ROMILDO SANT'ANNA

Irmãos de sangue

O amigo contava estórias que lhe davam na venta.  Em 8 de setembro, narrou, o imperador acordou de ressaca e, revirando os olhos, procurou alguémQue raios de grito dei e que meteram toda gente em agitos? Até as margens do Ipiranga o ouviram – replicou-lhe um frade. Independência ou morte!  Hã? – admirou-se D. Pedro. E o amigo mudou a conversa: por que os hinos nacionais dessas bandas incitam tanto à morte em guerras?  Desmoronou-me surpreso. Conjeturou: é que fomos colônias de suntuosos feudos, saqueadores e sangrentos, cristãos opulentos narcotizados de poder.

Àquele brado à beira do riacho, o sol da liberdade, em raios fúlgidos, brilhou no céu da pátria. Com a vista ofuscada pela prata doutro rio, os argentinos conclamam: “Ouvi, mortais, o grito sagrado: liberdade, liberdade, liberdade!”. Dos altiplanos secos da Bolívia ecoa um clamor impetuoso: “Aqui alçou a justiça seu trono, que a servil opressão desconhece, e em seu timbre glorioso legou: liberdade, liberdade, liberdade!”. Não menos obstinados, os peruanos relembram o herói sulista: “Onde quer que esteja, San Martín inflamou: liberdade, liberdade falou”.

O que impressiona nesses hinos é a insistência a que tombemos em combate. Uma teima brota nos eitos cubanos: “Não temais a morte gloriosa, que morrer pela pátria é viver!”.  E, entre nós outros, entoamos: “Verás que um filho teu não foge à luta, nem teme quem te adora a própria morte”.  Intercalando no ardor ufano advertências aos incautos do mundo, os mexicanos ameaçam aos que se atrevam enfrentá-los: “Guerra, guerra sem trégua ao que intente, da pátria manchar os brasões!”.

Não menos intimidadoras, palavras borbulham no Pacífico chileno: “Se pretende o canhão estrangeiro, nossos povos, ousado invadir, desnudemos bravios a espada e saibamos vencer ou morrer”. Intrépidos paraguaios alevantam punhos marciais: “Contra o mundo, se o mundo se opõe... batalhando vingar saberemos, ou abraçado com ela expirar”. Ressentidos e enaltecendo o orgulho incaico, peruanos juram desforra à velha Espanha: “Nossos braços até hoje desarmados, estão sempre limpando o canhão, que algum dia as praias de Ibéria, sentirão de seu estrondo o terror”. Corajoso, “o valente argentino às armas corre, ardendo com brio e valor, o clarim da guerra, qual estrondo, nos campos que um dia ecoou”. 

Espadachins quixotescos, irmãos de sangue, bravos guerreiros que sonham com lutas em campos de amendoins! Somos orfeões herdeiros de almas escravocratas, a exprimir o instinto de fera que caça o mais fraco e o devora. E o cantamos solenes, perfilados em praças desportivas, escolas e quartéis. Relembro o amigo em suas estórias: Que mais hei de gritar? Com que estava a sonhar? – suspirou D. Pedro encharcado de vinho. Em nada que valha a pena ou mude o curso da epopeia...  Dorme, corajoso rei, dorme.  E fez-lhe o sinal da cruz como que a ungi-lo com um manto de lírios.

Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. É membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura