GUERRILHEIRO HERÓICO

O trecho de uma cantiga rural venezuelana, do poeta e compositor Simón Díaz, é metáfora de um sentimento reprimido de insurreição, por vezes estrondoso, por vezes em silêncio, que perpassa as veredas do mundo hispano-americano: “anda, filho, vai à casa / e me traga a carabina / pra matá esse gavião / que não me deixa galinha”. É a voz do lavrador afrontado, invadido e aviltado pelo predador potente e rapinóia, a sugar-lhe a força do braço e confiscar-lhe o alimento, na lida de existir e resistir. O campesino conscientiza-se da penúria que o persegue, e se alembra da miséria antepassada; tem o vislumbre de que a injustiça que o condena ampara-se na lei que prediz como normal o lobo devorar o cordeiro... o rico espoliar o pobre. E, no momento crucial, pede ao filho a chumbeira, pra dar cabo ao gavião insaciável. Essa cantiga alenta um sonho, alastrado pelos quatro cantos latinos da América, e que enxergou na luta armada a razão plausível de enfrentamento ao neonazismo e prepotência imperial norte-americana. Ah, o vampiro USA o sangue de gente, engraxando a corrente de seu capital!

Estava em Cochabamba, na Bolívia, em 97, e acompanhei por acaso um fato emocionante: após 30 anos, foram localizados, numa vala clandestina, os ossos de Che Guevara. Depois de tantas lutas, nas selvas e altiplanos do continente, Che foi ferido e capturado pelo exército boliviano, dia 8 de outubro de 67; na manhã seguinte, os agentes da CIA decretaram-lhe a morte. Em Vallegrande, local do fuzilamento – li nos jornais bolivianos –, nasceu uma figueira que os mestiços da região a têm como um totem de veneração; numa prancha de pedra, onde o corpo de Guevara ficou estendido, ainda hoje colocam-se flores, e os peregrinos se ajoelham em preces e orações. Tantas vezes perseguido e deportado, morria jovem o médico e revolucionário argentino, que se dizia “hermano de sangre” de todos os oprimidos do mundo. Ali, naquela hora, nascia o mito.

Ainda que muitos se calem por omissão, temor ou interesse, Che Guevara é o herói hispano-americano por excelência. Seus diários de campanha, poemas, discursos, cartas de amor, enfim, suas frases e palavras de ordem se fizeram legendárias. Por mais que lhe façam a censura, e por mais que os “enemigos yankees” o combatam, mesmo depois de morto, digladiando contra o fantasma, não há um único evento libertário no mundo civilizado em que a figura de Che não se faça presente. Seu nome aparece inscrito nos cartazes; sua foto, em camisetas; suas palavras, nas faixas, e seu idealismo revolucionário, na alentada marcha dos corações e pensamentos.

Em todas as pontas de todas as estrelas, Guevara é símbolo de resistência e indignação. O rosto altivo, misteriosamente meigo, e o olhar pensativo e rigoroso parecem apontar para um mundo que há de vir, justo e fraterno; a boina preta emoldurando a cabeleira solta parece exprimir a dialética do equilíbrio e da paixão; a estrela que lhe sobressai na cabeça parece indicar a utopia do inatingível, na dimensão do amor. A imagem realizada por Alberto Korda (1928-2001) é emblema do que seja um retrato fotográfico, vindo a tornar-se a foto mais reproduzida em todos os tempos. O talento do artista cubano, capacitando ao máximo a mecânica de um filme em preto e branco, conseguiu imortalizar a razão do espírito, e dizer, penetrante, quem foi e continua sendo aquele homem de fibra, guerrilheiro em corpo e alma, e fervilhando nos desejos de nossa imaginação.

A ação desse Che é símbolo pulsante que ultrapassa fronteiras. Zarpando em barcos, cavalgando pirambeiras, atendendo em leprosários e povoados indígenas, alfabetizando companheiros de guerrilha, esgueirando em planícies e montanhas, discursando em plenárias clandestinas e na ONU, foi vida e continua mito, Ernesto Guevara. Alguns que seguiram a luz de sua senda são hoje deputados, senadores... ministros. É que, apesar dos ódios, tiranias e ambições, também liberdade tem a força do mito. No caudal da existência, por interesse ou comodismo, uns vencem na vida porque dizem “sim”; outros dignificam a existência coletiva e o sentido heróico do verbo vencer, porque têm a coragem e o discernimento de dizer “não”. Imitando exemplo altíssimo, oferecem à história o sacrifício da própria vida. Aqueles tentam fabricar e moldar os seus destinos; estes forjam, transformam e sedimentam os símbolos, valores e anseios, na gesta fundamental de sua gente. Em “Dentro da Noite Veloz”, Ferreira Gullar concebeu uma das mais belas metáforas: às margens do Yuro, na Bolívia, quando recebeu o tiro que o machucou, aquela hora mágica “explodiu em pássaros”. Eia, bem aventurado Che, do coração maior que o peito, na nostalgia sublime de que se deve endurecer, sem perder a ternura, jamais! (Comandante Ernesto Guevara, el Che, 1928-1967).

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Romildo Sant’Anna, escritor, livre-docente, é curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’.