O presságio

 

 

OLGA OROZCO
1920-1999  ARGENTINA
TRAD.: FLORIANO MARTINS

 

 

 


MENOS AINDA QUE RELÍQUIAS

São apenas duas pedras.

Nada mais que duas pedras sem inscrição alguma,

recolhidas um dia para serem somente pedras no altar da memória.

Menos ainda que relíquias, que testemunhas inermes até o juízo final.

Chegaram a mim, das duas vertentes de minha genealogia,

mais remotas que lapas aderidas às cegas à prescindência e ao torpor.

E de repente certo matiz intencionado,

certo recolhimento suspeito entre as tensas bordas a ponto de estalarem,

o suspenso que vibra em uma estria demasiado insidiosa,

demasiado evidente,

me anunciam que começam a oficiar desde os anfiteatros dos mortos.

 

A que aludem agora estas duas pedras fatais, milenares,

com seus brilhos cruzados como o sangue que desliza por minhas veias?

A fábulas e a histórias, a estirpes e a regiões

entretecidas em um só encaixe, das duas costas do destino

até à trama de meus ossos.

 

Exalam outra vez esse tempo ciclópico em que os deuses eram meus antepassados

– malfeitores solenes, ocultos na onda, no vulcão e nas estrelas,

desceram à ilha a transplantar seus templos, suas represálias, seus infernos –

e também esses séculos das terras eriçadas, emboscadas no olho do zorro,

famintas no bocejo do jaguar, imensas na mudança de pele da serpente.

Passam heróis de sandálias ao vento e monstros confabulados com a rocha,

povos que traficaram com o sol e povos que foram somente dinastias de eclipses,

invasões tenazes como como trilhas de formigas sobre um mapa de coagulado mel;

e aqui passam as nuvens com seu ilegível código, excursões selvagens,

e o bruxo da tribo domesticando os grandes espíritos como um encantador de pássaros

para que falem pelo rufo da chuva, pelo fogo ou a semente,

pela boca amontoada da humilde vasilha.

Em um filete de névoas se inscreve a metade confusa de minha espécie,

enquanto mudam de vestimentas as cidades o sobem as montanhas ou se lançam ao mar,

seus belos rostos voltados para o último rei, para o último êxodo.

Um cortejo de sombras vem do outro extremo de minha herança,

chega com o conquistador e funda as colônias do ódio, da espada e da cobiça,

para expropriar o ar, os veados, os matagais e as almas.

Aproxima-se uma aldeia encalhada no alto do abismo igual a uma arca estragada,

uma coroa agreste que abandonou o normando e recolheram os ventos e as cabras,

muito antes que o avô conhecesse o riso e as beberagens para expulsar os males

e a avó, tão alta, enlutasse seu coração com despedidas e desgastasse os rosários.

Agora se ilumina um casario ao redor do arbusto, o cego e o milagroso santo;

é poeira e fumaça por detrás dos calcanhares da invasão, dos cães extraídos do diabo,

pouco antes que o avô disfarçasse de fantasmas as vinhas, os mirantes, os currais,

e a avó se internasse por bosques enfeitiçados a perseguir a ave das sete cores

para bordar com plumas a flor que não se fecha.

E ali vem meu pai, com o oceano recuando às suas costas.

E ali vem minha mãe flutuando com cavalos e voadora.

Estou em uma jaula onde o mundo começa em um gemido e continua na ignorância.

 

Porém atrás de mim não resta ninguém para seguir fiando a trama de minha raça.

Estas pedras o sabem, fechadas como punhos obstinados.

Estas pedras aludem a nada mais que uns ossos cada vez mais brancos.

Anunciam somente o final de uma crônica,

apenas uma lápide.


O PRESSÁGIO 

Estava escrito em sombras.

Foi traçado com fumaça em meio a duas asas de cores,

quase uma incrustação de rigoroso luto cortando em dois o brilho da festa.

O anunciara muitas vezes o queixume congelado do cristal sob teus pés.

Disseram-no obscuros personagens girando sempre às tontas,

porque nunca há saída para ninguém nos albergues vertiginosos dos sonhos.

Propagara a relva que foi uma áspera, tenebrosa plumagem uma manhã.

Confirmaram-no dia após dia as súbitas fissuras nos muros,

os traços de carvão sobre a pedra, as aranhas translúcidas, os ventos.

E de repente transbordou a noite,

ultrapassou na medida do perigo as vitrines fechadas, os laços ajustados,

as mãos que a duras penas continham a pressão tormentosa.

Um grande pássaro negro caiu sobre teu prato.

É como a envoltura de algum fogo sombrio, taciturno, sufocado,

que veio de longe furando ao passar a intacta proteção de cada dia.

Agora observas fumegar essa colheita arrepiante.

Chega das mais remotas plantações de teu pressentimento e de teu medo,

chega incessantemente exalando o mistério.

Está sobre teu prato e não há distância alguma que te afaste,

ou esconderijo possível.


NO FINAL ERA O VERBO

Como se fossem sombras de sombras que se afastam as palavras,

labaredas errantes exaladas pela boca do vento,

assim dispersam-se em mim, perdem-se de vistas contra as portas do silêncio.

São menos que as últimas manchas de um cor, que um suspiro na relva:

fantasmas que nem sequer se assemelham ao reflexo que foram.

Então não haverá nada que se mantenha em seu lugar,

nada que se confunda com seu nome, da pele até os ossos?

E o que me cobiçava nas palavras como nas dobras da revelação

ou que fundava mundos de visões sem fundo para substituir os jardins do éden sobre as pedras do vocábulo.

E acaso não tentei pronunciar ao contrário todos os alfabetos da morte?

Não era esse teu triunfo nas trevas, poesia?

Cada palavra à imagem de outra luz, à semelhança de outro abismo,

cada uma com seu cortejo de constelações, com seu ninho de víboras,

porém disposta a tecer e destecer, desde seu próprio dorso, o universo

e a prescindir de mim até o último nó.

Extensões sem limites dobradas sob o signo de uma asa,

tramas como farrapos para deixar passar o sopro alucinante dos deuses,

reversos de onde o mistério se desnuda,

onde lança um a um os sucessivos véus, os sucessivos nomes,

sem alcançar jamais o coração fechado da rosa.

Eu velava incrustada no ardente gelo, na fogueira cristalizada,

traduzindo relâmpagos, desenfiando dinastias de vozes,

sob um código tão indecifrável como o das estrelas ou o das formigas.

Olhava as palavras contra a luz.

Via desfilar suas obscuras descendências até o final do verbo.

Queria descobrir Deus por transparência.


revista triplov . série gótica . outono 2019

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21 MULHERES SURREALISTAS

EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019

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