ROMILDO
SANT'ANNA

 

Abrasasas

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A distância é um lanterneiro alumiando sendas e histórias. Transfiguradas pela nostalgia, revivem nas recordações. Em 1985, enquanto o Congresso da República nomeava um presidente civil e punha fim ao período militar, circulava pelos sete ventos da cidade o neologismo que soava letras de um hino: abrasasas. Nas tardes, milhares de andorinhas celebravam, sob a larga amplidão dos céus, a sensação de dádiva e magia. E, no marco central, umbigo de nosso mundo, instaurava-se um rito de coroação: asas convergiam remexidamente ao topo de arvoredos, em feitiço, burburinho e gritaria. Dava-se, pelas graças da natura, a poesia trazendo consigo o refrão exortativo: liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós! Abrasasas, na aglutinação fonética de sílabas, simbolizava uma saga a proclamar o fim da tirania. Ao mesmo tempo, a elegia de imagens, o filme da cidade. As rádios tocavam sua trilha musical e, nos versos de Sérgio Sá, uma indagação tentava decifrar os sinais da revelação no bailado esvoaçante das aves: “onde é que fica o coração desses pássaros?”

O filme, incorporado à existência da cidade, resume uma pessoa: o cineasta e escritor Reinaldo Volpato. Veio aqui e continua sendo a inquietação atribulada por perguntas, enlevos e respostas. Os atributos que o revelam homem passam pela absorção etnológica da cultura, o tirocínio acelerado e convicto, o afã de comunicar e comungar, o grito soberbo da fé com que expõe a crença no sonho, na retidão das condutas, no prazer dos afetos, no sabor audaz das emoções, no gesto generoso de comprometer-se a qualquer custo. Ele e Rita Volpato conceberam o roteiro, ou melhor, permitiram que uma história se escrevesse. Compreenderam que a cidade é seu povo; os edifícios, cenários. Focados na idéia do porvir, reuniram jovens, comuns, ouviram seus medos, desejos e encantos. E, na dramaturgia do cinema, se anunciaram como cento e vinte personagens e figurantes sem ornatos e maquilagens. Criaturas de si, eram adolescentes forjados sob o transe do medo. A partir dessa instância, viram-se, descomunais na tela, evocados em estado de libertação, abrindo asas. Sem que haja uma coesão explícita arrematando os fios da história, a costura de pequenas fábulas resume a substância estética do filme.

Abrasasas é pergunta e sutil propositura. É um “e agora, José?” em letras de luz, sombras, sonhos e movimentos. Sedimenta a crença de que o amor é substrato da força e poder. E a tela, em vez de distância, espelho. Extrai do cotidiano o apanágio de ser apenas um lugar, na comuna do desejo em formação. Trouxe à terra, com sua troupe de técnicos, artistas e equipamentos, as normas racionais que comandam a idéia hispano-americana de se realizar um filme. Ocasionou a pedagogia do fazer e a confabulação de um segredo industrial: cinema. Muita gente, por primeira e rara vez, folheou um roteiro, aprendeu como certas rubricas são codificadas em fachos de luz. Incorporou termos específicos, compreendeu a lógica de se abstrair um rosto, enredos da montagem, o alinhavo sensório-emocional das intenções. E o jeito de como os retalhos se articulam pra dar forma a um estilo. Foi momento incomum de ver o cinema no momento-mesmo de enunciá-lo. E, a partir dessa conquista, adquirir ferramentas para fruir criticamente os embalos do sonho. Não fosse um filme premiado, elogiado, antecipando-se a muitas produções futuras, Abrasasas já valeria por seu gesto de alumbramento e generosidade. Vinte anos se passaram. Dá que ouçamos tua voz.

 
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Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.