Caetano Veloso é sujeito de muitos predicados. Sua existência de comunicador artístico tem como domicílio o mundo das mídias: rádio e televisão, jornal e revista, disco e videoclipe, o teatro, capas, encartes e cartazes, cinema, a web, o dvd... o livro... Desde a que veio, polêmico e vedete nos letreiros de néon. Sobrepassando milênios, intimista dos Armani, esguios Orlandos e Silvas, e cantatas em blues. Não faço idéia se veiculou poesia na blitz dalgum game-art , mas certamente o fizera nos letreiros de um banner puxado por um teco-teco, ou sulcado na fuselagem etérea dum disco-voador. Em palco que se apresente, sobressai o jeito de corpo e temperança multifacetários, entrecruzando meios e formas sensíveis de linguagens. Encarna a figura poliédrica de uma peça cubista, visionária, ancestral, tradicional e vanguardista.
Quero, mediado pelo rigor, afetividade e entusiasmo da tiete, demonstrar como se potencializam esteticamente os planos inter-relacionais dos signos e os efeitos que a ação mútua de seus componentes objetivos, virtuais e estilísticos desempenham na arte do grande cancionista (1). Previno que este relato se restringe a alguns pontos salientes, ou que mais me sensibilizam, no plano verbal e sua sonoridade, num contexto em que naturalmente se articulam, na primeira instância da composição, a faixa musical pura (melodia da canção) e os artifícios apreendidos e polidos da tradição literária (letra), como um dos elementos primários de autoria da chamada canção popular. Em Caetano, devido à sensibilidade à flor da pele para a criação e interpretação musical, emaranhada pelo pendor e agudeza crítica pelas artes em geral, dificilmente sua canção pura se desata dos potenciais semânticos e sonoros da letra, sendo todos os componentes, quase sempre, essência da mesma carne ou corpo da mesma alma.
Caetano (Caetano Emanuel Viana Teles Veloso – Santo Amaro da Purificação - BA, 1942-) é filho do refinamento urbano da Bossa Nova e descendente ancestral e nostálgico de cantadores e gravadores naïfs e espontâneos do sertão nordestino; enfeixa e sintetiza, num ato transformador e antropofágico, o rural agreste, o suburbano e o cosmopolita, o nacional e o estrangeiro, no que têm de riqueza etnocultural de entrecruzamento existencial e estético, ingênuo, sentimental e marqueteiro, antigo e moderno, provinciano e universal, impresso e multimidiático, pra conceber e conceder um dos embriões fundamentais da arte tropicalista brasileira. Minhas considerações estariam desprovidas de propósito não fosse a letra pura, ela-mesma, na canção popular, uma vertente importante da moderna literatura brasileira, que se consagra no disco e se estende pelo rádio cinema, teatro e artes e entretenimentos televisivos. Não poucos artistas, deixando de publicar em livro, o fazem utilizando-se do fonograma como veículo de uma arte híbrida composta, em uma de suas bases, pelos artifícios emanados pela tradição universal da poesia. Parece que, no Brasil, a letra musical revolta a seus alvores e se apropriam do espírito das clássicas baladas líricas ou narrativas, cantigas, hinos, salmos, liras, cantatas, odes, barcarolas... canções trovadorescas... modinhas e noturnos românticos. Letra e música se amalgamam em identidade genética: a recíproca de que se compõe a canção popular. E comungam analogias construtivas como a dissonância, o timbre, a melodia, a harmonia, o motivo, a modulação, a polifonia, a entoação, o período, a cadência, a cesura, a frase, o tema e o ritmo no tempo – elemento essencial em ambos.
Em Caetano poesia deixa de ser livro, mas parece querê-lo. Por outro lado, na obra do artista, as diferenças entre palavra escrita e palavra cantada são mais profundas. Adere-se a dimensões sensoriais de significação. Em “Muito Romântico” (Muito Dentro da Estrela Azulada, 1978) o cancionista reconhece: “minha palavra cantada pode espantar / e aos seus ouvidos parecer exótica”. Entre tantas relevâncias na trama estética do artista purificado no recôncavo de Santo Amaro, uma se destaca: o extraordinário tratamento subliminar que imprime à palavra e seus segmentos fônicos ou acústicos. Mais do que um tecnicismo que infunde colorismo, simpatia impregnante e dinâmica acústica a certos segmentos, os contrastes de efeitos sonoros aliterados, à medida que vinculam esses materiais de base acústica à idéia (sentidos nocionais e objetivos), à emoção (sentidos emocionais e afetivos) e aos sentidos (efeitos sinestésicos) – responsáveis pelo brilho literário das canções –, exercem função adjuvante na relação entre a faixa verbal e os elementos cancionísticos, dando-lhe o caráter de literatura musicada ou música poematizada. Visa sempre a um processo transformador e orgânico da palavra em música.
Chamarei à recorrência de segmentos fônicos equivalentes ou análogos genericamente de aliterações , não importando se as mesmas estiverem no interior ou em posição terminal dos versos, como ocorre com as rimas. Vale lembrar que esse fenômeno estruturante se faz pela repetição sonora, e se produz como um ressôo, um eco. E, é necessário lembrar, havendo uma ressonância ou reflexão física de um efeito acústico na matéria significante do signo (mesmo que, por definição, extrapole o campo puramente lingüístico), e sendo correta como é a definição semiótica do signo, a partir de Ferdinand de Saussure, então deve haver uma espécie de “ressôo semântico” onde houver tais aliterações. Encadeia-se, a partir desse fenômeno, um remeximento nocional, um “eco de sentido”.
Caetano é um sujeito de inúmeros predicados, repito. Faz da música, poesia; pelos mecanismos da poesia consubstancia a música. Em vários momentos declara-se um artista da palavra: o poeta. Numa visão auto-reflexa do embrião de sua arte, declara: “Minha música vem da música de um poeta João / que não gosta de música. / Minha poesia vem da poesia da música de um João / músico que não gosta de poesia”, referindo-se ao entrelaçamento com João Cabral de Melo Neto e João Donato. (“Outro Retrato”, Estrangeiro - 1989). No rap “Língua” ( Velô - 1984) diz: “Gosto de sentir a minha língua roçar / a língua de Luís de Camões...” e, exaltando Fernando Pessoa, Guimarães Rosa e a própria poesia, emenda: “gosto do Pessoa na pessoa / da rosa no Rosa / e sei que a poesia está para a prosa / assim como o amor está para a amizade”. Com bom humor, reconhece os vínculos antropológicos de seu trabalho que entrelaça o lado sombrio e decadente do ethos antigo e o epos moderno e descontraído: “eu sou um escritor cujo estilo é uma tentativa de realizar o irrealizável; um Nélson Rodrigues prafrentex” (jornal Pasquim , 4.12.1969). Numa espécie de “Manifesto Artístico” encartado ao elepê Qualquer Coisa (1975), enumera caótica e laconicamente: “A subliliteratura. A subliliteratura e a superliteratura. E até mesmo a literatura”. Em 1973, manifestando conhecer a primazia do estrato verbal em sua canção, grava “De Palavra em Palavra”, em Araçá Azul , disco enveredado em diálogos com a estética e sentimentos da Poesia Concreta; em 81 lança o elepê com as treze canções de Outras Palavras ; e, no cedê Livro (1997), interpreta canções suas e de outros compositores, além de musicar um trecho de “O Navio Negreiro” de Castro Alves. Em seu percurso de cancionista, já musicara poemas de vários poetas, além de evocar e interpretar, por meio de timbres e nuanças vocais, as palavras colorizadas em vermelho, amarelo e verde do poema “Dias, Dias, Dias”, e signos visuais como círculos pequenos e grandes, estrelas de vários tamanhos, no conjunto formado por grafemas ornamentais do poema concreto “O Pulsar”, realizados para o lançamento do livro Viva Vaia Vaia Viva (1979) de Augusto de Campos. A realização “verbo-voco-visual”, como queriam os artistas da poesia concreta, do poema “O Pulsar” foi re-elaborada em estúdio para o disco Velô (1989). Ainda sob inspiração da Poesia Concreta, Caetano relê e embarca na musicalidade de João Guimarães Rosa para realizar sua “A Terceira Margem do Rio” onde escreve, acariciando a sonoridade das palavras: “Asa da palavra... proa da palavra... água da palavra... casa da palavra... brasa da palavra... hora da palavra... fora da palavra... tora da palavra... ( Circuladô – 1991). Em “O Ciúme” ( Caetano - 1987), dialogando com o poema “Motivo” de Cecília Meireles, lança o cantar de desalento: “quem nem alegre, nem triste, nem poeta / entre Petrolina e Juazeiro canta”. Em Cecília Meireles, como em tantos poetas, a partir dos provençais do século 12, poesia é o mesmo que um cantar.
Ao personificar a própria inventividade e inquietude em vários ramos da arte e das mídias, sendo criador e opinador insistente, Caetano carregou o estigma de revolucionário. E a obtusidade reinante o censurou e o expulsou para o exílio em Londres, nos tempos cinzentos da Ditadura Militar. Eu digo não ao não, eu digo: é proibido proibir , ele gritou insistente, a repetir o lema da estudantada parisiense de 68, e dando bronca nos bitolados daqui ( happening gravado com Os Mutantes, no teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1968). Desde há muito, e hoje em dia, no traquejo acumulado de artista, e na maturidade sabedora, Caetano V. é alavanca desbravadora, derrubando preconceitos e projetando arte pro futuro. Este trabalho – reafirmo – entrelaça o propósito de realçar, por meio de recursos aliterativos, o engajamento do cancionista, suas artes e ofícios, aos rumos inquietos da arte e comunicação contemporâneas. Pretende destacar os sentidos primorosos que extrai do código verbal – suas “confusões de paródia e profusões de prosódia que encurtem dores e furtem cores como camaleões” – pra recriar uma poesia-canção considerada tope de linha na chamada Música Popular Brasileira. Ofereço como aperitivo uma letra de admirável poder sensorial ou sinestésico, e em cujas linhas a aliteração do segmento “ei” suscita-nos a impressão visual de água límpida, esverdeada, tremeluzindo, e onde se visualiza, aos relances da luz e movimentos, um prateado peixe:
Peixe,
Deixa eu te ver, peixe,
Verde,
Deixa eu te ver, peixe,
Vi o brilho verde
Peixe prata...
“Peixe” ( Doces Bárbaros , 1976)
E, como complemento, pra demonstrar que os efeitos aliterativos remexem no interior do contexto sonoro e semântico, convido a perceber a reduplicação das mesmas vogais “ei”, agora sugerindo a sensualidade da curvatura de seios instigantes na imaginação de um personagem: “lEItos perfEItos, seus pEItos dirEItos me olham assim”. São os peitos, insistentes, que olham o personagem. Repare os efeitos expressionistas e a polifonia pela magistral sonoridade que pulula na construção da letra:
Rapte-me, camaleoa,
Adapte-me a uma cama boa,
Capte-me uma mensagem à toa
De um quasar pulsando loa,
Interestelar canoa,
Leitos perfeitos, seus peitos direitos
Me olham assim,
Fino menino, me inclino pro lado do sim,
Rapte-me, adapte-me, capte-me, ‘it's up to me', coração,
Sem querer ser, merecer ser um camaleão.
Rapte-me, camaleoa, adapte-me ao seu ‘ne me quitte pas'
“Rapte-me, Camaleoa” (Outras Palavras , 1981).
Volto a dizer, concentrarei meu foco no recurso semiótico que defini genericamente como aliterações e suas implicações estilísticas, recortando, no amplo espectro de enunciados artísticos, os casos tipificados e mais constantes. Elas remexem no interior da canção, às vezes imperceptíveis, como marcas d'água numa folha de papel. São tão sutis, amiúde, que só as percebemos com o método apurado e depurado da fruição sensorial, sentindo-as no contra-luz da emoção e inteligência. Um segmento da canção “Sampa” (Muito Dentro da Estrela Azulada, 1978) é bem ilustrativa dessa argúcia e sensibilidade intuitiva do artista:
Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas,
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe apagando as estrelas...
Se tomarmos a relação entre o primeiro e segundo versos percebe-se que o artista põe em destaque a brutal oposição entre o trabalho (povo oprimido) e o capital (força da grana) numa cidade como São Paulo. Do ponto de vista sonoro, o primeiro verso é dividido em duas seções que se entrecruzam: “do povo oprimido nas filas” e “nas filas, nas vilas, favelas”. Na primeira seção sobressai a dureza pela aliteração de fonemas oclusivos (“d”, “p”, “p”, “m” e “d”) combinados com as modulações em “i”, passando a idéia de opressão, apequenamento massacrante e acumulação de gente apinhada no mesmo espaço, as filas: “Do POvo OPRIMIDO nas FIlas...”. Na segunda seção, ao invés das oclusivas, sobressai a sonoridade fricativa combinada com o som “l”, sempre em sílabas átonas: “nas FiLas, nas ViLas, FaVeLas”. Caetano retrata o oprimido que, após a jornada de trabalho, entra nas angustiantes e intermináveis filas dos meios de transporte, passa pelas vilas e chega finalmente ao local de morada: as favelas. Se examinarmos com acuidade os componentes sonoros dessa seção, verificamos que a mesma realça uma lógica articulatória, do ponto de vista fônico, que se materializa em acústica e que, por sua vez, se integra na semântica: “f – l”, “v – l” e “f – v – l”, sendo o signo “favela” a síntese sonora e semântica, o ponto de chegada que congrega os componentes sonoros de “fila” e “vila”. Se tomarmos o terceiro verso, que se articula com o segundo (o capital), o mesmo também se divide em duas seções: “feia fumaça que sobe” e “apagando as estrelas”. Na primeira, o que se realça são os sons fricativos e nasal (Feia FuMaÇa que Sobe) criando-se a impressão sensório-auditiva (e até visual) da fumaça, da poluição paulistana, injetada pelos escapamentos dos veículos e chaminés. Algo assim como um intermitente “fffffffffffffffff” (feia fumaça que sobe). Na segunda seção, essa “feia fumaça”, que flui e se alastra no contínuo do tempo (repare a forma gerundiva de ‘apagando') apaga, faz perder o brilho das estrelas. Para entendermos a mágica sinestésica com que o artista arremata a relação entre os três versos em destaque, examinemos a qualidade sonora das rimas: “Favelas” – “Belas” – “Estrelas”. Houve em “estrelas” um fechamento de modulação acústica ou timbre, uma ruptura com o psicologicamente esperado pela sensibilidade auditiva: “favÉlas”, “bÉlas”, “estrÊlas”. Ou seja, quando nossa compreensão e percepção sensorial do verso atinge a palavra final, as “estrelas” já estão apagadas pela força devastadora da grana (dinheiro) e efeitos destrutivos da feia fumaça. Esperávamos “estrÉlas”, rimando com “favÉlas” e “bÉlas”. No entanto nos veio o signo em seu estado natural: “estrÊlas”. Como um mestre da inventividade sonora, Caetano atualiza a palavra tal como ela é, em níveis morfológico e semântico (estrela), redimensionando-a sinestesicamente pela ruptura e surpresa. Eis a indagação: o artista pensou objetivamente em criar esses efeitos? Provavelmente não. Cabe ele intuitivamente criar tais maravilhas. E a nós, percebê-lo.
Como a atenção quase obsessiva pelas aliterações acabou definindo a insistência de um estilo, e se concentram com toda evidência nas gravações de 1966 até meados do decênio de 1980, elas parecem dividir a obra do artista em duas fases: na primeira, realização da sonoridade pela integração sinestésica da palavra na música; na segunda, principalmente após o encontro com o músico Jaques Morelenbaum, mergulho existencial e estético que, no fundo, reflete o afã de um encontro, busca da convergência e extensão das origens: a música popular brasileira, o multiculturalismo, a etnopoesia e etnomúsica, a defesa do oprimido afro-brasileiro, o indigenismo, a integração com os povos latinos, hispânicos, hispano-americanos e o universo: Estrangeiro - 1989, Circuladô , 91 - Circuladô ao Vivo - 1992, Tropicália 2 - 1993, Fina Estampa - 1994, Fina Estampa ao Vivo - 1994, Tieta do Agreste - 1996, Livro - 1997, Prenda Minha - 1999, Omaggio a Federico e Giulietta ao Vivo - 1999, Noites do Norte - 2001, Noites do Norte ao Vivo - 2001, Eu Não Peço Desculpa com Jorge Mautner - 2002.
Em Caetano Veloso, as aliterações fomentam e tonificam a pregnância energética dos signos, de âmbito lingüístico e extralingüístico, no tecido artificioso da canção. Redimensionam, reorganizam, quer dizer, criam nova organicidade em sua obra. E apontam para o mundo de dentro da arte, em seu pendor para o interior de si e sua função de linguagem artística. Portanto interagem para realçar um comprometimento fundamental: a comunicação artística em transe intercomunicativo de vários códigos e procedimentos, e ebulição como linguagem e seus rigores imaginativos e estéticos. Examinemos oito casos típicos do cancionista.
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Aliteração: Fluência e Semantismo |
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A reiteração de segmentos fônicos (como de substâncias semânticas) cria uma relação de forte contraste com os outros componentes do verso e da estrofe, passando a desempenhar papel difuso e tenso entre conjuntura dos elementos que se reiteram e sua contigüidade com os outros componentes do contexto.
Eu pus os meus pés no rIACHO
I ACHO que nunca os tirei...
(“Força Estranha”, Roberto Carlos , 1978)
É freqüente em Caetano Veloso o artificioso jogo sonoro que emenda o último segmento de um verso com o primeiro do seguinte. No caso acima, o caudal da vida, metaforizado pelo signo “riacho” se prolonga e flui no tempo e espaço ligando-se a “e acho” [i acho] da frase semântico-musical subseqüente. No poema-canção a seguir, de natureza análoga e também escrito para a interpretação sentimental de Roberto Carlos, o segmento “ro mântico ” flui rimicamente em “u m antico mputador” para realçar, com admirável fluência e leveza sonora e surpreendente construção semântica, a sentimentalidade, emotividade e subjetivismo de um sujeito pleno de romantismo, em contraste com o pragmatismo, frieza e objetividade de um computador. Na ênfase dada pelo recurso aliterativo da rima e pelo floreado sonoro arquitetado pela modulação entonacional na antepenúltima sílaba (“mântico-mântico”), o artista põe em destaque a essencialidade de que o ser humano é uma antimáquina ou, em plena quarta metade do século 20, se “desmaquina”. Vivendo no paradoxo existencial que põe em xeque os códigos do antigo e do novo, os valores tradicionais e os cibernéticos e tecnológicos, a materialidade de um disco de música e o onirismo libertário que parece desprender-se dele (disco-voador – “eu vou fazer uma canção de amor / para gravar num disco voador...”) o personagem visualiza-se como um “anticomputador”.
Eu vou fazer uma canção pra ELA
Uma canção singELA, brasileira,
Para lançar depois do carnavAL.
Eu vou fazer um iê-iê-iê roMÂNTICO,
uM ANTICOmputador sentiment AL.
(“Objeto Não-identificado”, Caetano Veloso - 1969)
Os manuais de retórica indicam que, num texto em prosa, devemos evitar a rima, por parecer que repetimos uma palavra, empobrecendo o estilo. Disto se infere que as rimas internas, ou a analogia de segmentos fônicos no interior do verso, ao afetarem diretamente a matéria melódica, por extensão e conseqüência afetam a substância semântica do contexto, difundindo e catalisando novas dimensões de significado. Nesse sentido, em Caetano Veloso, essas ocorrências além de exercer papel na eufonia (e cacofonia proposital) do verso, ampliam o sentido ou sentimento global de sua expressão, como se verifica a seguir:
Não quero mais essas tardes mornas, normais,
Não quero mais videoteipe, mormaço, março, abril,
Eu quero pulgas mil na geral,
Eu quero a geral,
Eu quero ouvir gargalhada geral,
Quero um lugar para mim, pra você.
(“Cinema Olympia”, Barra 69 Caetano e Gil - 1969).
O segmento dado, fundamentado no significado do verbo “querer” (eu não quero – eu quero) está dividido em dois blocos: os dois primeiros versos e os restantes. Tem um quê de criatividade lúdica, como se uma palavra estimulasse o aparecimento da outra, e é perceptível a semelhança sonora nos conjuntos binários “mornas – normais”, “mormaço – março”, “abril – mil”, e a reiteração por três vezes do vocábulo “geral”. No primeiro conjunto, o deslocamento ou alternância do acento de intensidade em “mórnas – normais”, combinado com o aparecimento do ditongo decrescente “ai”, na segunda palavra, provoca uma gradação rítmica ascendente, intensificadora de uma certa ansiedade ao enumerar-se os termos substantivos subseqüentes: (não quero) tardes mornas, normais; videoteipe , mormaço , março , abril , que compõem todo o primeiro bloco.
O artifício estético de “gradação progressiva” apresentado no primeiro verso, como determinador do circuito informativo e sensível do trecho em análise, é constituído por um jogo de permutações sonoras, quais sejam:
arranque progressivo do acento de intensidade: “mornas – normais” (a acentuação se desloca da primeira sílaba para a segunda, na palavra seguinte);
arranque progressivo do timbre ou modulação vocálica (ó-a – o-ái: mornas – normáis);
alternância das consoantes nasais m-n/nm (MorNas – NorMais).
Como se evidencia, toda contextura sonora é formatada para a concepção subliminar de um sentido de absorção do espaço e tempo do personagem que diz, e seu ouvinte, em impulsos progressivos. E coaduna e se harmoniza com a contextura semântica dos versos. Tudo denota um espaço-tempo repisado. O próprio sentido de arranque em progressividade se repete nas três formas sonoras, correlatas, mas distintas e integradas. Vale ressaltar que o sentido de “tardes mornas, normais”, negada pelo personagem, superando idéia de mormaço calorento daquelas tardes, refere à monotonia enfadonha e sem estímulo de certas “tardes normais” em que os acontecimentos se sucedem tediosos, sem a motivação da novidade, como se alguém repisasse os ermos de uma “Cidadezinha Qualquer” de Drummond de Andrade. Assim, a maestria que ressalta da construtividade sonora do cancionista, coaduna com os efeitos de sentido e o sentimento de tédio e fadiga existencial daquele que toma a palavra, em tom confessional. “É isto que não quero” – diz o personagem, na dinâmica intrincada e transpasse interativo dos sons e dos sentidos. Transpasse que distingue o dizer cotidiano e não-poético da riqueza elocutória da arte em Caetano Veloso.
Se, do ponto de vista aliterativo, uma coisa puxa a outra na construção lúdica do contexto poético-musical, há correlato procedimento construtivo em “março – abril”, agora na perspectiva semântica, do mesmo modo impulsionante e ascendente. No segundo caso dessas correspondências internas em “Cinema Olympia” (mormaço-março), construído também à base da alternância do fonema “r” (moRMAÇO – MARÇO) ocorre também semelhante adensamento de ordem crescente, mas organizado de maneira distinta, pois não só se desloca para frente o fonema vibrante, como também o signo “março” motiva o surgimento de “abril”, ascendente no entendimento objetivo e semântico da escala dos meses. Assim, ludicamente, a motivação sonora (moRMAÇO – MARÇO) fomenta outra motivação, agora de caráter semântico (mormaço, MARÇO, ABRIL).
O terceiro caso de aliteração (abril – mil) encadeia com a série seguinte:
Não quero mais videoteipe, mormaço, março, abril ,
Eu quero pulgas mil na geral .
Ao deslocar a próxima rima, “mil”, para a posição interna da frase seguinte, o cancionista introduz de maneira surpreendente (devido à ruptura com o psicologicamente esperado) o signo “geral”, que se vai reiterar por mais duas vezes, mobilizando cumulativamente outras possibilidades e matizes de significado:
“eu quero pulgas mil na geral ” – espaço comunitário destituído de luxo; localidade nos teatros, circos e estádios em que são cobrados preços populares;
“eu quero a geral ” – estar em comum à maior parte ou à totalidade de um grupo de pessoas; estar à vontade, satisfeito entre o povo;
“eu quero ouvir a gargalhada geral ” – que é abrangente, global; gargalhada não é específica a ninguém; de todos, comum a todos.
A passagem do sentido nocional de lugar ( na geral ) para o sentido adjetivo ( gargalhada geral ), por meio de reiterações, deslexicaliza o signo “geral”, dando-lhe uma feição que transcende os valores lingüísticos e lhe acrescenta o sentido de “lugar ideal”, conforme a frase culminante e conclusiva do segmento: “eu quero um lugar para mim, pra você”. Como é possível notar, além dos efeitos comunicativos dados pelas aliterações, e que extrapolam a dimensão objetiva dos significados, os casos apontados em “Cinema Olympia” se exprimem numa forma sintática repetitiva e paraletística (advérbio de negação + verbo + complemento direto), que só se rompe no último verso, tido como conclusivo e final. Música pura, musicalidade, efeitos sonoros e significados léxicos se coadunam e interagem em dimensões sensório-emocionais do fenômeno artístico.
Outra canção com eloqüentes motivações fonossemânticas e fluência rítmica, auferindo-se ainda belos efeitos onomatopéicos encontram-se do frevo “Chuva, Suor e Cerveja”, gravado em 1971 ( Caetano... Muitos Carnavais - 1977). Examinemos o trecho a seguir:
..............................................................
E vamos embolar ladeira abaixo,
Acho que a chuva ajuda a gente a se ver,
Venha, veja, deixa, beija,
Seja o que Deus quiser.
A gente se embala, s'imbora, se embola,
Só pára na porta da igreja,
A gente se olha, se beija, se molha
De chuva, suor e cerveja.
Além das aliterações que se distribuem em todas as posições de cada frase e em ambos os segmentos, como “abaixo – acho”, “veja – deixa – igreja – beija – seja”, “s'imbora – se embola – se olha – se molha” etc., a reiteração ressoante de traços sonoros propiciam ambiência de singular força imitativa. A primeira e segunda linhas do primeiro bloco resultam numa perfeita onomatopéia da chuva, por meio da repetição intermitente da composição sonora “achu” e sua variação homorgânica “aju”:
E vamos embolar ladeira abAIXO
ACHO que ACHUva AJUda A GENte a se ver...
Como se nota, o artista iconiza o signo verbal e lhe propicia feição imitativa da coisa referida. Imagem esta que se expande na terceira e quarta linhas, mas com novos ingredientes sonoros, quais sejam:
a repetição vocálica e ditongal (e – ei), por seis vezes;
a reiteração dos fricativos chiantes (“che” e “ge”), por cinco vezes;
os três fricativos (“vê”) e três fonemas oclusivos (“de” e “b”) seguidos.
Acho que a chuva ajuda a gente a se VER
VENHA, VEJA, DEIXA, BEIJA
SEJA o que Deus QUISER.
O segundo bloco, que se amalgama ao primeiro já pelo contexto sonoro (agen = A GENte), apresenta, de início, um jogo composto de acentos de intensidade recaindo sobre a segunda sílaba, de articulação acústica oclusiva bilabial: “AGENte simBAla, simBOra, simBOla, e ladeados de um lado pela sonoridade anasalada de “sim”, e de outro pelos grupos “la – ra – la”, com idêntica vogal aberta e consoantes próximas. A palavra em rotação interativa, por assim dizer, se converte num cantarolado: la-ra-lá. Como é sabido, devido à própria natureza articulatória e conseqüentemente acústica, os fonemas oclusivos bilabiais propiciam uma dureza e aceleramento rítmico que, nas linhas em exame, vão assegurar a idéia de avanço e movimentação que asseguram a imagem dionisíaca, carnavalesca, cambaleante e aos solavancos dos dois personagens, e que se adensa de modo crescente e cumulativo até o desfecho da canção:
a gente se emBAla, s'imBOra, se emBOla
só PAra na PORta da igreja,
a gente se Olha, se BEIja, se Molha
de chuva, suOr e cerveja.
Estas imagens, vertidas pela sensorialidade auditiva e visual, são intensificadas também pela incidência permanente dos acentos de intensidade recaindo nas segundas sílabas de cada grupo sonoro, de acordo com a cláusula rítmica baseada na incidência de uma sílaba tônica, com modulações politonais abertas e fechadas, ladeada por duas átonas: “aGENte – simBAla – simBOla – soPAra – naPORta – daiGreja – aGENte – siOlha, siBEIja - siMOlha – deCHUva – suOri – cerVEja”. A contextura fonossemântica de grande poder sensorial auditivo e visual, em “Chuva, Suor e Cerveja”, constrói um sentido de embriaguez existencial e carnavalização da vida. Tem como correlatos estéticos a música, a poesia, o teatro e artes plásticas de espírito fundamentalmente barroco e expressionista, tão representativo da arte baiana.
O mesmo tipo de adensamento fonossemântico, redimensionando a natureza lingüística da palavra, vamos encontrar na canção “Pecado Original” ( Caetano Veloso - Marcianita - 1995), realizada para a trilha musical do filme A Dama do Lotação (1975), do cineasta Neville D'Almeida:
Todo dia, toda noite , toda hora,
Toda madrugada, momento e manhã,
Todo mundo, todos os segundos do minuto,
Vive a eternidade da maçã...
A reiteração matizada por fonemas oclusivos (ToDo/ToDa) intensifica o sentimento da passagem do tempo sorvido a cada minuto pelo mito do desejo, do erotismo e pecado original: o ser humano vive, correlato à protagonista do drama teatral de Nélson Rodrigues, a “eternidade da maçã”. Mais uma vez em Caetano Veloso, palavra e música se amalgamam em interação produtiva pra resultar num swing espetacularmente sugestivo, sua poesia-canção.
As correspondências internas e repetições orgânicas de segmentos sonoros equivalentes ou análogos, implicando uma significância fonossemântica já aparece em “Janelas Abertas nº 2”, de 1970 ( Caetano e Chico Juntos e ao Vivo , 1972):
Sim, eu poderia abrir as portas que dão pra dentro,
Percorrer correndo corredores em silêncio,
Perder as paredes aparentes do edifício,
Penetrar num labirinto, num labirinto de labirintos,
Dentro do apartamento...
Mais uma vez, na esteira da tradição lírica, que traz recordações e as coloca no tempo presente em modo confessional, quem toma a palavra é o próprio personagem. A melodia da canção lembra a infusão agônica de um tango; o texto, a sinuosidade de alguém mergulhado nos labirintos obscuros de si mesmo. Parece evidente que “Janelas Abertas nº 2” inspira-se em Castelo Interior ou Livro das Sete Moradas ( Castillo Interior ou Libro de las Siete Moradas , 1588) da erudita e poeta mística – uma das maiores escritoras em língua castelhana – Santa Teresa de Ávila, também conhecida como Santa Teresa de Jesus (Teresa de Cepeda y Ahumada, 1515-1582). Em consulta pessoal a Caetano Veloso, feita há alguns anos, o artista confirmou-me a suposição acrescentando que lera também a obra de outro poeta místico no século 16, San Juan de la Cruz, contemporâneo de Santa Tereza.
Responsável pela admirável fluência e expressividade sensorial do texto, aliteram-se intermitentes as consoantes oclusivas, em seus pares acústicos e homorgânicos, combinadas com a vibração do “r”, em dezesseis ocorrências: “p” e “b” (oito ocorrências), “t” e “d” (doze ocorrências), “k” (três ocorrências). São séries sonoras que se reduplicam (perCORREr, CORREndo, CORREdores; PAREdes, aPAREntes) e intensificam, em harmonia com a sugestividade semântica, a situação surreal, pateticamente dramática, de movimentação desorientada e agônica (percorrer correndo) e clausura (corredores, perder, paredes aparentes) por que passa o eu confessional da canção. A ausência de tonicidade da vogal aberta “a”, e intensificação repetitiva do “e”, “i”, “o”, além das nasalizações, propiciam a fruição sensorial de obscuridade e sufocação apropriados à melodia, sonoridade do jogo de palavras e o significado objetivo das mesmas, numa ambientação em que música e palavra se entrelaçam em magistral harmonia. “Penetrar num labirinto, num labirinto de labirintos” é esse anelo irrespondível de Caetano Veloso, de mergulho no interior dos seres e das coisas, e mergulho no interior dos signos em movimento, pra revelação do que não se contempla, mas vivencia-se.
A confusão meio exótica e uma espécie de polifonia dada pelo requinte aliterativo que nos leva à compreensão vaga do lado metafísico das coisas (o “aldilà” italiano) encontra-se no frevo “Atrás do Trio Elétrico” ( Caetano Veloso , 1969):
Atrás do trio elétrico
Só não vai quem já morreu,
Quem já botou pra rachar e aprendeu
Que é do outro lado do lado,
De lá do lado que é lá
Do lado de lá...
Imagem semelhante e sobejamente conhecida, pois convertera-se numa espécie de hino, encontra-se na elegia a uma cidade, “Sampa”, do disco Muito Dentro da Estrela Azulada (1978): diz o personagem que, ao vivenciar a cidade São Paulo, se sente “que és o avesso do avesso do avesso”. São Paulo é o que se vê, e seu lado invisível, ou, como resume o cancionista, uma dura poesia concreta de tantas esquinas.
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(1) Publiquei, sobre o artista, “Caetano: Viagens e Trilhos Urbanos” e “Sampa, uma Parada”. In: DAGHIAN, Carlos (Org.). Poesia e Música . Coleção Debates nº 185. São Paulo: Perspectiva, 1985, pp. 63-76 e 77-95. Também “As Rimas em Caetano Veloso”. In: Mímesis 4 (Revista). Unesp: São José do Rio Preto, 1978, pp. 156-177.
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