Xeque mate por Maria Azenha


VI ENCONTRO TRIPLOV NA QUINTA DO FRADE
Casa das Monjas Dominicanas . Lumiar . Lisboa . 14 de Julho de 2018


MARIA ESTELA GUEDES
Xeque mate por Maria Azenha

“Morte ao Rei!”, ou “Shâh-mât”, é o que em persa quer dizer a expressão “xeque mate”. O xadrez simula uma batalha entre dois exércitos. Se bem que a origem dos exércitos vá variando, ao longo de Xeque mate, o último livro de Maria Azenha (Urutau, 2018), permanecendo no entanto invariável que o enunciador, ou a enunciadora, se arma sozinha em cavaleira contra toda a intempérie, por vezes é nítido que um dos campos é o atual estado de coisas. Por conseguinte, o aviso de xeque mate nem sempre se dirige a um rei, pode dirigir-se a uma república, à União Europeia, ao Mundo, ao Pai, como acontece no poema “O prazo de validade das escolas”, ou nesse outro, “Caixa de ressonância”, em que o campo de batalha do exército adversário se expande até à dimensão planetária, quando, lemos, “Tenho a impressão de que aterrei num planeta em saldo”.

Talvez mereça menção o facto de a enunciadora se declarar, aqui e ali, a responsável pela trapalhada, ou, mais religiosa ou psicanaliticamente, a culpada. Como a autora confessou, ao telemóvel, este livro, escrito ao longo dos tempos, é uma catarse, modo de resolver conflitos da vida. Faz parte da resolução a tristeza, por isso contemos com muitos versos cheios de lágrimas. Quando a tristeza já não pode ser maior, estala o riso, e o riso costuma ser mordaz. Vejamos o que acontece em “Revoluções avulsas no cabeleireiro”:

Um dia vi entrar no cabeleireiro Nossa Senhora
o meu cão sobressaltou-se
sabia que tinha morrido e não podia ali aparecer outra vez
grávida
pensei: será do José? Sim, do José?!…

Neste campo do riso, catarse das lágrimas, e com entidades da religião envolvidas, não podia deixar de citar três versos que parecem dedicados ao nosso companheiro, aqui presente, Frei Rui Grácio, que é grande cultor do holismo:

Vou passar um fim de semana a ver filmes de Manoel de
Oliveira.
Sou o que se chama um militante holístico.

O riso, neste livro, tem por estímulo os assuntos mais variados: cenas de cabeleireira, de supermercado, religiosas, e também lexicais, como é caso das siglas, dos anglicismos e outras dificuldades da comunicação. “BPP BPN RIP OK” é um poema a ler nessa perspetiva, embora principie por dizer que “Adão foi o primeiro homem virtual” e que “Eva servia de boletim meteorológico”. Em trabalho futuro tentaremos analisar este casal modelo, pois parece que é tão normativo como uma sigla do tipo .pt ou CP, que uma pessoa passa por elas e não reconhece o seu significado.

Tenho-me referido ao riso enquanto reação minha à leitura, partindo do princípio de que possa ter o vosso por companhia. Porém, ele também é interno, também pertence à poesia. Se há lágrimas em Xeque mate, como convém a um livro de combate, também há riso e gargalhadas. Quer as lágrimas quer as gargalhadas são catárticos, escape às emoções que nos apertam o coração, como em “Band-Aid”, poema que remata com um verso estranho. Estranho porque o verbo “bater” conquista inovador complemento direto: “Apeteceu-me bater lágrimas”. O que normalmente fazemos, para expressar alegria e aplauso, é “bater palmas”. Em guerra, batemos em alguém ou em retirada. Na cozinha, batemos claras em castelo.

Maria Azenha é uma escritora de alta imaginação e com grande capacidade para se renovar a si mesma. Este livro de guerra não se assemelha a nenhum outro dela, se bem que permaneçam, de obras anteriores, a notação de flashes do quotidiano, a metaforização de tonalidade surrealista, que, ao deslocar atributos de um objeto para outro de forma radical, pode também provocar o riso: “Conheço um gato licenciado que ainda não foi colocado”. Trazendo de novo à colação o seu par obsessivo, que hoje já não corresponde ao modelo de casal:

 

Tudo isso como um jogo de divindades
num supermercado vazio!
Tudo isso porque Adão e Eva
não conhecem a Poesia de Vanguarda!

 

Para Maria Azenha, o valor da poesia não reside na beleza das palavras, sim naquilo em que podem ser empregues, e neste caso o combate trava-se contra inúmeros inimigos que ameaçam, desde a refeição quotidiana de alguém até à sobrevivência do Homem na Terra, a Gaia do poema final. A tendência combativa é própria da autora. Talvez a maior diferença deste em relação aos livros anteriores venha das vozes que o povoam. O discurso é intensa e profusamente vocativo, abunda nele a apóstrofe, a ameaça, o aviso e a ordem de comando, o que faz reinar nos poemas a oralidade.

Exemplo maior do poder bélico da poesia é o longo poema que dá título ao livro, em que somos confrontados com inúmeras interpelações e ameaças: “Quero fazer barulho com as palavras!”, “Atenção! Homens e mulheres!” “Ouviram?”
Que a cantiga é uma arma já o sabíamos, porém Maria Azenha tem modo e género próprio de reafirmar o que de resto só se reafirma por as condições de vida atuais se assemelharem, na sua perspetiva, às que geraram a afirmação contida na conhecida canção de José Mário Branco. Saibamos, para terminar, quais os parâmetros principais da arte poética de Maria Azenha:
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Repórter local

Nunca encarei a Poesia como uma epístola aos pobres
nem como um espelho de paz
nem como um passatempo literário
para entreter académicos.
Vejo-a como um trabalho moderno de Hércules
através de um específico repórter local
que se chama Poeta.

Não faz outra coisa senão deixar bilhetes ao acaso
numa gare qualquer com o aviso “perigo de morte!”


REVISTA TRIPLOV DE ARTES, RELIGIÕES E CIÊNCIAS
série gótica. Outono . 2018