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RODRIGO PETRONIO
O CORPO, A CASA, O COSMO: DOS VEDA A BUDA (fim)
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A Kena-Upanisad
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Como foi dito, as Upanixades inauguram uma nova época no pensamento indiano, na medida em que deslocam a centralidade dos ritos da esfera dos brâmanes e passam a cultivar práticas extáticas individuais e caminhos de acesse que sejam centrados unicamente no sujeito que as executa. Dentre elas, se destaca uma: a Kena-upanisad . Como os demais textos do período, e la se articula por uma característica que lhe é singular: a tautologia. O discurso parece centrado nessa repetição, de função, diríamos, persuasiva. Seu conteúdo é a definição do que vem a ser o Brahma e o âtman , por meio do diálogo mestre-discípulo, com progressivos questionamentos e esclarecimentos. O Brahma, segundo o texto, está muito além da linguagem e dos dados sensíveis, onde não chega a visão, onde não chega a palavra nem a mente. Não podemos sabe e tampouco compreender como alguém pode ensiná-lo.

Isso evidencia o caráter pragmático da obtenção do conhecimento, que não pode ser ensinado, mas apenas aprendido por intermédio da meditação. Há uma forte ruptura na antiga hierarquia que estruturava a iniciação, na medida em que, se não é possível a ninguém compreender o que venha a ser o Brahma, tampouco será dado a alguém decompô-lo e ensiná-lo, o que abre uma ampla precedência para a transformação social e ritual, pois o papel do mestre se vê comprometido em seu cerne. A esse processo se sucede uma fragmentação dos códigos, crenças e ritos, o que faz do indivíduo o protagonista da ordem cósmica e da revelação divina. Pensar sobre o Brahma é perdê-lo, não pensá-lo é conhecer-lhe a essência. O texto caminhará sempre ao redor dessas dissimetrias, ora opondo-as, ora identificando-as, numa rede de silogismos saborosos. É interessante a valorização do aspecto sinestésico que o texto dá ao enumerar a origem de cada uma das nossas faculdades. Isso talvez tenha uma relação forte com a própria técnica de meditação e ascese, que passa primeiramente por um esvaziamento dos sentidos e do pensamento. Esse vazio cria uma nova significação para a realidade, dando-lhe uma outra dimensão. Passamos então a ver no mundo apenas um conjunto de relações, funções e formas, despidas de seus conteúdos mais corriqueiros. E não será por outro meio que não o dos curiosos, belos e agudos jogos de opostos que as Upanixades vão nos apresentar seu corolário doutrinal, na belíssima síntese de uma realidade totalmente esvaziada de sentidos preliminares, senão a própria forma sobre a qual e por meio da qual a realidade mesma subsiste. Não aquilo que é expresso pela palavra, mas o que por meio do qual a palavra é expressa. Não aquilo que pensa por meio do pensamento, mas o que por meio do qual o pensamento é pensado.

Nisso consiste o Brahma : naquilo que, mesmo transcendendo os nossos meios de ligação com a realidade, ou seja, a mente, a linguagem, os sentidos, apenas se valendo deles pode existir efetivamente. O asceta não confia nesses meios, mas ao mesmo tempo não pode prescindir deles. Quando ele consegue o despertar interior, entra em contato com seu eu indestrutível ( âtman ) e assim se imortaliza. As Upanixades, no que diz respeito ao brahman , têm três instâncias. O ascetismo, o autodomínio e o ato ritual são seus fundamentos. Os Veda são seus membros. A verdade - sua morada. Apenas no cumprimento desses quesitos o asceta poderá aceder à imortalidade.

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A Ruptura
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O budismo e o jainismo surgiram numa época de grande atividade religiosa e filosófica , por volta do século VI a. C. Ao lado dos místicos e religiosos que seguiam a tradição bramânica, havia os chamados sramanas (aqueles que fazem esforço), ou mais conhecidos como ascetas errantes, alguns deles cuja origem remonta aos tempos védicos. Entre eles havia iogues, mágicos, dialéticos, materialistas, niilistas. Eram geralmente ridicularizados, pelo pouco que foi documentado sobre suas vidas e doutrinas nos textos jainas e budistas. Utilizavam uma grande variedade de técnicas de meditação, da extrema ascese ao êxtase para-ióguico, da análise empírica da matéria a um materialismo vulgar e a práticas orgíacas.

O jainismo se formou em trono da figura de Mahâvîra que nunca chegou a se encontrar com Buda, embora fossem contemporâneos e passassem pelos mesmos caminhos. Tinham em comum o fato de ambos pertencerem à casta aristocrática militar, e nutrirem uma tendência anti-bramânica. São os dois heréticos, no sentido de negarem um Deus supremo, o caráter revelado dos Veda e denunciarem a crueldade gratuita dos sacrifícios. As vidas de Buda e Mahâvîra são paradigmáticas: são de origem principesca, renunciam ao mundo e fundam uma comunidade religiosa.

O cânone jaina foi editado nos séculos IV e III a. C. Sua doutrina caracteriza-se pelo estudo da Natureza e por uma paixão pelas estruturas e pelos números. Tem um fundamento no pampsiquismo, ou seja, no respeito absoluto por todo o tipo de vida. Essa inclinação fez com que circulassem uma série de anedotas referentes aos expedientes e técnicas usadas pelos jainistas para não comprometer nenhum tipo de vida. Entre elas, diz-se que andavam com uma varinha amarrada à cintura, dispondo sua extremidade frondosa à sua frente para varrer o chão que iriam pisar antes de o pisarem, para assim evitar a morte acidental de formigas e pequenos insetos. Mahâvîra nega a existência de Deus, mas não a dos deuses: estes últimos gozam de certa beatitude, mas não são imortais. Contemporâneo de Buda e Mahâvîra foi Gosâla, chefe dos Âjîvikas, seita religiosa que, segundo os poucos registros reminiscentes, se baseava num grande fanatismo e numa visão pessimista do mundo, em virtude dos quais muitos ascetas punham fim a suas vidas por desnutrição.

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O Budismo
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Uma das características mais marcantes do budismo é seu caráter não-transcendente e as conseqüências políticas que esse aspecto da doutrina promoveu. No período bramânico o saber só podia ser acessado por meio de um brâmane, ou seja, um ária, e só ele tinha domínio das técnicas rituais necessárias para tanto. Nas Upanixades esse poder centralizador diminui devido ao desenvolvimento de técnicas individuais de meditação e ascese, como a yoga . Mesmo assim, o pendor metafísico dessa leitura do rito védico é forte e tem como tônica o ascetismo. A grande transformação que o budismo incorporará ao pensamento indiano é a de que qualquer pessoa tem a capacidade de acessar o sagrado, desde que siga com pertinência e pertinácia as trilhas do mestre. Qualquer pessoa pode, por meio de um auto-controle rigoroso, chegar ao Nirvana. Ao invés do discípulo perseguir o mestre, este é quem vai atrás dos discípulos. A antiga relação hierárquica se rompe. No lugar da primazia do saber em detrimento da ação que os Brahmana propunham, ligados aos deuses Varuna e Mitra, respectivamente poder espiritual e civil, o budismo coloca a da ação sobre o saber. É profundamente pragmático e anti-metafísico nesse sentido, e a revelação do sagrado é sempre uma busca individual na tentativa de assimilar a impermanência de todas as coisas. A causa do sofrimento e de todos os males é vista como decorrente da falta dessa informação, da incapacidade de ver que tudo é transitório e instável. Entre o caminho ascético e o prazer hedonista, Buda irá propor o Caminho do Meio, ao mesmo tempo síntese e superação das dualidades. O budismo nutre um profundo desprezo pela linguagem, pois vê nessa, quando não um empecilho à verdadeira compreensão, que é sempre calcada na experiência, no mínimo um meio dúbio e ineficaz de expressá-la. O conhecimento se dá pela imersão no Nirvana que é incondicionado e está por trás da realidade ilusória e passageira. Se funda em bases extremamente pragmáticas e é intransferível.

Buda foi, na verdade, se é permitido o trocadilho e o anacronismo, um iluminado iluminista. Uniu sua intuição mística e a descoberta do Caminho do Meio a uma proposta de transformação da sociedade e do saber. A base de seu pensamento é político e ideológico, como o de Cristo, e se ele se vale do discurso religioso é porque esse era o mais acessível à compreensão da maioria da população. Seu intuito era de fazer sua palavra circular abertamente e atingir as massas. Tanto que os ensinamentos foram escritos em dialetos locais, não em sânscrito clássico, que era a língua oficial, de poder e prestígio. Iluminado porque detinha os meios para alcançar a transcendência e se livrar do círculo infinito de reencarnações. Iluminista porque quis estender esses meios à pessoa comum e ao não-iniciado, disseminá-lo no coletivo, e não preservá-lo como instrumento do exercício do poder individual. Inaugurou assim, pode-se dizer, o império laico do espírito na Índia e secularizou as práticas ascéticas, a partir de então reinvestidas de sua ação radical.

Mircea Eliade, com suas palavras sábias, já nos alertou para o fato do budismo ser a única religião do mundo cujo fundador não se declara nem profeta de um Deus, nem o seu enviado, e que, além disso, rejeita até a idéia de um Deus como Ser Supremo. Ao contrário disso, se proclama Desperto - buddha. O processo de santificação que lhe deu a posteridade é um outro problema, e é exterior ao seu corpo doutrinário. A gênese do budismo pode ser identificado no primeiro contato do príncipe Sidharta com a doença, a velhice e a morte, e o centro de suas idéias nas Quatro Nobres Verdades e na teoria da impermanência de todas as coisas ( anatta ). As quatro verdades são, em primeiro lugar, o sofrimento universal e irrestrito, que decorre da segunda verdade: desejo . Aquela só pode ser eliminada pela cessação do desejo, ou seja, por meio da quarta verdade: a sua renúncia. A quarta nobre verdade seriam as vias que conduzem a este estado de espírito. Interessante como essa tese foi aproveitada por Schopenhauer em o Mundo como Vontade e Representação , que é uma reprodução da idéia do desejo como origem dos males e sua extinção como saída da contingência. Ambos tem o mesmo problema central: a libertação do sofrimento.

O budismo nega a existência de um Eu. Mas ao fazê-lo cai num paradoxo inevitável. Se o Eu não existe, só nos resta o aniquilamento na morte e um contra-senso do conceito de karman . Se existe, ele é permanente, e, portanto, contradiz um dos princípios da doutrina que é a transitoriedade. Buda parece ter se omitido a discussões sobre esse problema, de ordem tautológica. Em resumo, a grande inovação trazida pelo budismo em relação ao bramanismo e aos ritos védicos foi a quebra do circulo infinito das reencarnações ( sa m sâra ), ou pelo menos de sua possibilidade. Mais uma vez a leitura de Eliade é esclarecedora. Na medida em que nos lembra da importância da homologia Cosmo-Casa-Corpo para o pensamento indiano, em geral para o pensamento arcaico, nos dá a medida necessária para que avaliemos a novidade revolucionária do objeto proposto por Buda. Ao ideal arcaico de instalarmo-nos em uma morada estável, ou seja, de assumirmos uma situação existencial central dentro de um Cosmo perfeito, Buda opõe o ideal da elite espiritual que lhe era contemporânea e da qual ele era integrante: o aniquilamento do mundo e a transcendência de toda situação condicionada.

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Rodrigo Petronio é escritor. Autor de História Natural (poesia) e Transversal do Tempo (ensaios). Prepara novo livro de poemas que sairá pela editora Girafa. Contato pseudopetronio@directnet.com.br