Leila Ferraz e a marca indelével do maravilhoso

FLORIANO MARTINS 


Nos dois últimos anos (2015-2016) um dos aspectos mais ressaltantes de minha vida foi a forma como tomou corpo e espírito uma amizade que é a soma de incontáveis variantes, meu carinho especial por Leila Ferraz, dois cancerianos que se descobrem já passados na casca do alho, como tão bem sugere uma expressão popular. De algum modo frequentamos alguns ambientes coincidentes, compartilhamos relativa amizade com nomes comuns, observamos o cenário de que participamos com uma lente assemelhada etc. Porém nunca nos vimos; nunca nos encontramos. Não sei por qual renitência cósmica assim permanecemos: dois seres quase obstinadamente virtuais. De qualquer forma, essa materialidade que nos falta não chega a nos preocupar. O acento a que me refiro neste recente biênio destaca uma variedade de temas e projetos que abordamos.

Leila Ferraz foi uma referência fundamental para uns últimos esclarecimentos que faltavam a meu livro sobre Surrealismo na América. Graças a ela também pude ampliar o espectro de pauta da Agulha Revista de Cultura, não apenas contando com sugestões suas como também a tradução de alguns textos. Em meio a tudo isto se descortinou uma afinidade em grau suficiente para que nos propuséssemos um parto comum: a feitura de um livro de poemas, fotos, desenhos, a quatro mãos. Do que está em andamento, apenas uma breve referência. O que agora nos alenta é a montagem de um diálogo, através do Messenger, cuja intensidade diária, nos últimos dois anos, certamente redefiniu nossas vidas. Editar aqui este proseado incomum é uma tarefa algo dolorida, tamanha a vontade de simplesmente lhe reproduzir a íntegra. No entanto, há dois tempos que funcionam como balizas: o tempo de leitura, que se torna diabolicamente menor na medida em que temos maior acesso à informação, e o tempo de discernimento sobre o quilate relevante do diálogo em si. Creio que chegamos a um termo sóbrio de excelência.

O leitor tem assim acesso a uma fragmentação expressiva, recortada não ao ponto da ilegibilidade. O extrato final é um ofertório sincero da conversa entre dois criadores. Leila Ferraz (1944) nasceu poucos dias antes de mim, nove dias de um mesmo junho, o que nos irmana muito além de qualquer referência cronológica. Desde o primeiro sinal de nossa identificação que parecemos como figuras entranhadas em uma mesma pedra que registrasse uma estranha forma de amor milenária. Este diálogo foi originalmente realizado para constar de um capítulo de Um novo continente – Poesia e Surrealismo na América, de próxima aparição.

 

FM | Leila, eu queria começar este nosso diálogo ouvindo acerca de tuas reminiscências em relação ao Surrealismo, o primeiro instante em que ele surge em tua vida. De algum modo sempre me pareceu tola a assertiva com ares de enigma do Breton que aponta na direção de que “o Surrealismo é o que será”. A começar pelo fato de que ele próprio, com seus excessos de dogmatismo, jamais deixou o Surrealismo livre para ser o que lhe desse na veneta.

 

LF | Floriano, meu primeiro encontro com tudo aquilo que um dia eu viria a descobrir ser Surrealismo se deu em uma conversa, melhor dizendo, quase um monólogo com o artista plástico Wesley Duke Lee.

Sem que eu me desse conta do tempo a conversa iniciou-se no meio da manhã e terminou ao cair da noite. Eu já estava fascinada com a inteligência, clareza e sensibilidade daquele que para mim era o senhor Wesley, um artista de renome desde a década de 50.

Wesley partiria na manhã seguinte para mais uma temporada de estudos e exposições nos Estados Unidos. E antes de ir embora, foi levar um desenho para um amigo em comum. O assunto era Artes e foi discutido com muita propriedade e humor – o que torna as coisas e o aprendizado ainda melhores. A arte fazia parte de nossas vidas. Nessa época eu tinha 18 ou 19 anos e cultuava a pintura, o desenho, a leitura, os estudos, a poesia, a filosofia, o cinema, enfim, tudo o que dava imenso prazer de me sentir um ser humano completo: pensar e ver o pensamento ou a intuição se transformar em realidade através dos sonhos, da imaginação, da capacidade de transformar as mesmices de sempre. Um novo mundo acabava de se abrir! Depois daquele dia, passei a refletir mais, observar com cautela o que havia à minha volta, benzer cada palavra de um poema ou procurar conhecer mais, mais ainda sobre as técnicas que eu utilizava para me expressar. Naquele dia, não tive coragem de me colocar, por mais que eu quisesse lhe dizer o quanto tudo aquilo fazia sentido para mim, não consegui abrir a boca. Pensei, algum dia, talvez, eu fale o que penso com ele. De fato, poucos anos depois, Wesley voltou ao meu universo. Eu também era capaz de tocar as sensibilidades do mundo onírico, do uso de objetos como arte, instalações e mostrar minha arte além do mundo bidimensional. Tinha crescido.

A liberdade de ser livre, finalmente, chegara, apesar da rígida vigilância exercida por meus pais e das horas intermináveis de estudo colegial. Em 1965 entrei para a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de São Paulo – USP, para estudar Ciências Sociais. Embora tivesse entrado também para o Curso de Filosofia, que era minha preferência e não pude cursá-lo porque meu pai não autorizou: o curso era só noturno.

Com toda essa liberdade também veio o desejo de fazer o que eu bem entendesse e após dar aulas num Colégio para crianças, fui convidada a ser secretária na Cinemateca Brasileira. A aventura estava apenas começando. Finalmente eu estava próxima de onde mais queria estar: o Museu de Arte de São Paulo e a Cinemateca.

A partir de então, no final da adolescência, tive a oportunidade de conhecer e trabalhar com pessoas que tanto admirava: Rudá de Andrade, filho de Oswald de Andrade, João Batista de Andrade, cineasta, Jean-Claude Bernadet, cineasta, Francisco Ramalho, também cineasta e Sergio Claudio de Franceschi Lima, intelectual, poeta, artista plástico, cineasta e com uma bagagem cultural imensa, sem dúvida sedutora. Trabalhamos juntos em vários projetos importantes para a cultura. Festivais de Cinema Polonês, Cinema Japonês, Expressionismo alemão, Suítes de curtas metragens interessantíssimas pelo conteúdo e forma.

Inevitável que nos apaixonássemos e nos casássemos logo a seguir. E aqui começa uma longa jornada pela vida. Em 1965, com 20 anos, não poderia me casar sem autorização de meu pai. Não tivemos dúvidas, fugimos! Ficamos escondidos na casa de Sérgio pelos dias que faltavam para eu completar 21 anos e assinar meu casamento. Período mágico, romântico, fascinante e de tirar o fôlego, tal a mudança que acabara de realizar. Não apenas pelo ato revolucionário, o de fugir, mas principalmente por fugir para um mundo que eu podia partilhar.

Nessa época, além da Secretaria da Cinemateca, passei a frequentar, no Ibirapuera, o Museu da Cinemateca. Lá era a sede aonde havia a sala de edição, livros, publicações e centenas de rolos de filmes.

As mudanças estavam apenas começando. O mundo do Sergio era vasto, profundo e maravilhoso. Aos poucos eu mergulhava de cabeça no Surrealismo. Passei a estudar e ler tudo a respeito e tive contato com as obras de Breton, Benjamin Péret, Aragon, Desnos, Mallarmé, Sade, Vicent Bounoure, Anne Lebrun, Charles Fourier, Benoit, José Pierre, Joyce Mansour e tantos outros. Ao mesmo tempo, passei a conviver com Claudio Willer, Roberto Piva, Maninha, Raul Fiker, Roberto Bicelli, Paulo Antônio de Paranaguá, Maureen Bisilliat e todas as pessoas que de forma direta ou indireta pertenciam à intelectualidade da época.

Com Piva, Fiker Willer, Maninha, Bicelli, Paulo Paranaguá e Maureen os contatos foram mais intensos e duradouros. Sempre que podíamos, nos encontrávamos. Fizemos muitos cadáveres delicados juntos. Algumas leituras e, de início, quando surgiu a ideia de se fazer uma exposição Surrealista, várias reuniões.

 

FM | Vamos estabelecer aqui dois afluentes. Por um lado eu gostaria de saber mais a respeito da relação entre Surrealismo e tua criatividade, afinidades, simpatias, influências, definições estéticas.

 

LF | Floriano, o surrealismo me supriu na realização plena tanto nas artes plásticas, como na poesia e literatura. Meus contos são tomados pelo pensamento mágico. E a poesia, pela total entrega aos signos e automatismo – que sempre explodiu. Minha mente já nasceu dotada para a total compreensão e expansão dos significados das palavras. Eu as animei de acordo com minhas emoções e desejos de expressão. Meu mundo e o mundo dos significados se contemplaram um no outro. Para mim as palavras são deuses que se recriam eternamente em meus poemas, falas e artes plásticas. São a manifestação do meu imaginário em constante movimento e assim, infindáveis. Um estado de puro prazer.

 

FM | O outro afluente de nossa conversa diz respeito a questões pontuais no tocante, por exemplo, à produção da Exposição Internacional do Surrealismo, a edição da revista A Phala e a própria formação grupal. Claudio Willer me disse que praticamente não houve um grupo, que eles se encontravam para conversar, mas que não havia a formalização de um grupo. Comecemos pela Exposição.

 

LF | Claudio Willer está absolutamente certo! As críticas da época foram bastante negativas. O jornal O Estado de São Paulo, principalmente. Geraldo Galvão Ferraz foi muito contundente e chegou a dizer que Sérgio fez aquela exposição para sua mulher, que era eu… por conta da peça e trabalhos que apresentei. Praticamente não houve outros brasileiros participando. Sérgio acabou pressionado pelo curto espaço de tempo que tínhamos e pela não adesão dos então surrealistas da época ⎼ ou que ele considerava surrealistas. Foram incluídos trabalhos de internos do Instituto Franco da Rocha. Creio que para justificar a manifestação do inconsciente liberando-se livremente, incluiu-se um artista primitivo: Cássio M’Boi Mirim. As críticas não foram boas porque os artistas que eram tradicionalmente surrealistas naquela época e antes dela, como Walter Levy, Maninha, Gregório Gruber, o próprio Wesley Duke Lee, não aderiram, pois não queriam ser engajados em um movimento tão ortodoxo, como foi apresentado. Do Brasil, participou também o Raul Fiker.

 

FM | Sobre a temática da exposição, fruto de tua correspondência com André Breton e Vincent Bounoure, como chegaram a essa brilhante imagem da mão mágica e o andrógino primordial?

 

LF | Na verdade, eu cheguei a essa imagem, ou seja, a ideia foi minha. A mão aberta mostra/revela o destino de cada um. O destino e sua destinação ou trajeto. O andrógino primordial para mim é o processo alquímico da natureza amorosa do ser humano e suas manifestações. A mão aberta, o mapa primeiro e único com o qual nascemos. E a mão como símbolo sagrado das realizações. As palavras, as manifestações eternas de nossos pensamentos tomam formas no espaço.

 

FM | Queria conversar contigo sobre a presença do Flávio de Carvalho na exposição.

 

LF | Certa vez fomos convidados para visitá-lo em sua casa em Valinhos. A esplêndida casa estava aberta. Vazia! Uma porta descomunalmente alta e que tinha uma cortina leve, que voava para dentro do estúdio-casa, criava um ambiente fascinante. Uma sala imensa e com um pé direito de perder de vista me elevou ao ápice da criação arquitetônica. O que mais me surpreendeu foi justamente a presença de sua ausência e de sua belíssima mulher. Vagamos pela sala o tempo que bem quisemos. Numa espera deliciosa. E como muito tempo se passara, resolvi sair com minhas filhas e tomar um banho em sua piscina. Primeiro entraram as crianças. Depois eu tirei todas as roupas e mergulhei naquelas águas verdes e cheias de plantinhas estranhas. Nadei e nadei. Até me dar conta de que sendo Flávio quem era, no mínimo deveria haver um jacaré tomando conta da piscina, e tratei de sair logo. Meu tio, que nos levara até Valinhos, tirou algumas fotos. Saí da piscina, vesti-me. Tudo isso com a certeza absoluta de que, de algum lugar, Flávio de Carvalho nos observava! Delícia!

 

FM | De certa forma, sim, ele era um notável observatório…

 

LF | Tive outra visão dele, criança ainda. Minha avó se dedicou muitos anos por meu polimento cultural e ao saber, pelo rádio, de que Flávio de Carvalho faria uma performance pela cidade, ao final dos anos 1940 ou começo dos 1950, levou-me ao centro de São Paulo, mais precisamente à rua de São Bento. E lá o acompanhamos e seguimos rua acima. Ele vestia-se de jornais. E a multidão entre o espanto e o delírio o seguia. Este episódio marcou-me profundamente, para toda a vida. Foi inesquecível e transformador. Sempre fui presenteada pelo destino de estar no lugar certo e na hora certa.

 

FM | Insisto no assunto, a propósito de que, em entrevista que fiz ao Sergio Lima, ele diz que a exposição teria contado também com “as ajudas decisivas de Maria Martins e Flávio de Carvalho”. Na revista A Phala se reproduz uma escultura de Maria Martins, [1] além da tradução do texto que a ela lhe dedicara André Breton. Porém não há nada de Flávio de Carvalho. Já na exposição, qual teria sido a participação de ambos?

 

LF | Pequena. Pelo que me lembro, estivemos Sergio, eu e Paulo Paranaguá no apartamento de Maria Martins. Lá, quem nos recebeu foi sua filha. Contudo, o encontro não foi tão produtivo, naquele momento. Creio que sua participação ficou mais a cargo dos contatos através de Paulo Paranaguá, pelo fato dele transitar o mundo diplomático, já que o pai dele era da embaixada e logo seria transferido para Paris, junto com o novo embaixador, e que o marido de Maria Martins era do mundo diplomático. O desdobramento do contato, muito provavelmente, deu-se nessa esfera do Itamaraty. Já o Flávio de Carvalho, não tenho qualquer documento ou lembrança forte o suficiente que sustente sua participação. Em minha opinião de hoje, não creio que ele quisesse filiar-se ao Movimento Surrealista. Era livre demais e notório por suas atitudes individuais, de vanguarda e revolucionárias. Além de ser um provocador nato. Sacudia a sociedade.

 

FM | Dois anos após a morte de Breton, em 1968, retornaste a Paris. Com quais surrealistas ali mantiveste contato e qual a situação do grupo?

 

LF | É uma longa história. Meu objetivo primeiro foi o de dar continuidade aos meus estudos universitários em Paris ou Nanterre. Lá estando, fixar residência. Não queria mais morar no Brasil. Fiquei hospedada na casa de Paulo. Contudo, enquanto frequentei Nanterre, para estudar Sociologia e Política, tive a chance de frequentar o mesmo anfiteatro que Daniel Cohn-Bendit ⎼ o Dany, Le Rouge ⎼, grande mentor da Revolução de Maio de 1968. Na primeira semana de curso, a revolução histórica eclodiu. E então, como todos os demais alunos, passei das salas de aulas para as ruas… E nos finais de tarde Paulo e eu nos reuníamos no La Promenade de Venus.

No início ainda discutia-se sobre as tendências artísticas do Surrealismo. Coisas como participar ou não de exposições ou quais mostras iríamos prestigiar, participar etc. Nessa ocasião, o movimento Beat pipocava! E houve uma bela mostra com um vernissage notável dos representantes da Beat Generation. Recordo que um deles, Ted Joans, um belo homem negro, visitou o café, nessa ocasião, e foi muito bem recebido. Eu sentia naquele momento duas forças se movendo. Uma que defendia a Arte engajada ao posicionamento político e social que estava prestes a sacudir a França e outros países europeus. A outra, a da arte pela arte. Era uma luta de ideais e princípios acalorados. Discussões e reivindicações. Invocações do passado se batendo de frente com um momento e movimento novos. Prestes a eclodir. Notoriamente tínhamos Vincent Bounoure e Jean Schuster como líderes quase oposicionistas. As discussões eram muito agressivas. Paulo e eu nos identificávamos mais com a linha de pensamento engajado. Schuster não era dado a discutir seus princípios conosco. Trabalhava em uma agência de publicidade. Era sistemático. Falava para dentro. Eu não simpatizava com ele. Sempre me pareceu radical demais.

Logo ali chegamos: eu, Paulo, Jean Benoit, Mimi Parent, José Pierre e sua doce mulher, além de Jean-Claude Silbermann e, em certa ocasião, Matta, além de Camacho e sua mulher Gina Pellon. Abraçarmos o movimento estudantil e social como fundamental para a mudança que estava ocorrendo naquela época, em todos os segmentos da sociedade francesa e em Praga, por exemplo. Talvez fosse imperativo engajar-se.

 

FM | Posteriormente ao período ligado ao grupo, já de regresso ao Brasil, como tocaste tua vida?

 

LF | Voltei-me ao estudo da arte tida como contemporânea e o pensamento filosófico e junguiano, em especial Bachelard, Jung, Mircea Eliade e alguns surrealistas franceses. Além dos intelectuais e poetas latino-americanos. Houve uma cronologia de apreensão de conhecimento. Um aprendizado ao qual me dediquei. De certa forma e inicialmente, um leque mais eclético que foi sendo fechado em mitos, símbolos e signos. Além do cultivo das palavras e seu uso como instrumentos de expressão e criação poética. Quanto à plástica, voltei-me às revelações do mundo mágico da fotografia. E ao exercício liberado do desenho e da pintura-mágica, em muitas ocasiões. O que se passou também com minhas gravuras. Quase tudo o que produzi, no entanto, eu vendi. E não me preocupei em registrar. Uma pena. Creio que a explosão criativa foi na poesia. Sabes disto. É a supremacia da imagem como intensidade do pensamento e gesto humano de liberdade.

 

FM | Como se deu então a tua relação entre o cotidiano pragmático e o mundo mágico com que o surrealismo seguia acentuando tua existência?

 

LF | Em 1971 passei a frequentar a Escola de Artes Brasil. Meu objetivo era o de acrescentar ao que já havia realizado através do Surrealismo, novos conhecimentos técnicos e expandir meus conhecimentos através de um domínio de habilidades. Encontrei na Escola de Artes Brasil um momento anterior ao do meu encontro com o Surrealismo. A Escola havia sido fundada por quatro ex-alunos de Wesley Duke Lee: Carlos Fajardo, José de Moura Resende, Paulo Baravelli e Frederico Nasser.

A escola era um centro de experimentação artística dedicado a desenvolver a criatividade do indivíduo. Acredito que a grande ideia do projeto foi a de que o aprendizado da arte se desse dentro de ateliês. Ao contrário do espírito acadêmico das escolas de arte tradicionais. E foi justamente esse aspecto que me seduziu. Fotografei todo o espaço e ateliês da escola. Um grande espaço aberto. Muito bem iluminado no qual paredes e divisões foram abolidas. Houve inclusive uma vontade política manifestada na própria escolha do nome do lugar: Escola de Arte Brasil: (assim mesmo, com dois pontos). Estes dois pontos, de certa forma, demonstravam um tom irônico e indefinível frente ao nacionalismo dos governos militares. E também uma resposta às repressões impostas pelo AI-5. A escola fora concebida em 1968. Nessa época eu já estava em Paris, participando do Movimento de Maio, juntamente com todos os estudantes. Nessa ocasião desejei imensamente transferir-me para a França com minha família: marido e duas filhas.

 

FM | Como foi teu encontro com a fotógrafa Maureen Bisilliat?

 

LF | Eu a conheci através do Sergio Lima. O interesse deles era justamente a questão da arte indígena. Nossas afinidades começaram quando eu fiz a roupagem A anticintura de castidade. Então pedi a ela para fotografar a roupagem em uma modelo. Não havia ninguém, naquela época, capaz de ultrapassar os limites dos pudores, creio. Somente eu! E mesmo sendo bem jovem, resolvi posar com minha própria vestimenta. Que afinal fora moldada em meu próprio corpo. O fato de Maureen ter fotografado índias foi determinante para minha escolha. Meu imaginário abriu-se para ela. E permiti que compartilhasse da exposição das minhas zonas erógenas ⎼ que ficavam expostas. E todo o restante do corpo aceito, velado. Era a exposição dos desejos para os desejados. A partir daí foi nascendo uma grande amizade entre nós. As fotos foram feitas na presença do Sergio. Havia um clima de sagração e iniciação naquele momento. Não meu, mas, sob meu ponto de vista, uma iniciação do olhar deles. Procuramos manter o clima neutro de um estúdio. Mas a Maureen ficou fascinada com o erotismo e a beleza do momento.

O trabalho em si não existe mais. Era uma caixa de 1,65 m por 40 cm, e 30 cm de profundidade, e um vidro que se encaixava nas laterais para proteger a roupagem. Esta foi feita com malhas de balé ⎼ corpete e longuette. Bordei à mão em todas as aberturas recortadas da roupagem, com lantejoulas e miçangas pretas. Cortei o corpete no lugar dos seios para deixá-los expostos. Sob as axilas coloquei franjas à guisa de pelos. Ao mover os braços elas balançavam como cabeleiras curtas. Na longuette, cortei com uma tesoura e fiz uma grande abertura, com lantejoulas e miçangas de acabamento nas laterais, e preguei um zíper longo, que pudesse abrir a roupa. A abertura só era visível sem o corpete. Dos punhos aos ombros coloquei correntes de metal prateado. E se você olhar as fotos verá que elas também se cruzam sobre o peito como suspensórios em X. De cada lado da longuette coloquei um objeto em forma de garfo. Tudo isso colocado na caixa. Era uma grande escultura, de panos e metais. Foi batizada por mim de Objeto de funcionamento simbólico  a anticintura de castidade. Data de 28 de dezembro de 1965. Tenho fotos, apenas. Da caixa e da roupagem. Diversos negativos guardados por aqui. Foi a peça que recebeu os maiores e melhores elogios na Exposição, através de artigo de Geraldo Galvão Ferraz. Que não era meu parente. Anos depois, Ignácio de Loyola Brandão escreveu um artigo sobre o ineditismo e a importância da roupagem. Não tenho mais esses registros. Foi um trabalho e tanto. Talvez, talvez, eu gostasse de refazê-lo. Mas não teria a paciência e os 20 anos de idade!

No caso da Roupagem de Funcionamento Simbólico que descrevi, acredito ter criado algo revolucionário. Não apenas no sentido do Erótico mas, e principalmente, no sentido do amor. Através de elementos que poderiam sugerir uma oposição, procurei, antes, pela estética, criar uma libertação amorosa. Mitificando explicitamente o mistério da encarnação. Foi uma roupagem libertária e que poderia, como uma máscara, ser vestida e cumprir sua função. Em termos poéticos, a vestimenta dos gestos amorosos expostos em todo o seu esplendor.

Meu interesse pela fotografia, que eu cultivava desde criança, só fez aumentar com minha amizade por ela. A partir deste primeiro trabalho, Maureen me convidou para acompanhá-la a um terreiro de Umbanda, onde realizou um trabalho maravilhoso. Eu comecei a fotografar também. Ambas usamos a minha máquina. O fascinante dessa historia é que finalmente, ao serem reveladas as fotos, já não identificávamos a autoria. Então, Maureen me propôs um desafio: que fotografássemos a Conceição, uma bela negra que era sua modelo há tempos. Ela fotografou Conceição com uma lente micro e pegou detalhes do corpo. Acabou por me ensinar uma nova visão do corpo humano. Nós fomos cúmplices e amigas numa linguagem muda. Apenas gravada nas películas e na alma.

Expus as fotos na Cooperativa, ela me fotografou várias vezes por conta da minha beleza e talvez para descobrir nela mesma aquela inocência de quase adolescente que eu tinha. Depois, ela me fotografou como Cleópatra e me introduziu aos mistérios do mundo xamânico. Ela também publicou meus ensaios fotográficos na revista Fotótica, me apresentando. Maureen foi uma grande influência do maravilhoso em minha vida. Passei a cultuar a cultura indígena deste imenso Brasil, a valorizar nossas manifestações populares.

 

FM | Sempre me fascinou uma observação de René Magritte de que podemos tornar a vida superior à forma como ela se nos apresenta, e que uma das maneiras de consegui-lo era alterar a ordem das coisas. O que significa criar para ti?

 

LF | Nos meus trabalhos eu procuro a percepção da reinvenção do próprio ser. O que lhes confere a busca por olhares únicos em focos sintonizados com os meus. Para mim, criar é hierarquizar o caos que antecede uma ordem ou uma desordem. É a percepção de um ato ou momento inicial que faz existir um desejo, uma energia capaz de gerar una cosmogonia de extremo prazer. Tão absoluto é esse momento, que se torna atemporal. É a possibilidade de materializar o invisível, o intocado, aquilo que está por vir e que muitas vezes nem nos damos conta do que será. Considero na criação também o respeito pela ordem ⎼ que pode ou não ser aleatória. E a transcendência do meu eu no objeto criado. A criação é um processo contínuo ⎼ em movimento contínuo ⎼ do criador em sua obra. O símbolo sensorial e material dotado de vida própria a partir de nós mesmos.

 

FM | O que a tua criação atual conserva daquele primeiro momento, incluindo a publicação dos primeiros livros?

 

LF | Eu poderia encher uma página de motivos. Mas devo confessar a importância de uma retomada através de nossas conversas. Meu encontro contigo acentuou um mundo que jamais esteve perdido. Meus poemas sempre buscaram alcançar o maravilhoso. A magia. A transformação pela paixão ostensiva. A evidência da conjunção corpo e alma através do amor sublime ou da dor extremada. O encantamento do mundo e todos os seus símbolos que foram os signos ⎼ a significância do meu caminho poético. Minha vida é impregnada dessa volúpia poética da qual sou acometida. É minha expressão máxima, estética e existencial. Elas se entrelaçam: vida e poesia. Seja esta através da palavra escrita, fotografada, desenhada ou esculpida, e até mesmo pensada. Só o Surrealismo, na magia de sua forma e manifestação, traduz minha expressão essencial perante a vida. Em que outro movimento eu poderia traduzir sonhos em expressões de arte, senão o surrealismo ou o pensamento mágico?

 

FM | Já que tocamos na essência do Surrealismo, Leila, de que modo evocar aqui o ambiente onírico em tua criação?

 

LF | Podemos evocá-lo no início do meu contato com o Surrealismo. Foi nessa época que o onírico tomou proporções existenciais. De certa forma é como se eu psicografasse meus sonhos, trazendo-os à realidade através da poesia ou de desenhos e pinturas.

 

FM | Naturalmente temos aí o que Magritte situava como uma reivindicação do Surrealismo, a de que a vida desperta conquistasse para si mesmo uma liberdade próxima daquela que temos quando sonhamos. Salvador Dalí, por sua vez, defendia que “o êxtase é a consequência culminante dos sonhos, é a consequência e a verificação mortal das imagens de nossa perversão”. Estás de acordo?

 

LF | Exatamente. Exatamente. Poderia assinar embaixo. Mas não fui tão mágica como Magritte. E não tão surpreendente ou reveladora. Talvez o tenha sido na poesia, na maneira como trato as imagens poéticas. E como faço fluírem os símbolos. Eles fluem e fluem carregando em si mesmos todo o conteúdo junguiano ou de rêverie, como diz Gaston Bachelard em La terre et les rêveries de la volonté (1948).

 

FM | Gostaria que me contasses o sonho que tiveste com Breton.

 

LF | Foi quando estávamos a caminho do encontro com o grupo de Paris, e paramos em Roma, nas vésperas de voarmos para Milão. Ali eu adormeci por volta das 15 horas, no Hotel… E sonhei um sonho estranho. De início eu me vi na sala de visitas da casa de meu pai. Lá estavam sentados e conversando, meu pai, André Breton, Benjamin Péret e Victor Hugo. Eu olhei espantada para meu pai e perguntei: O que Victor Hugo faz aqui? Ele, que tinha uma xícara de café na mão, nada disse, porém jogou o café na parede, fazendo um belo desenho. Nisso, Victor Hugo diz: Mas quem escreve com café sou eu. Nesse exato momento sou transportada para outro lugar. Eu estava sozinha, em Paris, ao lado de uma Estação de trem. Olhei ao meu redor e vi uma rua que subia. Todo este cenário era acinzentado. E bem característico de Paris, cidade que só vim a conhecer tempos depois. Resolvi subir por essa rua, de onde passei a olhar por outro ângulo: de cima para baixo. Nesse momento, começa a subir a rua um belo homem em torno dos seus 35 anos. Ele usava um suéter de col roulé. Era André Breton quando jovem. Ele ficou bem de frente para mim e trocamos um longo olhar. Então André virou-se e apontou para o início da rua, perpendicular com a Rua da Estação de Ferro. Voando, subia uma caixa de cor preta com uma cortina vermelha agitada pelo vento frio que fazia. Eu e Breton nos olhamos novamente. Nesse instante a caixa preta flutuava ao alcance de nossas mãos. André delicadamente puxou a cortina vermelha para o lado e então eu pude ver! Havia uma fotografia de um rosto de mulher. Os traços não estavam muito claros, porém seus olhos eram donos de um olhar profundo e distante. Havia uma luva… talvez um espelho. Olhei para o objeto e em seguida para Breton. Não trocamos uma palavra sequer. Só nos olhamos. E eu acordei com o som do telefone do quarto tocando. Sergio Lima atendeu e empalideceu. Estava transtornado. Breton acabara de falecer. Quem deu a notícia foi justamente Arturo Schwartz, de Milão, com quem deveríamos ter uma reunião no dia seguinte, para tratarmos de expor La Boîte en valise de Duchamp em São Paulo, na Mostra Surrealista. Recordo ainda que após Breton e a caixa desaparecerem, eu me vi em um vinhedo. Um lugar belíssimo. O céu era azul frio e claro. Não havia mais a luz solar. O momento era exatamente aquele quando o sol se pôs e resta apenas a claridade. Por uma das alamedas do vinhedo, vi dois homens – já com certa idade – andando juntos e conversando. Eram André Breton e Benjamin Péret.

 

FM | Esquecemos algo?

 

LF | Sou uma protagonista. Só sei falar como tal. Sou um personagem em um cenário fabuloso e apaixonado. Todos os surrealistas foram ou são assim. Assopre-os e veja as chamas de um fogo ardente e vigoroso tomar forma e proporções inimagináveis. Eu vivi isso aqui, nesta pele, neste rosto, neste corpo. Uma força contagiosa que me alimenta até hoje. Como alimentou a todos os surrealistas que existiram antes de mim e que se entregaram a si próprios e aos outros. Banidos, desterrados, amados, idolatrados ou disfarçados. Todos trazemos uma marca indelével do maravilhoso no peito.


NOTA

  1. “O oitavo véu”, escultura em bronze polido, 1949. Na revista não há referência a quem fotografou a obra.

revista triplov . série gótica . outono 2019

parceria tripLOVAGUlha

21 MULHERES SURREALISTAS

EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019

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