ROMILDO SANT'ANNA
O clube dos eleitos

Semana da Pátria convida a reflexões sociopolíticas. Aguça-se na mente a crise moral instalada e que tinge de desalento os horizontes do país. Repare: não há euforia eleitoral a um mês das eleições. Pesam sobre a sociedade os assustadores costumes dos políticos em geral e que exprimem cinismo, mediocridade e escândalos. Vemo-nos defronte de atos atarracados na desfaçatez, no retrato sem retoques do tronco feudal que prende aos grilhões do passado, silenciam o presente e acinzentam o futuro.

Não há possibilidade de pensar senão por meio de palavras e, se atinarmos bem, o próprio termo “ política” está desvirtuado. Tais descaminhos semânticos nos fazem pensar de modo viciado, impondo ao espírito o sentimento de um porvir condicionado às normas vigentes. Aí é que se incuba o ovo da serpente.

Ser “politicamente correto” era postar-se individualmente com lisura no contexto social. Diz-se “ julgamento político”, num âmbito diferenciado da justiça comum aplicada aos cidadãos. Dizem-se “ interesse político”, o “ mundo político” de certos aquinhoados, ou pela condição mandante de “ patrícios” – opostos aos plebeus – ou, fugindo dessa regra, porque elegemos plebeus ambiciosos da condição de patrícios. Parece uma escuridão endógena, encalacrada nas entranhas do Brasil.

Patrícios meliantes! Nas esquadras de Cabral, quando alguém cometia o ilícito, se fosse um fidalgo pagava em simbólica multa; um joão-ninguém ia às chibatas no mastro da caravela. Já no descobrimento, o pêndulo da justiça inclinava para o mais forte. Diante disto, você poderia apontar-me o dedo da contestação argumentando que não só a Ilha de Vera Cruz, mas na história humana sempre foi assim. Porém o mundo mudou e, por aqui, certas atitudes éticas e interpretações forenses são radicalmente fora dos parâmetros, arcaicas, pré-históricas.

Prestemos atenção a detalhes pontuais e eloqüentes. O atual presidente da República e candidato à reeleição não vai ao debate na TV justificando que, no momento, é o que lhe interessa “politicamente”. Fala em nome de si como um velho caudilho, não no que convém à sociedade: comparar os candidatos. Seu marqueteiro, baseado em estratégias de campanha, sabe que a amenidade atrai o voto dos pobres e o dinheiro dos ricos. Ademais, o partido, sua cor, número e estrela aproximam-no de lembranças indesejáveis como corrupção e escândalos. Assim, por “ necessidade política”, descola-o do proselitismo combativo em épocas passadas. Alckmin é agora o acessível Geraldo, distante das sombras presidenciais de FHC e suas decisões. Sabem os propagandistas que, no abismo entre a casa-grande e senzala existe uma ponte e só a transpõe quem é moderado e diz sim. Por isto, são quase todos ideologicamente escorregadios e, digamos, “flex”.

Stanislaw Ponte Preta dizia que, em nosso país, “a política se resume em não deixar a onça com fome, nem o cabrito morrer”. Tornou-se um Clube de ávidos sócios que se aposentam bem nutridos e em poucos anos. Privilegiando os “de dentro”, possui sua tábua de valores e procedimentos. Os associados alembram-se da plebe em épocas eleitorais que as têm para os legitimar. Em tal oportunidade, e baseados em promessas e sofismas, dizem o que convém aos fins patrimoniais do Clube, sem ideais nem escrúpulos.

Câmaras institucionais, acobertadas pelo voto secreto e encarregadas de julgar seus membros apanhados em delito, absolvem-nos e lhes expedem cartas de boa conduta. É a legalização da bandalheira. Em sua lógica, asseguram o sistema “de dentro”, o espírito de corpo, como um surreal colégio dos escolhidos, um simulacro de Estado.

Dizem que se preocupam com saúde pública, educação, saneamento, a violência das ruas, salários, empregos e justiça social. Nos eitos da falsidade, política é sinônimo de astúcia, ardil e esperteza, tudo o que convém à prosperidade do Clube. À fachada de liberdade e prática de cidadania, tornou-se órgão de controle imperativo em nome do qual ações desprezíveis se justificam. É habilidade no trato das relações humanas, desde que se preservem os objetivos do teatro burlesco e seus enredos, independente de preceitos elevados, ideais civilizatórios e ações que visem ao bem comum.

Em épocas de aliciamento urdido pelo marketing, planos de governo se reduzem a peças publicitárias, um panfleto de cordel. É delas que os governantes prestam contas e, pois, elas escrevem o destino do país. À força, povo vai às urnas. É o princípio da soberania popular, essência da democracia: fonte do poder, o eleitor transfere seus sonhos aos eleitos. Salvo exceções que se perdem na poeira do passado, escândalos e degradações da política se reproduzem em escala crescente, dos estafes prefeitorais e ridículos vereadores às altas esferas do poder republicano. Dos vilarejos às metrópoles, dos cafundós a luminosas avenidas, os ungidos agem na comunhão do Clube dos Eleitos. O ato de votar, que simboliza crença no porvir, é uma obrigação, uma liberdade vigiada. Ao fim e ao cabo, somos o rebanho de cabritos conduzido por implacáveis feitores: a farra dos políticos. A que abismo nos leva esta estrada?

 
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.