Uma leitura do romance «Anacrusa»

RICARDO DAUNT
Tributo
Organização:  DERIVALDO DOS SANTOS


Fragmentos de um caleidoscópio: uma leitura do romance Anacrusa
Por Sérgio Linard 

(UFRN/ PPGEL/CAPES)


Formado em Letras e professor de Língua Portuguesa, Sérgio Linard cursa o mestrado em Literatura Comparada, no Programa de Pós-gradução em Estudos da Linguagem/Universidade Federal do Rio Grande do Norte, bolsista CAPES.


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Analisar, criticar e até mesmo definir tendências literárias para textos produzidos em séculos anteriores ao nosso é um trabalho árduo. Aplicar esses mesmos verbos ao texto literário produzido durante o século atual é algo, se não mais árduo, de dificuldade similar. Tal dificuldade não se justifica por uma possível evolução qualitativa da literatura, mas sim pela laboriosa atividade de distanciamento necessária ao pesquisador do objeto de estudo.

Em seu livro Mutações da literatura no século XXI (2016), Leyla Perrone-Moisés anuncia que as literaturas do presente século não seguem mais uma única tendência de mudança. De acordo com a autora, o que temos agora são “mutações” literárias. Essas mutações, por seu turno, exigem estudos de múltiplas vertentes, a fim de que se compreenda melhor as letras brasileiras do século XXI. Dessa feita, a definição de uma tendência única à literatura produzida em nossa época permanece com a mesma dificuldade dada à própria definição do que seja literatura, pois, “se em nenhuma época chegou-se a uma definição rigorosa de ‘literatura’, essa definição tornou-se ainda mais difícil na nossa, em virtude das profundas transformações culturais ocorridas nas últimas décadas” (PERRONE-MOISÉS, 2016, p. 27). Tais modificações refletem-se na literatura atualmente produzida como alterações tanto em sua forma quanto em seu conteúdo. Inovações proporcionadas pela tecnologia, por exemplo, fazem com que o texto literário da atualidade não se limite mais à plataforma do livro impresso, adentrando ao mundo de experiências sensoriais, já exploradas mercadologicamente, com a intenção de se levar ao extremo a experiência leitora; as extrapolações nada mais são, no entanto, do que a própria literatura exercendo a sua função social de fazer sentir a vida, conforme defende Holanda (2004, p. 217, grifo do autor) ao afirmar que “imaginar uma linguagem é imaginar uma forma de sentir a vida. Literatura: imaginar uma forma de vida outra. Por isso o discurso literário está incessantemente indo às bordas do improvável para exorcizar o impossível.” O pensamento, feito pelo autor à luz de reflexões sobre a necessidade social da literatura, revela que o atual caminho de mudanças percorrido pelo texto literário contemporâneo é apenas um caminho inevitável, uma vez que esses pontos extremos estão diretamente ligados à sua função social.

À luz do pensamento de Candido (2014), reconhecemos essa função social da literatura não como uma forma de pura representação da realidade humana. Ao se refletir, por exemplo, sobre a função do autor em relação à obra, percebe-se que, ainda que haja no texto literário a marca da presença de experiências vividas pelo escritor, tem-se também marcas de respostas a anseios da sociedade em que ele se encontra. Portanto, as transformações observadas no panorama do texto literário contemporâneo são verdadeiras confluências entre os desejos individuais de artistas e os desejos coletivos de grupos sociais variados. É o sucesso dessa confluência que poderá, assim, garantir à obra um reconhecimento como bem de valor cultural.

A disjuntiva e fragmentada realidade humana na cultura da contemporaneidade pode ser materializada, por exemplo, no conto “Parque”, de Ricardo Daunt, autor que tem grande contribuição para a Literatura e responsável pelo romance objeto de estudo deste ensaio, em que buscamos observar como o silêncio é constitutivo de Anacrusa, e como ele se torna fragmento dentro do grande caleidoscópio que é esse romance. Nossa análise persegue o método integrativo proposto por Antonio Candido, de maneira que as relações entre forma e conteúdo serão expostas e exploradas a fim de que se alcance compreensões verticalizadas sobre o texto. Retomando a discussão sobre “Parque”, podemos perceber que já nos seus contos a fragmentação dos constituintes do espaço é empregada, pois são os pequenos objetos do dia a dia que se agrupam para integrar a imagem da reificação humana encontrada nesse conto. Essa produção literária incorpora a vida cotidiana em que “o tempo é experienciado como um recurso escasso para a resolução dos problemas que surgem” (HABERMAS, 2000, p. 10), posto que o  texto recorre à descrição da rotina de um lugar comum à grande parte da sociedade, para demonstrar como os membros dessa sociedade agem de forma indiferente aos acontecimentos ao seu redor, pois nem mesmo a morte é capaz de parar aqueles que correm atrás de suas metas. As pessoas desse cenário de imediatismo ignoram a figura de um idoso morto na grama, fazendo o narrador concluir ser aquela personagem uma “nova planta”, reificando em um alto nível o homem e sua existência, como se pode observar neste trecho:

Seringueiras com raízes aéreas: imóveis naves e sargaços: manto de folhas navegantes: círculo efêmero da vida. Mulher obesa com sufocante abrigo negro pisoteia a calçada ao redor do lago. Renque de salgueiros ressecados: fincados no chão eterno. Garça branca imóvel: escultura viva. Mulher passa e sorri para um homem que absorto escreve. Chicás despidos espreitam o solo. Corredores vigorosos retiram-se com suas plumas e marcas. Sol, tênue corda, se insinua pelas ramas do alecrim de trono fino. Banco do parque vazio testemunha velho estirado sobre a grama: nova planta. (DAUNT, 2005, p. 36)

Nesse conto, recorre-se a uma ideia simplesmente biológica do ciclo da vida, em que aquele homem morre para, como uma nova planta, dar espaço a outras vidas. Observa-se, nesse excerto, que o nível de objetificação da vida humana é tão alto que a única testemunha da personagem morta é um simples banco de praça, sem vida e nem com vidas sobre si. A fragmentação da vida é tamanha que início e fim se cruzam de maneira rotineira, nas árvores, nos animais e, a cada dia mais, no “objeto” homem.

Ao se observar as contribuições do autor para a reflexão e compreensão verticalizada de movimentos humanos na sociedade atual, considerando as especificidades próprias ao texto literário, este trabalho elege como objeto de análise Anacrusa (2004), de Ricardo Daunt. O autor teve sua estreia literária em 1975 e apresenta uma robusta obra que transita pelos gêneros ensaio, conto, poesia, novela e romance e possui um vasto currículo acadêmico. Daunt, que é doutor em Letras pela USP desde 1992, já ministrou aulas em universidades brasileiras como a UFRN e foi professor visitante na Yale University (EUA). É colaborador das revistas digitais Sibila e TriploV (revista portuguesa). O seu romance, Anacrusa, publicado em 2004, é o segundo volume de uma trilogia que se inicia com Manuário de Vidal (1981) e termina com O romance de Isabel (2013).

Um estudo de Anacrusa faz-se pertinente, pela sua potencialidade de contribuição à manutenção dos conhecimentos acerca da literatura e de seu papel para a memória cultural. Entender o romance contemporâneo é, além de outras coisas, uma maneira de enxergar as relações dialéticas da literatura com o meio social. Ora confirmando a tradição, ora contrariando-a, Ricardo Daunt parece introduzir o leitor em um mundo surreal, que está mais próximo da realidade do que da ficção, recorrendo constantemente ao silêncio para fazê-lo. Ainda nessa perspectiva, concordamos com Dias (2012), ao falar sobre a obra de Ricardo Daunt, por isso, adotamos o ponto de vista de que Anacrusa é rico em metaliguagens, bem como em referências aos clássicos que compõem o cânone literário ocidental.

 

2

O romance tem seu início em um mundo recém-destruído. Isabel e Antonio Vidal são as personagens principais, que ora comportam-se como senhores do novo mundo – que há de surgir e que está sendo construído por eles -, ora como crianças descobrindo o novo universo ao seu redor. O narrador-personagem (Antonio Vidal/Antonio) matou Isabel e tenta encobrir isso de todos, em especial de um guarda, dando espaço para o fantástico dentro da narrativa, pois, ainda que morta, Isabel tem todos os atributos e comportamentos de uma mulher viva. Na construção de sua falsa inocência, Antonio Vidal faz com que a mulher sem vida comporte-se como cúmplice do crime por ele cometido, de maneira que essa personagem afirma: “ ‘Enganamos o guarda’, ela diz do armário” (DAUNT, 2004, p. 15), demonstrando que Isabel fica feliz em fingir-se viva diante do policial que investigava sua morte.

Com uma narrativa que se apresenta em vários fragmentos, recortes gráficos são feitos entre um parágrafo e outro sempre que o foco da história é alternado. Dessa maneira, a narrativa é encaminhada em torno de uma reconstrução do mundo e das formas de poder instituídas nele. As personagens alternam-se como crianças e como adultos que têm o poder de controlar o planeta em que vivem. Chegam a cultivar novas plantas que germinarão na parte final do romance, após uma grande tempestade que tanto os amedrontou a ponto de fazer com que “um impenetrável mutismo” (DAUNT, 2004 p. 113) desabasse por toda a terra. Por fim, as esperanças de reconstrução deste novo mundo chegam renovadas ao final da narrativa: “[…] o que importa agora são as vozes, ainda no jardim, começam a cantar, a terra está preparada, infiltrada de esperança, as vozes trabalham procurando operar a transformação, as janelas desabam sobre os caixilhos, o vento traz um cheiro doce” (DAUNT, 2004, p. 140), dando margens à continuidade da trama no Romance de Isabel.

A partir dessa breve contextualização de Anacursa, observamos que pensar o silêncio, por vias de uma materialização narratológica – como nos propomos neste ensaio –, encaminha-nos a reflexões que se obrigam mais profundas, posto que constituem disciplina do pensamento acerca do homem e de sua existência. O tempo e a evolução proporcionada pela sua passagem têm gerado diversas consequências para a atividade humana. Umas mais positivas outras mais negativas, são as experiências com a linguagem e seu uso que ajudam o bicho-homem no encaminhamento de conquistas pessoais e coletivas, por mais que, a despeito, muitas vezes, de sua humanidade, a linguagem tenha proporcionado ao homem um posicionamento singular dentro da cadeia evolutiva em que se encontra. É comum ouvir-se, por exemplo, o discurso de pais e mães com filhos recém-nascidos sobre a dificuldade de se compreender aquilo que o infante deseja, sente, precisa, pede. O simples ato de chorar, também visto como uma forma de linguagem comunicativa, não é suficiente para que aqueles pais e aquelas mães identifiquem precisamente o que é reclamado pela criança. Então, como um tatear no escuro, tentativas e erros vão sendo aplicados até que aquela constituição familiar seja capaz de codificar, em palavras e atitudes, o que até o momento se encontra fora dos códigos de linguagem já concebidos. Por extensão e aplicação do pensamento, percebe-se que este mesmo tatear no escuro acontece na relação ser-humano/ animais. É por meio de uma pseudo-comunicação que o homem preenche o silêncio dos animais com os quais tem contato, mesmo que o silêncio seja repleto de emissões sonoras; a ausência de um sentido propriamente dito constitui, neste caso, como propõe Barthes (2003) o tacere, dito de outra maneira, uma face do silêncio marcada pela ausência do verbal, da palavra, de maneira que é um silêncio mais próximo do ser humano e de sua capacidade de silenciar a si e ao outro, um interdito.

A figura do narrador contemporâneo, por seu turno, materializa a possibilidade do interdito. É a opção de não dizer, atrelada a um desejo de também não dizer e/ou ocultar, que faz com que observemos no narrador, recorrências ao silêncio, ao não dizer, à ocultação. Essa construção, amplamente observada para narradores em primeira pessoa, nada mais é do que uma simples aplicação da potência de escolha que se encontra nas mãos do condutor da narrativa e esse limiar da potência-possibilidade que gera as inúmeras formas de compreensão do silêncio. É no rastro do pensamento de Agamben (2015, p. 32) que podemos alcançar maiores compreensões sobre este fenômeno interpretativo do silêncio, pois, para o autor “o que se mostra entre ser e não ser, entre sensível e inteligível, entre palavra e coisa, não é o abismo incolor do nada, mas a espiral luminosa do possível.”. São as diversas possibilidades que geram ao narrador, e por consequência ao leitor, a potência de aplicação de distintos significados para o silêncio. Não é à toa, por exemplo, a sempre pregada parca credibilidade para narradores de ficção, especialmente, em primeira pessoa. Ora, havendo em suas mãos uma “espiral luminosa do possível”, o narrador pode tranquilamente preencher os diversos silêncios de personagens com julgamentos seus e, inclusive, com silêncios próprios. Trata-se de um poder ilimitado para interditar falas e vozes, aplicado a bel-prazer do narrador e só observado por estudos e críticas que se disponham a observar esses usos.

Outra perspectiva, agora com ares mais sócio-políticos, para a possibilidade de um narrador que recorre ao silêncio, é contemplada pelas contribuições de Deleuze e Guattari (2017). Esses autores, ao analisarem os males do capitalismo para a sociedade e para a saúde mental humana, postularam a compreensão de que a linguagem do homem é diretamente afetada pelas demandas do capital, cada vez mais corriqueiras e exploradoras das qualidades do ser humano. Ao se constatar as diversas dúvidas lançadas sobre a figura humana e suas maneiras de comunicação, o capitalismo impõe demandas outras capazes de silenciar, mais uma vez, o desejo e a vontade daqueles que se encontram sobre seu julgo. Na narrativa não seria diferente, afinal, como a famosa “mão invisível” do mercado de ações, o narrador tem poder de legitimar e desqualificar falas, bem como silêncios. É por meio dessas dúvidas que narrador retira as desconfianças sobre si e as lança sobre as demais integrantes da história, haja visto que

a linguagem já não significa algo em que se deva acreditar, mas indica o que vai ser feito e que os astutos ou os competentes sabem descodificar, compreender por meias palavras. E mais, apesar da abundância de carteiras de identidade, de fichas e de meios de controle, o capitalismo nem sequer tem necessidade de escrever nos livros para suprir as marcas desparecidas dos corpos. (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix, 2017, p. 332).

É natural ao regime capitalista o apagamento de pessoas e o desprezo às marcas e idiossincrasias dessas mesmas pessoas. A proposição de questionamentos sobre a utilização da própria linguagem e de sua efetiva comunicação corrobora mais ainda à possibilidade de que o narrador possa interditar personagens e situações distintas. Assim como o homem externo ao texto, o narrador contempla em suas palavras uma vontade construída sobre um poder irrestrito, uma vez que recorre à linguagem e ao seu silêncio. O não registrar dos apagamentos e das perdas humanas amplia cada vez mais as distintas formas de silenciamento repousadas nas mãos de um narrador-protagonista. Ao lermos Anacrusa, percebemos que é por meio de apagamento de falas e de uma construção, circular, repetitiva e extremamente fragmentária que o narrador apresenta ao leitor apenas aquilo que o interessa. E é também por meio da confusão espaço-temporal que o leitor é apresentado, no romance aludido, a uma verdadeira esquizoliteratura que, baseada em cortes, fragmentos e em uma construção sintática pouco habitual, gera confusão, distúrbios e incertezas nos entendimentos por parte do leitor, imperando-se, a priori, os interditos e silêncios da voz narrativa. Por entendermos que o texto analisado se constitui como um processo, e não uma simples expressão e ou mimetização da realidade nos termos aristotélicos, buscamos fontes outras que nos ajudassem a pensar a literatura nas sociedades contemporâneas de maneira que conseguíssemos de fato estabelecer uma crítica integrativa como propõe Candido (2014).

A forma circular e fragmentária de alguns capítulos de Anacrusa leva à percepção caleidoscópica dos acontecimentos narrados. Essa consideração é corroborada pelo próprio narrador ao afirmar que leu os trechos iniciais do romance em “vidrilhos de um caleidoscópio”:

[…] também esqueci de comentar o texto que li nos vidrilhos do caleidoscópio e que dizia, mais ou menos, ‘as moscas não batem as asas. Coalho. Um feixe luminoso e muscular esparrama-se sobre o piso de olhos irregulares. Embriagada pela noite ela apresenta os bicos dos seios hirtos, salpicados de neve. Mel escorrendo por entre os dedos em suspensão.’ (DAUNT, 2004, p. 138).

Tem-se uma constatação proporcionada pelo próprio condutor da narrativa de que Anacrusa apresenta seus fragmentos tal qual o faz um caleidoscópio. Esse objeto, amplamente utilizado em manifestações artísticas, é reconhecido por ser composto por, a depender do artesão, vidros, espelhos e materiais cortantes, sempre em fragmentos, a fim de que se obtenham diversificadas combinações que variam de acordo com o observador, assim como de acordo com a quantidade de luz disponível no interior do objeto. A articulação desses fragmentos durante o construto imagético da obra em estudo, ajuda-nos a compreender a ideia de reificação vivida pelo homem nas sociedades modernas e contemporâneas. O idílico da imagem que jamais se repete, mas multicolorida e multifacetada é espaço para o homem-capital que tem dentre seus objetivos alcançar o inalcançável, pois é na busca por melhores condições de vida, mais dinheiro, mais sucesso e mais conquistas que a qualidade desta vida vai se esvaindo. O homem autofragmenta-se com a perspectiva de ser integral – comumente integralidade financeira – mas não percebe que, na verdade, está dentro de uma enorme roda que, ao girar, corta-o. Esta realidade fica presente na linguagem de Anacrusa por meio dos cortes feitos em falas de personagens (p. 49), na condução da narrativa (p. 24, 45, 54, 128), dentre outras possibilidades. O que se observa é uma construção do silêncio que ajuda a fragmentar as falas do romance em análise, porém ao mesmo tempo ajuda a materializar na linguagem aquilo que é vivido na sociedade contemporânea e, desse modo, tem-se o que observa Perrone-Moisés (2016) sobre a fragmentação dos romances do período atual, uma vez que o homem que vivem em uma divisão constante no mundo externo ao ser mimetizado sofre, também, fragmentação, em marcas de fala, escrita e narração. É o homem fragmentado que vira mote para as partições encontradas em Anacrusa e na visão de caleidoscópica do mundo ali narrado.

Quando se observa que o trecho, “as moscas não batem as asas. […] Mel escorrendo por entre os dedos em suspensão”, é exatamente o mesmo trecho de abertura do romance, consegue-se atingir um entendimento do porquê de tanta fragmentação no processo narrativo da obra, pois excertos do romance foram encontrados em um caleidoscópio e, como já dito, esse objeto é feito, internamente, de retalhos e são estes retalhos que dão vida ao universo dauntiano. As múltiplas divisões do homem na sociedade e da própria sociedade de forma automática são, dessa feita, representadas pelo caleidoscópio de Anacrusa. Nesse mundo, o universo está sendo construído pelo narrador-personagem que à medida que gira o objeto contra a luz cria uma nova realidade daquilo que ele enxerga, no entanto só se tem notícia do que é de seu interesse. As imagens jamais repetidas do objeto em suas mãos passam pelo seu próprio filtro e atingem à superfície somente após isso.

As múltiplas cores e formas geométricas observadas em um caleidoscópio são únicas e jamais se repetirão novamente, eternizadas única e tão somente pelo poder da fotografia. Rompendo até mesmo com a organização lógica desse objeto, o narrador de Anacrusa apresenta algo inédito. Os vidrilhos observados na imagem inicial foram repetidos. Não suficiente a quebra de paradigmas sintáticos e gramaticais, observa-se uma quebra dos ditames que constituem o brincar de caleidoscópio, pois os diversos fragmentos que formam o romance ora em estudo se encontram, novamente, dentro da obra sendo reapresentados com a mesma estrutura.  O silencioso manusear desse objeto proporcionou ao narrador possibilidades distintas de, mais uma vez, recorrer a interditos e trazer ao leitor apenas aquilo que ele, narrador, quis observar a partir de sua experiência caleidoscópica. Obrigado a enxergar, como na imagem acima, apenas aquilo que a foto proporciona, o leitor se torna partícipe dos interditos do narrador e, somente um atento escrutínio dos fragmentos soltos por esse último que podem gerar entendimentos distintos daquele que é imposto pela “fotografia” apresentada por Antonio.

Dentre os dezoito capítulos da obra, um deles – intitulado “Capítulo sem número” – tem como figura central o próprio caleidoscópio. Nesse capítulo, o objeto em questão é utilizado para justificar ilusões do próprio narrador, deixando margens para questionamentos acerca de toda a condução da narrativa, conforme lê-se no diálogo a seguir:

Quando guardei o caleidoscópio no bolso, olhei outra vez para verificar se o motorista estava ainda lá, esperando seu dinheiro. Mas não havia qualquer sinal dele. Chamei Isabel e perguntei se ela havia sido admoestada pelo motorista

“Não vi nenhum carro parado na porta, nenhum palavrão disperso no ar. Você deve estar sonhando, Antonio”

“Mas como, Isabel, se estivo no rio e na volta tomei um táxi e ele me deixou exatamente em frente de casa, e nada nos bolsos para pagar, e subi correndo e me tranquei aqui para olhar o caleidoscópio”, disse num fôlego só.

“Você não arredou o pé do sótão, mantendo-me prisioneira de toda gama de curiosidades. De modo que me vi obrigada a também não arredar pé da casa, suas diabruras me alimentando, Antonio.”

“Como assim”, perguntei, cutucando o umbigo de Isabel com a ponta de um velho guarda-chuva.

“Largue a arma e encare a realidade: o caleidoscópio descomunal feito de um barril e de todos os vidros que ornavam a casa e a protegiam”

Abaixei a arma e recuei.

“Não diga nada, você não está querendo enxergar que está sentado justamente em cima do artefato que criou?”

“E o táxi, então?”

“Devia estar na dinâmica dos cacos, sua fisionomia”

“Vidrilhos”, corrigi

“Vidrilhos, se quiser”

“E os palavrões machucando os ouvidos?”

“Na certa o padeiro da rua, sim, o padeiro, esteve aqui ainda ontem, prometia vingar-se. Nunca mais os pães serão frescos”

Isabel desceu, deixando-me a árdua tarefa de reordenar os fatos sozinho. (DAUNT, 2004, p. 124 – 125)

A leitura atenta desse diálogo permite a percepção de que os acontecimentos ditos “num fôlego só” por Antonio são narrados na primeira parte de Anacrusa, “os nomes e os modos”. Conforme se percebe no excerto acima, a capacidade de discernimento do narrador do que seja realidade e do que esteja sendo visto no caleidoscópio é questionada por uma personagem silenciada durante grande parte da narrativa: “Não vi nenhum carro parado na porta, nenhum palavrão disperso no ar. Você deve estar sonhando, Antonio”, questionando a veracidade daquilo que o narrador-personagem conta. A locução verbal construída com verbo em gerúndio (sonhando) na fala de Isabel revela, também, que o descrédito lançado sobre a narrativa de Antonio não é somente sobre algo que ele já falou, mas também sobre o que se narra no momento presente, pois a ideia de um estado contínuo de sonho constrói um narrador-personagem delirante, que não se encontra em plena utilização das suas faculdades mentais.

A percepção dessa construção caleidoscópica de Anacrusa, leva-nos a enxergar como necessária a esquematização dessa narrativa. Dessa feita, apresentamos abaixo a figura 2, intitulada “Anacrusa em um caleidoscópio”, em que buscamos reproduzir a maneira circular e fragmentária em que essa história se estabelece, ressaltando, não obstante, as relações entre os processos dos silêncios interno e externo à narrativa em questão. A predominância de formas circulares na figura a seguir justifica-se pelo romance em análise construir-se por meio dessa circularidade.

A fim de que se contemple de maneira mais aprofundada a figura apresentada, elencamos aqui o significado de cada uma das formas. 1 – O duplo triângulo funciona como os espelhos internos de um caleidoscópio, os triângulos se juntam para formar uma imagem ao centro que, por sua vez, é constituída por todos os fragmentos encontrados dentro do texto; 2 – O Círculo maior trata da representação da narrativa circular de Anacrusa; é neste espaço em que se tem as informações superficiais do texto; 3 – O Círculo menor em linha contínua corresponde ao processo de silenciamento (tacere) enfrentado nas mais distintas instâncias do romance analisado. Tem-se uma linha contínua por se tratar de uma situação perene em toda a obra; 4 – O Círculo menor em linha pontilhada demonstra os processos de fuga do silenciamento, marcado pela forma 3. As linhas são pontilhadas, pois essas fugas são espaças entre si e só ocorrem em momentos nos quais o narrador-protagonista permite e/ou perde força narrativa; 5 – As Setas internas representam as forças motrizes de resistência ao processo de silenciamento imposto pelo narrador. No caso de Isabel, tem-se o grito, e de Vidal, a música. As setas apontam de dentro para fora porque este é o movimento que as personagens precisam fazer para atingir a superfície da narrativa com suas vozes sem sonoridade; 6 – O Círculo menor e externo representa o silêncio da natureza (silere), imposto de fora para dentro, capaz até mesmo de subtrair o poder do narrador em impor sua vontade – na narrativa observado pelas vias do medo –, este silêncio apresenta-se, também, em linha contínua por ter essa capacidade de atingir a todos os níveis anteriormente citados; e 7 – As setas externas representam todos os fatores externos e internos – por isso as pontas duplas –, que podem influenciar a observação de um caleidoscópio: luz, espelhos utilizados, tipo de objetos e fragmentos introduzidos. Na tradição literária corresponderia ao leitor, neste caso, ao observador da imagem construída.

 

3

É de singular importância a constatação dessa forma circular-caleidoscópica de Anacrusa, porque ela nos permite traçar distintas afirmações sobre a narrativa e sobre o silêncio que se apresenta nas linhas e nas entrelinhas. Quando se considera a fragmentação necessária aos constituintes desse objeto imagético, o leitor pode ter facilitada a visão dos acontecimentos presentes no romance. Colocados de maneiras soltas, com diversos espaçamentos gráficos entre si, os detalhes narrados por Antonio podem ser de difícil compreensão se observados por uma ótica linear, haja vista a necessidade de se fazer espelhamentos daquilo que é narrado em um determinado momento do texto e repetido em partes futuras. Reconhecer que imagens de um caleidoscópio não se repetem não exclui, no entanto, a possibilidade de se reconhecer um mesmo fragmento em imagens distintas e é, então, essa percepção que auxilia-nos na construção dos sentidos propostos para leituras de Anacrusa. Não suficiente, é crucial a observação de que, dentre os fragmentos do texto, encontra-se o silêncio e suas múltiplas faces. Muitas vezes imposta pelo narrador, em outras impostas de dentro para fora, pela natureza; o silêncio encontrado neste romance ajuda a formar as imagens desse fragmentado mundo construído por Ricardo Daunt.

Assim que observa-se, por exemplo, que os interditos da voz narrativa revelam uma falha do próprio narrador que, durante toda a história, tenta construir-se como alguém digno de confiança diante das outras personagens que têm alterações de humor, de caráter e até mesmo de idade, uma vez que são colocados como recém-nascidos dos quais Antonio deve cuidar. Assim, deve-se lançar sobre o narrador de Anacrusa um olhar de desconfiança natural aos narradores de ficção, pois, no rastro do pensamento de Rosenfeld (2014, p. 26), tem-se a certeza desse elemento do romance como um condutor capaz de fazer manipulações, afinal,

o narrador fictício não é sujeito real de orações, como o historiador ou o químico; desdobra-se imaginariamente e torna-se manipulador da função narrativa (dramática, lírica), como o pintor manipula o pincel e a cor; não narra de pessoas, eventos ou estados; narra pessoas (personagens), eventos e estados.

A possiblidade de manipular os acontecimentos internos, explorada por Antonio, requer uma atenção maior do leitor na busca pela compreensão da narrativa apresentada. O que Rosenfeld alerta é justamente para a necessidade de se desconfiar daquele que detém todo o poder sobre o que deve ou não aparecer na superfície do texto. Dessa maneira, é por meio dos interditos impostos por Antonio que se percebe a real personalidade dele próprio e não dos outros como ele tenta fazer, constituindo como interessante observação as falhas de Antonio quanto a seus próprios comportamentos porque elas são cruciais para a compreensão do texto aqui analisado, afinal, tomando como base o princípio proposto por Agamben (2017, p. 184) de que “é apenas na casa em chamas que se torna visível o problema arquitetônico fundamental”, conseguimos identificar, nos silêncios e interditos da voz narrativa as problemáticas pessoais que Antonio deseja projetar sobre as demais personagens, especialmente Isabel.

Considerando a desconfiança lançada sobre o narrador, encontra-se na condução de Antonio uma materialização do caos constituído no mundo em que eles estão, refletindo o caos que ocorre em seu psicológico, conforme observado nas duas afirmações contraditórias feitas em um curto espaço de tempo narrativo: “a cenoura: estou a comê-la de dentro do armário” (DAUNT, 2004, p. 15) e “a cenoura: não estou a comê-la de dentro do armário” (DAUNT, 2004, p. 16), revelando a bagunça interna de seus pensamentos. O caos do psicológico de Antonio parece-nos ter base em uma fuga da razão impetrada pelo narrador, de maneira que diversos medos surgem, dando margem, também, ao aparecimento de monstros e criaturas surreais (vide mariposas gigantes, moscas etc) dentro da narrativa. Sobre essa possiblidade, é bastante interessante a reflexão feita por uma doutora em ciências agrícolas, sobrevivente da região de Chernobyl: “Se a fé na razão abandona o homem, na sua alma se instala o medo, como ocorre com os selvagens. E surgem os monstros”. (ALEKSIÉVITCH, Svetlana. 2016, p. 202)

A ambiguidade das afirmações feitas por Antonio em relação à cenoura que serviria de alimento para Isabel revela um lapso narrativo, uma vez que seu envolvimento com a história narrada é tão grande que ele não consegue mais distinguir o que aconteceu ou não de fato. Nesses trechos, vê-se que o narrador recorre ao monólogo interior como uma forma de sair do caos já instalado por ele no mundo externo a si. O medo de cometer erros que revelem suas falhas é, na verdade, o que acaba entregando o caráter pouco confiável desse narrador.

Sobre essa construção narrativa, de um monólogo interior como via de fuga do mundo construído, importa observar o que considera Adorno (2012, p. 59, grifos do autor) acerca dessa especificidade do narrador moderno. Para o teórico,

o narrador parece fundar um espaço interior que lhe poupa o passo em falso no mundo estranho, um passo que se manifestaria na falsidade do tom de quem age como se a estranheza do mundo lhe fosse familiar. Imperceptivelmente, o mundo é puxado para esse espaço interior – atribuiu-se à técnica o nome de monologue intérieur.

 Recorrer ao monólogo interior não é uma característica exclusiva do narrador contemporâneo, no entanto, além dessa manifestação ser mais recorrente nas obras do presente período, ela é feita de maneira que o condutor da narrativa, mesmo sem perceber, entrega ao leitor as minúcias de seu discurso que podem ser reveladoras ou não. No caso em questão, vemos que a confusão do monólogo interior de Antonio gera para o leitor a perspectiva dessa confusão, desse caos que não se limita ao enredo psicológico e atinge o próprio trama narrativa que, por sua vez, se apresenta de maneira fragmentada.

Por entendermos que a arte literária não trata apenas de uma simples transmissão de conceitos e que, ao contrário disso, a arte conceitua sem, por muitas vezes, ter isso como propósito, temos como importante a constatação dessa relação observada entre o caos interior e o caos da linguagem em Anacrusa. Neste caso, o que se postula é a confluência entre os caoses; sim, o monólogo interior e a superfície caótica da linguagem desse romance se retroalimentam principalmente por meio do narrador-protagonista. São os conflitos internos de Antonio os exteriorizados para o leitor e, se há uma instituição conflituosa conduzindo a narrativa, não há fuga possível, é o caos que se observará na estética do romance. Desse modo, a “expressão das realidades profundamente radicadas no artista” (CANDIDO, 2014, p. 31) são percebidas pelos silenciosos fragmentos de um caleidoscópio de imagem eternizada para o leitor, mas sempre questionadora dessa própria eternização. É, por fim, a união do caos da linguagem com o caos da ordenação do romance que torna indispensável – ou se faz indispensável, a depender da perspectiva – o monólogo interior neste romance contemporâneo, porque o homem do século XXI, nesta sociedade explora no caos externo condições e justificativas para o seu caos interno.

Seja como forma de opressão da personagem Isabel, seja como forma de materializar o caos vivido por ele e as demais personagens, é, então, por meio do silêncio (e do silenciamento) que esse narrador constrói a sua identidade. Com fragmentos vários, dentro de um caleidoscópio silencioso, as imagens do romance se formam, mas só vem à tona de acordo com a vontade de demonstração do narrador, ou até que o crítico literário se proponha a analisar a entender. Assim, o romance de Daunt constrói-se, dentre outros fatores, por meio do movimento de reflexão e refração da tradição literária, por seus diálogos internos e externos e, neste caso, por silêncios em um caleidoscópio, pois se tem a imagem feita por palavras e a comunicação integrada pelos silêncios significativos. Uma dialética que estabelece diálogos.


REFERÊNCIAS 

ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. Tradução: Jorge de Almeida. 2 ed. São Paulo: Duas cidades; Editora 34, 2012.

AGAMBEN, Giorgio. O homem sem conteúdo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

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RICARDO DAUNT . TRIBUTO

revista triplov . série gótica . primavera 2020