DE LA CRUZ CORONADO
realizado a quatro mãos, com Antonio Manoel dos Santos Silva


Dia destes o vimos numa esquina da cidade, o "de la cruz coronado". Caminhava na cadência de um verso de Garcilaso, arqueado, aligeirando na forma o chumbo de sua matéria. Subitamente, como fulguração, nos veio uma exaltação de Paulo Leminski, seu ex-aluno: "Gostaria de ter escrito um verso dele: Silêncio, palavra da pedra".
Esse homem que atravessa percorreu muitas ruas do mundo: Quintana de la Serena, Sevilha, Granada, Toledo, Madri, Coimbra, Roma... O mesmo destino que moveu ilustres antepassados o empurrou Atlântico afora, deixando-o tão brasileiro quanto espanhol. Não veio pra conquistar; nem queimou navios para impedir-se o retorno. Como contraditórias imagens barrocas, não precisou voltar à Espanha, porque dela nunca saiu, no coração da alma. Talvez porque o Brasil lhe revelara a extensão da velha península, no germe de sua formação agreste, mágica e resistente.
Esse senhor que vai pela rua anda elaborando poemas?, ou se recorda de seus versos publicados? Em que nicho existencial guarda o prêmio Rosa de Ouro de Poesia, que lhe outorgou a Suécia? Será que, octogenário, dá importância aos sucessos da juventude? Caminha pela cidade... Quem sabe dos versos que anda compondo, ou por onde navega sua alma? Que nova língua está aprendendo? Em que silêncio de pedra se desdobram em outra lírica suas odes que Coimbra admirou? Imaginemos um título: "Rio Preto, Sol e Paisagem". Mas é certo que não: o velho arqueado é plural no imprevisto! Iremos vê-lo, hora destas, numa conferência magistral sobre o Quixote ou João Cabral, Grécia antiga ou Novo Testamento. O velho resoluto irá surpreender-nos numa intervenção polêmica e universitária, no rigor conceitual do novo ensaio sobre arte que está a escrever, ou no seu feixe de talentos para descobrir a palavra exata, e com ela penetrar, como agulha de pincel, na essência do mundo.Não, não se repetiria em algo que lembrasse a "Coimbra, Pedra e Paisagem", ou sua "Primavera Austral", ou seu "Anjo Gabriel"..., e tantos escritos.
Em Rio Preto se move um varão silente, no outono caloroso que é a imagem do outono dele. Esse é o professor, e nos deu a chave de pintores e poetas, da vida e do sonho... Explicou-nos o segredo de como personagens exemplares refinam o que os homens grosseiramente balbuciam com palavras toscas e frases rudes. Se alguns acham que existimos porque pensamos, o nosso professor pensa que existimos porque amamos. E se o ódio existe, ele não se explica pela existência inerente do mal, mas porque há circunstâncias que nos tornam gêmeos de alguma junção misteriosa, de um drama engendrado no coração da treva.
Sob o sol que ironiza o outono, e com a mesura de passos regulares, lá vai o professor recurvo, voltado para seu pórtico de dentro. Com atributos de mestre, foi ele que nos ensinou: em poesia, o som é sentido; uma montanha precipita sobre o Tejo, trazendo em correnteza os ritmos de El Greco e os brilhos de Góngora, para encontrar-se, noutra paisagem, com Fernando em pessoa. Quando for tarde, decerto em outra rua da cidade, esse homem, como Borges, relembrará Quevedo, e o epitáfio da sangrenta lua, que estará subindo, crescente, de vestido engomado, e quase cheia...
Na esquina, vemos de relance o nosso professor. Pouco atinamos dele. Na realidade - ele emendaria -, de nada o sabemos! - lembrando Sócrates -, pra nos fazer docemente irritados. Do mesmo jeito que nos impacientava remendando nossos textos, solicitando trabalhos rigorosos, e estudos, e até decorebas, e exigindo coerência no pensar e no dizer, e no cultivo da lealdade, do amor e franqueza. Dele ficou em nós - e propagamos a nossos alunos - a docilidade do amigo. Angariamos dele, em Ortega y Gasset, os primores do vulgar, a beleza das coisas comuns, a sonoridade candente do cantar do povo, a força expressiva de Dolores Duran, Noel, Cartola e Caetano e, ao mesmo tempo, a luz lampejante de El Greco, os panos de Zurbarán, o místico em San Juan de la Cruz, o "cante jondo" de Lorca, os espaços multiplicados de Velásquez, e a garganta e o peito andaluz rasgando a terra, e aflorando em tantos timbres do Brasil. Nosso professor transita no silêncio da pedra, nos 82 caminhos de sua estrada, e na lógica coesa da poesia, canções e cores. Assim-assim, como num verso que Leminski (ou outro poeta) gostaria de ter escrito. E antes que desapareça, no rebuliço da calçada, o saudamos comovidos: Ei, Guillermo!
Sumiu, encantado, no meio do povo. Olhamos um para o outro e, os olhos nos olhos, ficamos a contemplar o som do silêncio: palavra da pedra.

Antônio Manoel dos Santos Silva, livre-docente, pesquisador de literaturas de língua portuguesa e hispano-americanas, foi reitor da Unesp - Universidade Estadual Paulista 'Júlio de Mesquita Filho" - São Paulo, Brasil

Romildo Sant'Anna, livre-docente, escritor, pesquisador de cultura popular, foi professor de História da Arte da Unesp - São Paulo, Brasil.


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