MODERNISMO E LÍNGUA NOSSA

a Odécio Lopes dos Santos
e Dinorath do Valle


"Ouviram do Ipiranga as margens plácidas / de um povo heróico o brado retumbante..." iniciam, como todos sabem, a letra do Hino Nacional. Aquele grito do povo heróico, filtrado pela inteligência e requintado gosto das elites há 80 anos, chega às margens do Ipiranga (e a nossos ouvidos) numa embolada de inversões e alterações retumbantes da seqüência lógica das frases. E, como símbolo nacional que é, parece denotar um mundo às avessas, um país dos contrastes e contrários, no vazio que separa a minoria oficial, da imensidão exclusa e dominada: a população. Decerto que esta não foi a intenção do letrista Joaquim Osório Duque Estrada ao escrever os versos de nosso hino, diga-se, de melodia arrebatadora. Apenas, e nos moldes parnasianos e elitistas, consagrava o que alguns sabidos consideram o "padrão culto da Língua Portuguesa", a alta poesia no recanto das belas artes. Se o povaréu não a entende, não a memoriza, ou tropeça em seus preciosismos vernáculos - conclama a mesma elite -, o povo que se dane! Ele é mesmo a plebe infante e rude, nota zero em patriotismo e gramática.

O povo, alheio às elites, é que fala gostoso o português do Brasil - diria Manuel Bandeira. Sua gramática provém da prática diuturna, da transfusão de culturas e raças, dos experimentos lapidados pela estética da oralidade.

Expressa-se por meio da percepção viva e intuitiva da Língua Brasileira nos eitos do cotidiano; realiza o dizer estilístico na sonoridade que é quase música, na semântica que diz um tudo com muito pouco. Só os humildes, os verdadeiramente cultos e poetas é que mergulham na alma de nosso idioma crioulo, acaboclado, em suas delicadas nuanças e sentidos. Os demais (ainda que sejam menos) apenas tentam, e corrigem os outros, brandindo fórmulas arcaicas e a tábua rasa da velha e autoritária gramática, a camisa-de-força tantas vezes mal-ensinada e mal interpretada.

Há muitos casos de anacronia verbal, e estes nem sempre configuram despreparo lingüístico; às vezes decorrem de vícios históricos que penetram na sociedade.

Dá cãibras o linguajar arcaico de certa literatura acadêmica, principalmente nas ciências humanas; escondem-se sob o manto das nomenclaturas pra fingir erudição e ciência. Fato notável é o "dialeto forense" de certos tribunos e doutores da lei. Além de uma candente obtusidade carrancuda que pressupõe distanciamento, em geral não utilizam os meios da linguagem como ferramenta de eficácia científica, filosófica ou profissional, mas como gerenciamento retórico de uma pseudocultura e categoria social. Numa linguagem ultrapassada, ao modo tradicional dos brancos europeus, ressuscitam ares dos fidalgos de antanho. Configuram-se arautos anacrônicos numa sociedade brasileira que precisa modernizar-se. Mesmo os diplomas, expedidos por universidades boas ou ruins, ainda são grafados com letras góticas, em ilusão de seriedade e distinção ou efeito ornamental. No computador de hoje, insistem em prefigurar-se na cor sépia, como nas fotos esvaídas, ou nas velhas e agitadas "letras de médico". É por meio delas que esses "doutores" se distinguiam e ao mesmo tempo se esforçavam por revelar a casta genitora e a nobreza togada das velhas oligarquias rurais. Ah, flor do Lácio, inculta e bela!

A sensibilidade de Gilberto Freyre constata que, há séculos, se deu o "amaciamento da Língua Portuguesa", pelo contato das três raças, especialmente do escravo negro com a criança branca. Realizava-se uma das comunhões etnológicas da mestiçagem que veio a fazer do Brasil, o Brasil de hoje. E foi a transculturação que nos desligou do português meio estranho para nós, e nos tornamos antropologicamente brasileiros no idioma. Em 1922, enquanto se oficializava a letra do Hino Nacional, iluminavam-se também as primeiras chamas de Modernismo. No brasileiro moderno é que escreveram de Graciliano a Lupicínio, de Noel a Guimarães Rosa, de Lima Barreto a Lourival dos Santos, de Sérgio Buarque a Antônio Cândido, e tantos iridescentes artistas e cientistas, juristas, retóricos e jornalistas, publicitários, empresários, políticos e educadores... Sem ranço de atraso, esses redatores comungam a mais profunda consciência idiomática, de pertencimento e nacionalidade, mesclando erudição com a "língua errada do povo, a língua certa do povo", numa inscrição rigorosa, criativa, delicada e musical que, macia, "desmancha na boca" - como diria Freyre -, e penetra gostoso na identidade nacional, na mente e no coração brasileiro.


Romildo Sant'Anna, escritor, prêmio 'Casa das Américas' (Havana), é curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' - São José do Rio Preto, Brasil.



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