. A poesia está no meio de nós, como o Reino já está no meio de nós. Descobri-lo, nomeá-lo, é uma questão de olhar, de forma de expressão. O saeculum não é simplesmente aquilo a que se costuma chamar o mundo, não é o mero kosmos material, mas o cosmos vivo, a força vital do universo. A transcendência mora nas coisas, está encarnada nas coisas. O poeta responde ao chamado do Outro que fala nele. Nesta escrita, visivelmente, a caixa de Pandora do sagrado derrama-se sobre a realidade como uma chuva de figuras que restituem às coisas o seu fulgor inédito. A nossa autora acredita na sincronicidade, nas coisas que têm no seu substracto profundo uma ligação divina, não acredita em acaso. Não me importa a palavra, esta corriqueira. Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada. Em momentos de graça, infrequentíssimos, se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. Puro susto e terror. (Antes do nome) Adélia Prado irrompe na cena da literatura brasileira como uma voz quente, feminina, sensual, rompendo com o tom abstracto, espiritual e etéreo da poesia que a precede. A sua poesia inclui as trivialidades do quotidiano, caseiras, a morte obsessiva, os rituais e hábitos religiosos, ombreando com a questão de Deus ou a questão da morte, tudo podendo ser “fulgorizável” (a expressão é de Maria Gabriela Llansol), redimido. A poesia é de facto o lugar sagrado em que tudo se transfigura, em que se dá a fixação das coisas pelas palavras, como se lê nos versos de “Rosa mística” de O pelicano: Entendi que as palavras daquele modo agrupadas dispensavam as coisas sobre as quais versavam, meu próprio pai voltava, indestrutível. Para esta mulher poetizada, rezar ou criar são processos ligados estreitamente ao sagrado. O poetizar é para ela “mercê de Deus” e a teologia um acto de linguagem que tem como matéria a textualidade divina do quotidiano. O momento poético Como nasce um poema? De que encontro? O espaço do poema nasce do vai-vém assaz misterioso, às apalpadelas, entre as palavras e as coisas, aquele que fala e aquele a quem ele se dirige, a intimidade e o exterior, a memória e o presente. Qual a matéria da poesia? A vida: “essa vidinha basta” . Ora, é a vida que é também a matéria da teologia. Existe alguma semelhança entre cozinhar frango aos domingos e fazer poesia. Ambas revelam a força do sagrado. Adélia Prado não é daqueles que “lutam com a palavra”, a para quem a escrita é trabalho oficinal, doloroso parto. A enunciação poética coloca o poeta em posição de responder através da imaginação aos esquemas narrativos e poéticos da Bíblia. O mundo poético de Adélia entra em ressonância com a tessitura do mundo bíblico. Em “Oráculos de Maio (p. 73), a escritora declara assim a fonte da sua inspiração e a sua entrada em cena no momento da escrita: Sei que Deus mora em mim como sua melhor casa. Sou sua paisagem, sua retorta alquímica e para sua alegria seus dois olhos. Mas esta letra é minha. Aí esta. “Qualquer língua ao final é Deus falando, por isso nos escapa tanto, só se mostra ao desfocado olhar da poesia, à sua densa névoa, quando tudo suspende-se ao juízo e apenas cintila, em vapores d’água, orvalho, vultos movendo-se em neblina. Você pressente e teme porque a beleza é viva e te olha. Chama pelo nome ao que a procura”. Adélia afirma-se como voz que fala, livre de qualquer “angústia da influência”, mas como alguém que responde a um vocativo (Os vocativos são o princípio de toda a poesia”), com a consciência da “escolhida” que alterna os dias e as horas com a poesia inspirada. “A poesia não é minha, não faço poesia na hora em que eu quero, mas na hora em que ela me quer”. Pode dizer-se em linguística que a língua fala, que a língua me fala (fala em mim), que a língua me fala (se dirige a mim), que falo por falar (Karl Kraus falava da língua como prostituta universal), que falo sobre a língua (e sou linguista), que “falo a língua” (sujeito soberano que utiliza a língua como um instrumento). Nós “habitamos” a contradição de falar e de ser falados. A língua só fala se alguém a fala; que só fala se alguém a já falou. E todavia ninguém fala: o locutor inscreve-se na rede do sistema que lhe é exterior e anterior. Persuade-se que as palavras que pronuncia não são suas, mas de um outro, Deus em geral . Deus é a fonte da palavra que percorre este agenciamento - entenda-se organização não-subjectiva do discurso. Uma erótica do volo marca esta escrita que aparenta muitos dos seus traços com a escrita mística não metafísica - “os místicos são pessoas normais, corriqueiras até, costumam ser uns pândegos” (Os componentes da banda, p. 17) Uma das suas personagens, Ismália, diz: “o seu desejo é o desejo de Deus” (Ibidem, p. 138). Carla Soraia é uma dessa figuras da mística que quer ficar sozinha para “ver Deus”: “Fala, Senhor meu, a boca no meu ouvido, fala” (Ibidem, p. 153). Coda “Nós aprendemos através da ficção”, escreve Robert Alter . É por este caminho que encontramos um fundo experiencial análogo ao nosso. É assim que Paul Ricoeur em Soi même comme un autre define a literatura e mais geralmente ainda as obras de ficção como “o laboratório da ética”, lugar das variações imaginativas sobre o fundo da existência. Adélia Prado não é pós-moderna - nem adopta o perspectivismo radical, entra no comboio da diferenciação (secularização, pluralização, emancipação, individualização), nem abandona a metáfora epistemológica do espelho. A sua realidade é uma realidade pré-dada, reflectida, graciosa. Na perspectiva pragmática é a eficácia de um vocabulário que decide ao fim e ao cabo do seu emprego. Uma narrativa religa o presente ao passado e ao futuro. Richard Rorty liga a compreensão da contingência e da particularidade das narrativas à ideia de um sujeito autocriador e activo. Nenhum limite se impõe a esta criatividade . Nada de mais estranho à poética de Adélia que, recontextualizando a narrativa cristã tradicional no contexto do seu dia a dia em momento algum esquece que a sua condição de herdeira e de testemunha. Nada de mais estranho também à teologia. No contexto teológico, Deus, enquanto acontecimento, ou como Outro, é entendido a partir da brecha aberta pelo acontecimento na narrativa. Falar de Deus implica ter em conta a inefabilidade de Deus, implicando igualmente o comprometimento numa relação enraizada, caracterizada pelo facto de “ se abrir a” e de “testemunhar de” . Aqui não está o Cântico de um lado e a liturgia hierogâmica do outro; aqui o paganismo não é proscrito, nem o erotismo travestido; aqui a alegoria não perverte a letra - o poema é mesmo o contrário do discurso e da moral. Não cava o fosso estabelecido entre naturalismo e transcendentalismo: “tocar Pedro era tocar em Deus”, escreve em Os componentes da banda . O agora é tudo. A sua poética do mal é de facto perturbadora. A sua teologia é bem feminina na sua ousadia: Maria é o deus-mulher, a forma feminina de Deus: “Não me posso apenas com a encarnação de Cristo, porque eu, Clara, Rebeca, Gema, madalena e Cassinha não temos pênis e nossa forma concreta tem de estar em Deus, ou nos desesperamos” (O homem da mão seca, p. 73). Mas a um poeta concedem-se não apenas licenças poéticas, como também licenças teológicas. As provocações teológicas que ressumam da sua obra fazem parte das palavras ainda por dizer. Adélia Prado inaugurou um caminho diverso nas letras brasileiras, como Maria Gabriela Llansol, de um jeito menos ligado, é certo, mas único, entre nós. E é sem nenhum orgulho que nos diz: “minha obra é importante” . Também diz, como Agustina: “eu sou divina, tenho a impotência absoluta” (O homem da mão seca, p. 8). Sem dúvida. Nunca se tinha visto assim alguém que melhor ligasse o céu e a terra, sem a violência da linguagem, obedecendo à banda, dizendo apenas: estou aqui e escrevo.
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