CRÔNICA DE ESQUISITOS

Ai, como tem gente esquisita no mundo! E, pra poupar-nos, você e eu (os mais evidentes dos esquisitos do Brasil), falemos de João Gilberto. E, antes que alguém comece a me vaiar por desacato (afinal, não se mexe com monstro sagrado!), remeto à frase do próprio João, que citava Tom Zé, no dia, segundo eles, que a bossa-nova re-inventou o Brasil: “vaia de bêbado não vale!” O incrível João é sedutor pacífico – segundo o mesmo Tom –, que conquistou mais terras que Alexandre da Macedônia, Dario e Bonaparte. Instalou-se em extensões territoriais maiores do que o Império Romano em seu apogeu. Mas, ah, como ele é esquisito!

Certa vez o repórter lhe perguntou por que grava sempre as mesmas músicas. E João: “Ah, já tem muita música no mundo, não precisa fazer mais. Então, vou aperfeiçoando aquelas mesmas”. Mas admiremos a legenda, lá bem novinha, no nascer delicado da bossa-nova. Inacreditáveis as exigências de principiante ao gravar “Chega de Saudade”. O mundo era inda garoto, nos tempos de 58, e a Caetano lhe soavam esquisitos os talhes de fina estampa (imitando a João). Conta que foi conhecê-lo, em Salvador. Chegou à casa de João e lá estavam mais uns dez, encantados, prestes à maravilha. Cochichavam, na agitação da expectativa, no respeito sacrossanto do instante magno, rindo baixinho. Lá pelas tantas, aponta em silêncio, no topo da escada sombria, nada mais, nada menos quem? João Gilberto! Pena que não desceu ao convívio concertado dos mortais, nem propiciou frase que seja. Apenas mirou-os, acolhedor, fraterno, causando mágico arrebatamento. Mas parecia estar com sono, e se foi afastando, aéreo, na discrição perturbadora das penumbras... O silêncio disse tudo: aquela aparição encheu os ares de algo transcendental, profético, norte do que seria exportado aos recantos mais imbuídos de Ipanema. João é assim enjoado, enigmático Álvaro de Campos, em pessoa. Ainda hoje nenhum porteiro de prédio o conhece. Dizem que se alevanta de madrugada, passeia de carro pela orla de Copacabana, até o dia cismar em aparecer. E, antes de o sol alumiar, recolhe-se outra vez, elevando-se calmo, pelo elevador de serviço.

Esquisitice também se faz no trivial. João, cê sabe, foi cunhado de Chico, genro de dona Maria Amélia e Sérgio Buarque de Hollanda. Conta-me a doce amiga que, num almoço de domingo em família, Sérgio se havia quase uma hora a consertar uma tomada de luz. João Gilberto impacientou-se e pronunciou com voz retroativa e compassada, sussurrante e quase musical: “seu Sérgio, se o s’or não fosse tão inteligente, seria tão burro!”. Foi um abafo completo, a chave de fendas tombou resoluta. Os meninos, prodígios e brincalhões, entenderiam naquela frase o similar a uma visão do paraíso, o arranque tímido e carismático de um paradoxo indizível, algo que vem concertado nalém dos cantos do infinito, pra redimir e despiorar a vida cá na terra.

Sobre o disco “Getz Gilberto”, Ruy Castro conta que João, ordenou: “Tom, diga a esse gringo que ele é um burro”. E Tom Jobim transmitiu em inglês: “Stan, o João tá dizendo que o sonho dele sempre foi gravar com você”. Respondeu Stan Getz: “Engraçado, pelo tom de voz, parece que ele quis dizer outra coisa!” No mesmo livro “Chega de Saudade”, narra Ruy Castro que, num show em Belo Horizonte, João trancou-se no banheiro do hotel e não havia quem o fizesse sair. Pacífico Mascarenhas, o produtor, chegou a pensar em arrombamento. Em cima da hora, e mansamente, João abriu a porta... e deslumbrou a platéia. À saída, um rapaz lhe fez elogios ao violão. “É seu, pode ficar com ele”, disse. O rapaz não quis aceitar, mas João Gilberto insistiu: “Faço questão, leve de lembrança”. O moço ficou radiante. Só não sabia que o instrumento que ganhara não era o de João, mas de Mascarenhas que, pacífico, assistia a tudo e ...não iria desautorizar o generoso gesto, a alma samaritana do artista.

Noutro livro de Castro, “O Melhor do Mau Humor”, atribui-se a João: “No Brasil, até os canarinhos desafinam”. Fofoca! Tudo porque João é João, e canarinhos são canarinhos. Em 99, João irritado com o eco de uma sala de espetáculos, fez caretas e mostrou a língua à platéia. Houve, digamos, uma contradição de humores. Esquisitos? Ninguém, ou todos nós: você, Estelas, eu, Alziras, Joões e até os passarinhos. No demais, futricas e gracejos da imprensa, de cronistas e ornitólogos de mal-humor. Afinal, “de perto, ninguém é normal”, consolaria o poeta. E, em definitivo, as vaias de bêbados, na boca de cena, ali, no gargarejo, não valem!

_____________

Romildo Sant’Anna, cronista em horas vagas, é curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’.

PORTUGAL