ROMILDO
SANT'ANNA

Entreveros do Bonfim

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Um tema constante na maré das artes é a angústia do criador frente à própria criação. Um fazedor livre dessa ansiedade – poder-se-ia dizer –, dificilmente será um artista. O grande modernista Rubén Darío escreveu: “yo persigo una forma que no encuentra mi estilo, / botón de pensamiento que busca ser la rosa”.  Michelangelo acreditava que a escultura reside pronta, serena, no interior do granito.  Seu ofício era manejar o cinzel pra que da pedra avultasse a obra da natureza.  Em êxtase, vagava no quintal informe das pedreiras na busca de um Moisés aprisionado, tão perfeito que, dado à luz, só faltou profetizar-lhe umas palavras.  Compositores vasculham acordes, timbres, cadências e emoções que se deitam em ideais partituras. João Cabral, penetrado de aridez e caatinga, esmerou-se na “educação pela pedra”, e erigiu poemas chispantes de sonoridade.  Outros modulam pincéis em aspas, traços e cruzes e, como se o brilho duma luz puxasse o outro, descortinam a beleza.  Lúdicos, acendem o entrevero dos achados, o bel-prazer talentoso do improviso. E, nessa hora, “um botão de pensamento busca ser a rosa”.  A perseguição dessas astúcias e meios, cultivados e enovelados de idéias, emoções e instinto, parece definir o temperamento fazedor em Valdenir do Bonfim.

Pesquisando clássicos, imagens parietais e grafitos urbanos, transfigurando resquícios de infância, auscultando os sinais da natureza no entardecer do sítio onde vive, Bonfim não transige de ser autêntico, liberto. Abolindo geralmente a tela em branco, usa plataformas variadas, coletadas ao acaso nos caminhos. Pode que seja uma caixa esquecida, um tampo, roda ou lasca de madeira, uma placa enferrujada, tábuas lanhadas de intempérie ou superfícies que alembrem situações imaginadas ou vividas. Recompõe-nas como marceneiro. E as tem, defronte, a pedra bruta esperando pela forma.  Coloca-as sob o refletor, contempla-as, e espera que elas mesmas solicitem intervenções.  Após, uma viagem espontânea, mais sensorial que emotiva, mais intuitiva que lógica.   Surgem cores chamuscadas por tochas, maçarico ou punhados de terra. Abre-se ao jogo das texturas de arames e pregos estridentes, materiais encovados, contorções de latas e cipós, monturos de toda espécie, linhas de convergências e de fugas, formatos de aparências conhecidas, na procura de um súbito inexplicável e da invenção pela liberdade da busca.  Postado frente a seu objeto, reage como o sonhador entrevê um desenho nas nuvens, ou a criança rabisca na poeira. Brinca com harmonias, ritmos, geometrias, funde os códigos. Entretece pegadas rituais, rastros etnoculturais e lendários, inscrições rupestres, palavras sobrescritas, o grafismo de letras e números, tudo em aparente tensão entre o que enxerga e o sensorial adivinha.

Bonfim, desprendido da vaidade romântica dos demiurgos, prazeroso e boa-praça, faz do desapego às normas seu ardoroso afinco. Hábil na penetração dos labirintos ingênuos dos sentidos, em método forjado na pesquisa, não se verga à boniteza comercial e aos padrões simplificados do gosto.  Seus objetos prescindem do ornato das molduras; ficam bem no acorde da luz e no contato com as pessoas. Leal a seu entorno sertanejo, à gesta do povo, ao hálito irresistível de sua terra, consubstancia o comum pra refletir o insólito, o transitório no afã de eternizá-lo. Afora isto que, vez por outra, se converte em refinadas mostras “de arte”, sobrevive do trabalho numa estamparia de roupas. Lambuza-se de tintas.  Na angústia de eterno aprendiz, certa vez indagou se o vejo como artista.  Comovido pela estima embutida na pergunta, respondi: acho que sim! (Valdenir do Bonfim, Três Fronteiras - SP, 1959-).

 
 
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Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.