Religião com Espiritualidade

RUI MANUEL GRÁCIO DAS NEVES

Religião sem Espiritualidade? Espiritualidade sem religião?
Ou religião com Espiritualidade?


Participação no IV Encontro Triplov na Quinta do Frade. Lisboa, Mosteiro das Monjas Dominicanas do Lumiar, 4 de novembro de 2017.


  1. Permitam-me uma brevíssima reflexão estético-espiritual sobre esta questão, antes de passar a apresentar-vos as minhas “poesias”.

Religião sem Espiritualidade é algo assim como uma fruta só com a casca. Ou a mera casca da fruta. É ficar num conjunto (compulsório, ainda por cima) de dogmas, templos, imagens, clero (normalmente, masculino), normas éticas, leis litúrgicas, deveres… Ou seja, ficar meramente na capa externa. Perde-se então o Interno. O Interno é a Experiência Fundante (em todas as religiões), aquilo que significa o mais nuclear de qualquer prática religiosa. O Interno é a Peregrinação Interior, a Mística. Perde-se assim o Mistério. Fica-se na palavra sem silêncio. O Silêncio é a matriz, o útero da Palavra. Sem Silêncio não há Palavra. Faço aqui uma declaração da significatividade do Apofatismo.

  1. Portanto, é importante a Arte, a Poética, a Música… porque transcendem o conceito, o discurso acabado (Teologia/Filosofia). A “metáfora” é ir mais além, sugerir, não fechar, mas pelo contrário abrir um mundo novo de novas possibilidades e significados. Trata-se de assumir o Paradoxo, a Contradição, como condição da vida mesma.

 

  1. Vejamos alguns exemplos:

3.1. Em vários templos hindus, tendo crematórios (é o caso de um importante templo nos arredores de Katmandu, no Nepal), é possível ver reproduzidas neles imagens eróticas e sexuais, representando cópulas humanas. É interessante observar esta convergência contraditória (complementar) de Morte e Vida juntas. Geração (procriação) e cremação de cadáveres, entrelaçadas, Integrar as polaridades, transcender o dualismo e a unilateralidade, para submergir-se na Totalidade.

3.2. Em vários hinos e cantos medievais encontramos “Hinos da Morte”, que são cantos cheios de vida, energia, ritmo e dança. São realmente celebrações vitais, uma explosão de força, energia e vitalidade (talvez Nietzche gostaria disto…). De novo, Morte e Vida entrelaçadas.

(Ouçamos neste sentido o famoso Ad mortem festinamus, do Llibre Vermell, da Cataluña, do século XIV, da Idade Média, portanto) (Alguém do público sugeriu, a modo de comentário, que o mesmo se poderia ter dito do Carmina Burana).

Poderiamos destacar assim os seguintes versos:

“Scribere proposui

De contemptu mundano,

Ut degentes seculi,

Non mulcentur in vano.

Iam est hora surgere

A sompno mortis pravo.

 

Vita brevis breviter

In brevi finietur

Mors venit velociter

Quae neminem veretur.

Omnia mors perimit

Et nulli miseretur.

 

Ni conversus fueris

Et sicut puer factus,

Et vital mutaveris

In meliore actus,

Intrare non poteris

Regnum Dei beatus.

 

Cuncti reges seculi

Et in mundo magnates

Advertant et clerici

Omnesque potestates:

Fiant velut parvuli,

Dimitant vanitates”.

  1. A continuação queria recitar dois “poemas”meus, um em espanhol e outro em português, com a ideia de Religião com Espiritualidade, ou melhor, na Espiritualidade. A música de fundo é um canto prolongado do om, a sílaba sagrada dos hindus (o seu Maha Mantra), um CD só com este som cósmico primordial, que trouxe da minha última visita à India, onde acabo de estar em esperiência de ashrams. Ei-los:
  1. ORACIÓN AL DIOS DE LOS MUCHOS NOMBRES[1]

Al Dios de todos los nombres

Culturas, naciones y credos,

Conocidos y aún por conocer,

Al Dios más allá de todo nombre,

Filosofía y palabra,

Cercano y lejano,

Al DIOS DESCONOCIDO,

Elevo yo mi plegaria.

 

Al Dios combatiente

Del lado del pobre,

Al Dios parcial,

Rebelde,

Subversivo,

Paciente,

Estratégico,

Solidario,

Junto yo mis fuerzas.

 

Al Dios hecho carne,

Carne infrahumana y dolorida,

De refugiado político,

Explotado,

Obrero,

Inmigrante “sudaca”,

Al Dios mil veces derrotado,

Pero jamás definitivamente aniquilado,

Al Dios sudor y sangre,

Lágrimas de Tierra Prometida,

Al Dios de la Nueva Aurora,

Me uno yo en Espíritu.

Al Dios que es, fue y será,

Al Dios Eterno,

Que un día alcanzó a ser,

En la Historia del Cosmos,

Parte de su misma Obra,

Al Dios también Mujer, Negro e Indio,

Al Dios Artista, Poeta y Utópico,

Abro yo mi corazón.

 

Al Dios sencillo,

Sin máquina partidaria,

Sin estructuras consolidadas,

Terremoto de burocracias,

Eclesiales o estatales,

Que habla por la voz de un niño,

Espero yo algún día poder comprender.

 

Y al Dios de toda la vida,

Y también del final del camino,

Al Dios sorprendente,

Al Dios maduro,

Esencialmente revolucionario,

Estrella y peregrino,

¡ayúdame,

Jesús,

De verdad,

Algún día a poderlo abrazar!

 

(SÃO PAULO, 25.12.1992, Navidad)

(De: Rui Manuel Grácio das Neves, Utopía y Resistencia. Hacia una teopoética de la liberación. Editorial San Esteban, Salamanca 1994, p. 29-30.).


  1. MISTÉRIO

 

Mistério: a Última Palavra sobre o Ser. E, ao mesmo tempo, a Primeira.

Nada há mais além. O Fim sem Nome. A Existência sem Nome. E sem Medo. Acostumámo-nos a dar Nome a tudo. De maneira que, quando não há Nome, essa “coisa” não existe. Mas o Mistério não é uma coisa indeterminada ou indefinível. Não é realmente uma “coisa”. Mas como podemos os humanos falar de não-coisas?

Quem sou Eu? Existo? Existe algo denominado ‘Eu’? De onde provém? Para onde vai? Perguntas metafísicas! As únicas importantes. O resto é como Sobreviver, com uns poucos euros, como aquela velhota de Madrid, que apareceu nos jornais, que tomava a vida “com muita filosofia”, pois sobrevivia com trezentos euros por mês. O Metro era o seu ginásio. Subir e descer escadas. Descer e subir escadas, de novo. O Mito de Sísifo. Andar muito, o seu exercício físico e mental. Comprar nos Supermercados mais baratos. Economizar. Ler o Jornal só nos Bares. Cultura, poderíamos até dizer, nos Centros Culturais da Comunidade. Um amigo meu faz isto e até recebe livros grátis. E Conferências. Sabedoria da Vida! Viver com um sorriso, sem se preocupar. Don’t worry, be happy! Filosofia neo-cínica!

Por todas as partes há anúncios, monótonos, que pedem-impõem!- que compremos. Compre, compre, compre! Eis a filosofia desta época. (E a velhota, claro está, comprará a fruta mais barata, no supermercado mais económico do bairro). E o Director Geral, um Mercedes Benz. Vales o teu carro. Tanto consomes, tanto vales! Sistema dixit! E Glória ao deus Capital!

Compre, compre, compre!

Não há Mistério!

Não há Vida!

Só Vómito!

Mas Aí começa também o Mistério da nossa Redenção!

(lisboa

16.08.06

nagpur

14.12.06)

(De: Rui Manuel Grácio das Neves, De Holistica Poetica. CEPSE, Benedita 2013, p. 81-82).


  1. E, finalmente, como despedida, queria ler um texto de Espiritualidade atual, em inglês, onde se mostra esta “revolução existencial” de que falamos:
“The beginning of freedom is the realization

That you are not “the thinker”.

The moment you start watching the thinker,

A high level of consciousness becomes activated.

You then begin to realize that there is a vast realm

Of intelligence beyond thought, that thought is only a

Tiny aspect of that intelligence.

You also realize that all the things that truly matter-

Beauty, love, creativity, joy, inner peace-

Arise from beyond the mind.

 

You begin to awaken”[2].

 


[1] A los pueblos afros y amerindios, en sincera petición de perdón por los crímenes religiosos del pasado histórico.

[2] ECKHART TOLLE, Practising the Power of Now, Yoghi Impressions, Mumbai 2002, p. 5. (De: Rui Manuel Grácio das Neves, De Holistica Poetica. CEPSE, Benedita 2013, p. 109).


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