REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
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ROMILDO SANT'ANNA

Da intermitente morte

Há muitas mortes e todas se assemelham a algum tipo de exaustão. Mas falo agora é da tal, a absoluta.  Fernando Pessoa a invocou numa ode: “Vem, noite, antiquíssima e idêntica, noite rainha nascida destronada, noite igual por dentro ao silêncio...”. Sugere que, além de Deus, nada existe tão igual a si mesmo que essa imperatriz soturna, esse acalanto que acalma os burburinhos da vida. Pois nascer é passar a vida morrendo. Representada pela negra foice que extingue, a intermitente morte, esselabirinto sem portascomo a desnudou Saramago, é o derradeiro mergulho no desconhecido.

Quando menino, eu tinha uma visão doméstica da morte. Seu arrepiante medo circundava a nossa casa. E nosso pai partilhava conosco um assombro de Álvares de Azevedo: “Se eu morresse amanhã, viria ao menos fechar meus olhos minha triste irmã; minha mãe de saudades morreria se eu morresse amanhã! Quanta glória pressinto em meu futuro! Que aurora de porvir e que manhã, eu perdera chorando essas coroas se eu morresse amanhã!”. Hoje, ao avistar o ocaso, penso no amanhã sem mim. Quem sentirá minha falta?  Aterroriza-me pensar no que será quando jamais serei. 

Epicuro, pensador grego, examinou o óbitoComo em consolo, fala que ela não nos diz respeito. Reside em outra esfera, poisquando somos, ela não é, e quando a morte é, não somos mais”. Outros a pensam como transformação renovadora, a seiva da nova existência. A cena inicial do Hamlet é a noção quase cômica da reencarnação: “Alexandre morreu, foi sepultado. Voltou ao . O é a terra e com a terra se faz a argila. Por que a argila em que ele se transformou não poderia vir a ser a tampa dum barril de cerveja?”.

A morte, esse vale misterioso nas grotas dos abismos, é a desgrenhada instância de nossa finitude; somos personagens em cena, num ato efêmero entre os infinitos atos dum drama chamado Existir. Contrasta-nos com o divino, a persistência absoluta. Porém, numa interpretação corpórea do existirmos, o pessimista Schopenhauer escreveu: “tu [o ser] és o produto de um ato que não deveria ter sido; assim, tens de morrer para anulá-lo”.

A morte é o Dia de Finados que não cessa. Ironicamente, é silenciosa adjuvante da delícia de viver. Enlaça-nos em seu beco sem saída. Nas Intermitências da Morte, de Saramago, e fazendo-nos perceber o que seríamos sem ela, a morte mesma nos manda seu recado: “a partir de agora toda a gente passará a ser prevenida por igual e terá o prazo de uma semana para pôr em dia o que ainda lhe resta na vida”.  Rimos e tentamos ser felizes. E gozamos, mesmo que fingidamente, a ventura de viver.

Dizem que indagaram a Molière, carcomido pelo fim da vida, se lhe era difícil morrer. Até que não, respondeu o autor parisiense. Difícil é escrever uma comédia Comédia divina encenada sobre a areia movediça. Sombra contumaz e engolidora de tudo, acariciante e invencível. Tou falano nela, a tal.

 

Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.

blog: http://romildo-sant.blogspot.com/