ROMILDO
SANT'ANNA

Canções da Cidade

O crítico das artes Herbert Read observou que cada ângulo de visão sobre o mundo é uma maneira nova de contar o mundo. Isto põe em discussão a objetividade de um filme documental. Classificável como documentário é “Canções de uma Cidade” de Fernando Marques. Realizado para DVD e provisoriamente distribuído entre amigos, o filme apresenta senões característicos ao baixíssimo custo: variações de luz pelo choque de sistemas de cor, canções executadas com relevância aos sintetizadores. Mas, nem mesmo isto compromete a intencionalidade e subtrai os méritos do filme.

Fernando Marques é músico, cidadão multimídia e, além de tudo, um espião confidente de sua cidade. Os mesmos olhos que a espiam contam-na, transfigurada pelo fazedor artístico. Com a convicção de que a urbe não são formas de concreto mas seus habitantes, o autor revela a aldeia oculta que se almeja cosmopolita, o transeunte evidente que nem sempre enxergamos. Graças ao apurado senso rítmico irmanando imagens e melodias, e à economia de elementos que o aproximam da síntese poética, o filme é pungente, reflexivo e sonhador. Realça o ser e estar dos cidadãos no mundo, parece que despidos do parecer e possuir. Convertidos em personagens, avultam-se na glória autêntica de ser gente. Para tanto, na delicada atitude de não se colocar acima do próprio filme, Marques abole o narrador tradicional e deixa que falem por si a câmera em seus movimentos e artifícios de montagem, e que digam por si os moradores, em gestualidades, expressões físicas, sonhos aparentes, andares pensativos e contemplações da existência.

Alegretos dissonantes, sambinhas e singelos acalantos compõem a trilha musical, indissociável das cenas e seqüências. Constroem um tecido de blocos temáticos tão sensivelmente costurados que, quase sempre, possibilitam ouvir-se a imagem e visualizar a canção. Nesse clima de representações, o autor suscita sua elegia a Rio Preto, terna, triste, nostálgica e esperançosa. Faz evocações carinhosas a lugares e tempos, realça viventes que se agregaram à recordação afetiva. Cada qual tipifica um nosso lado escondido: o desatinado, o galanteador, o solitário, o enternecido, o imigrante, o que perdeu, o que ganhou e os que muito ou pouco esperam da vida. Em cada criatura, o vulto que traceja o quadro pulsante da cidade. Além do que se vê, pelo imagético de Karfan e Toninho Cury, e assessoria criativa de Diego Felipe, Cristiano, Gustavo Marques e Édson Venâncio, músicas, formas e vozes interagem polifonicamente e se complementam: Samba para Paulo Moura, o rádio de Roberto Souza, o Choro para Dinorath, a pintura de Daniel Firmino, a manhã despertando no assopro de Alexandre Macedo. “Canções de uma Cidade” é documentário em dó maior, subjetivo, universalizante, prova cabal de que a precariedade dos meios não conflita com a exuberância dos talentos. Comovente poesia.

 
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.