ROMÁRIO E A DEMOCRACIA
Romildo Sant’Anna


Não me custa confessar que sinto ligeiro desconforto, e até indignação, com os fiascos da Seleção Brasileira. Torcedor romântico, sou dos que vibravam quando Fiori Giglioti exaltava: “Vai, Brasil, que a nossa fé te empurra!”. A Seleção Canarinha nos pertencia; não era a do “professor” Fulano de Tal, mas do Brasil. Mas muitos fatos arrasaram o futebol. Os militares se apossaram da Seleção de 70, semeando ufanismo entorpecente e prorrogando a ditadura. Nesse vácuo, oportunistas se apropriaram dos times, tornando-se cartolas, elegendo-se a câmaras e assembléias legislativas, em desdém à boa-fé popular, e conseqüente fraude à democracia. E, lesando a democracia, e, com a máscara da abnegação, diretorias e treinadores corromperam o esporte, impuseram medo e submissão aos jogadores. Deram uma ova às torcidas que, em desesperada catarse, ainda esgoelam inutilmente nos estádios.

Há muito o futebol perdeu os modos de Brasil; há muito desapareceu o esporte do alvoroço e garra, do amor pelo distintivo da equipe, como uma das formas genuínas de nossa antropologia do afeto e paixão. E se a mão de Zumbi enfrentou o escravismo, como Spartacus se fez símbolo da revolta do escravo contra o império de Roma, Romário parece a pedra no meio do caminho, a sublevação da ralé – o jogador –, contra a tirania e esperteza no mundo do futebol, e os ultrajes à rigor que levaram nossos times à depressão e decadência. O atleta comum, hoje em dia, humilha-se, baixa a cabeça, põe as mãos para trás pra dirigir-se ao árbitro; é proibido de manifestar opiniões relacionadas ao clube. Se faz um gol, corre a abraçar o técnico, em gesto servil e bajulador. O jogador tem ceifada a individualidade, pra sobreviver no contexto violento dos interesses laterais e tenebrosas transações de treinadores, juízes, olheiros, patrocinadores e dirigentes de equipes. E, assim, se viu mortificado na aura e no encanto desportivo, desatando-se daquele que lhe é semelhante: o torcedor. Coisificado como mercadoria descartável, num mundo neoliberal, nem se dá conta de que ele é o protagonista, mesmo que por hora e meia de ilusão, do mais arrebatador espetáculo popular do Brasil.

Romário, meio crioulo, meio cafuzo, com estatura e alma de caboclo invocado, tem a audácia de enfrentar o sistema. Não se curvou a Lazaroni, e houve fiasco na Itália; empinou contra Parreira, que o arrancou da equipe, mas teve de chamá-lo para o jogo decisivo de 94. A convocação de última hora, todos sabemos, levou o Brasil à conquista do tetra nos States. Luxemburgo de veiculadas trampas cortou Romário dos jogos de Sydney... e novo fracasso, após o fracasso na Copa de 98... sem Romário. Aí veio Felipe Scolari, cacifado por Collor, como técnico em Alagoas. O conhecido Felipão, de azulados olhos infantis, possui ares que lembram Garrastazu Médici sem botas. E, nos usos e costumes da casta de treinadores e da CBF, encasquetou com Romário pela “indisciplina” de exercer o direito civil de dizer sim, e não e talvez, quando lhe parece legítimo.

Romário é flor que não se cheira; não faz parte da “família Scolari”, tampouco de seu “receituário de bons modos”, à moda do pai-patrão. É insubmisso e preguiçoso na hora dos treinos, mas que não recusa a pelada de arrabalde. É o gozador que não perdoa Zagallo, e faz-lhe a caricatura na porta do banheiro; é o atleta sexuado que gosta de se divertir e flertar as meninas, sem representar o papel de eunuco e bonzinho; Romário é o rico que goza a vida com a pressa de quem saiu da miséria, mas – e isto é o que interessa – marcou mais de 300 gols após os 30 anos de idade, superando nesta fase o próprio Pelé. Romário é o que superlota estádios, é o que faz jogadas instantâneas, surpreendentes; é o que atormenta goleiros e o adversário que vier. Não encarna o “bom selvagem”, conveniente às leis da burguesia. Mas, com os atributos da contestação, é o artilheiro cobiçado por qualquer torcida.

À parte a moral conservadora que o quereria “disciplinado”, o que vale no futebol é a explosão mágica do gol. Romário reflete o mito do mau caráter, do provocador e fazedor de alegrias. Expressa a indignação subconsciente em torno à arrogância dos treinadores, à ditadura dos dirigentes, às cifras astronômicas envolvendo publicidade, e ao circo em torno à Confederação Brasileira de Futebol. Afora os treinadores profissionais ungidos pela “sapiência desportiva”, dizem que somos outros 170 milhões de técnicos amadores. Desses, sou o último dos últimos da geral. E sinto que, sem Romário, a Seleção parece enfraquecida, subtraída de nós. Nossa fé já não consegue mais empurrar essa mala de desdém à vontade do povo.
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Romildo Sant’Anna,  livre-docente, recebeu o prêmio “Casa de las Américas” – Havana. 
É curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’
PORTUGAL