1 de Maio 66.

Meu caro amigo

Mande-me dizer por escrito se morreu para lhe rezar o Padre Nosso. A última carta sua que recebi era de 31 de Março!

Dou-lhe parte de que está sabida a história da Chyoglossa (1) lusitanica : o António das Salamandras disse-me há poucos dias que ela põe os ovos na terra molhada próximo à água, que me mandava os ovos delas. Porém, indo por ratos não as achou por terem já nascido os girinos; apanhou grande porção destes, mas mando apenas 4 pois os outros morreram em casa por aquele bruto não achar quem mos trouxesse.

Mandei-lhe uma grande descompostura e parece-me que me deixará. Tenho os três Girinos em aguardente; todos têm barbatanas, apesar de uns as terem maiores do que os outros. Tenho acondicionada uma fêmea do sapo cultripes. Ela difere muito do macho mas na mesma proporção da fêmea do sapo ordinário para o macho. Descobri numa fonte pública próximo a Mainça (2), além das Planorbis (3) que aqui tenciono mandar-lhe, grande quantidade da Valvata piscinalis (4). Fui à Geria há poucos dias na companhia do nosso Paulino; matámos muitos pássaros dos que há já no nosso Museu. Não pudemos aproximar-nos das ribeiras por causa da muita água. Descobrimos aqui numa quinta próxima a esta do Espinheiro um par de Emberiza hortulana (5). Matámos a fêmea com a qual o Paulino está muito sôfrego e não a quer ceder para o nosso Museu.

Temos ido muitas vezes à tal quinta, porém não matámos o outro macho. Tenho pedido o sapo B. igneus (6), e espero com algum fundamento obter este, e salamandras da espécie nova (7). Continuo pedindo ninhos que faltam etc..

Finalmente estou o mesmo bicheiro que sempre fui. Tencionava ir hoje mais o Paulino aos montes do lugar de Dianteiro (8), o tempo não deu lugar. Breve iremos às Valas (9) ou Paúl de Antuzede (10) próximo à Geria.

O Paulino anda fazendo colecção de aves para ele; tem um criado rapaz que tira as peles muito bem. Gosto deste entusiasmo do Paulino porque tenho nele um bom companheiro nas excursões, e ele sabe que tudo o que eu apanhar, que seja preciso no nosso Museu, não vai para a colecção Paulina.

Visto não me ter escrito não sei como passou em Sintra, nem como vai de saúde, nem de colecções, nem de jornal científico, que deve estar próximo a nascer (11). Dê-me notícias suas e do nosso Museu.

Já lhe agradeci o despacho do meu afilhado. Estes Planorbis foram achados na Quinta de Mainça freguesia de Santo António. As Valvatas foram achadas numa fonte pública próxima à dita Quinta nesta mesma freguesia.

Tenho pedido salamandras apanhando poucas de cada vez, não as mandam e elas morrem. Somente agora me lembra mandar vidros com aguardente para deitarem as que aparecerem. É este o meio a empregar que deve produzir bom resultado. Tenho mostrado salamandras a gente da serra que me diz conhece não só estas mas outras espécies que eu acredito serem novas pela descrição que delas fazem.

Esquece-me não sei o quê a comunicar-lhe, fica para outra vez.

Dê notícias suas ao seu

Amigo Bicheiro-mor


(1) Chioglossa, a salamandra.

(2) Lugar da freguesia de Santo António dos Olivais, Coimbra.

(3) Mollusca.

(4) Mollusca.

(5) Passeriformes - sombria.

(6) Bombinator igneus - sapo de ventre cor de fogo.

(7) Além da Chioglossa, não há mais nenhuma espécie nova de salamandra registada para Portugal.

(8) Há dois em Dianteiro em Coimbra, um na freguesia de S. Paulo de Frades, outro na de Torres de Mondego.

(9) Lugar da freguesia de Paços de Brandão, concelho da Feira.

(10) Paúl de S. Facundo, na freguesia de Antuzede, a 8 Km de Coimbra.

(11) O primeiro número do vol. I do Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes, da Academia Real das Sciencias de Lisboa sai em 1866.