Interrogação a Vicente Huidobro
CRIAÇÃO E EXPRESSÃO ESTÉTICA.

OPINIÃO SOBRE A ESCRITURA AUTOMÁTICA

VH | Em todo homem existe o que poderíamos chamar uma necessidade de extraordinário ou de exaltação, existe em estado latente, embora muitos o ignorem. Ao mesmo tempo o que mais interessa ao homem é a compreensão do universo. O homem necessita ver iluminados certos recantos obscuros do mundo externo e de seu mundo interno. O homem se sente rodeado de mistérios, se sente repleto de inquietudes diante do cosmos e se sabe parte dele. Tem instintivamente o sentido da unidade, e adivinha que possuí-lo com conhecimento é o único remédio para suas angústias. Saber o que é, conhecer seu lugar no universo, entrar em contato com esses mistérios ou acreditar que está em contato com eles.

Esta necessidade de exaltação e esta necessidade de compreensão se encontram de imediato em uma mesma aresta, e ali aparece o poeta. O poeta vem para resolver as duas mais fundas necessidades do homem, porque o poeta explica exaltando. Expressa o mundo iluminando-o.

A poesia é um meio de ação indireta para possuir o universo. É um meio de conquista do cosmos, desde o infinitamente grande até o infinitamente pequeno. Possuímos o mundo expressando-o. É assim que o poeta obra sobre o mundo e cumpre o que Marx exigiu do filósofo.

A palavra é a arma por meio da qual o homem conquista o universo. O universo entra na palavra, passa ao homem por meio dela. Torna-se substância de homem, se humaniza, vive em seu peito, encarna-se nele, é sentido e compreendido. Este sentir e compreender é fruto de uma exaltação ou produtor dela. O poeta ao expressá-lo transmite sua exaltação.

Caberia perguntar se esta compreensão do universo é apenas uma ilusão do homem. O homem consegue realmente compreender o mundo ou apenas cria uma falsa visão e se conforma com ela? O homem explica tudo à medida do homem. E se esta medida de homem não corresponde a cada coisa em si, à realidade absoluta, à essência das coisas? É possível, porém isto corresponderia à relação íntima do homem, à nossa única maneira de captá-la, ou seja, reduzindo tudo a valor humano. O que diriam disto em Sírio? O que pensam os habitantes de Marte? O que sentem a este respeito as árvores ou as rãs? Não nos importa. Não estamos em Sírio, não somos marcianos, nem árvore, nem rã. E se nossa expressão é convencional, toda outra tem que sê-lo também, uma vez que não é a nossa. Já não é universal, mas sim também particular.

O poeta é o que faz o inventário vivo da natureza, o poeta nomeia as coisas e seu nomear é fazer viver. As coisas começam a existir. Eu não pretendo que não existissem antes, porém o poeta faz com que existam para o homem, lhes confere esse calor humano que as aproxima de nós, que lhes faz entrar nos corações e as acostuma ao nosso ser e nos acostuma com elas. Essas coisas que antes existiam em condição de inventário morto ou obscuro se convertem em acontecimento espiritual.

Por isto o poeta é aquele que ilumina no duplo sentido de dar luz e dar à luz. Ilumina os sítios opacos, descobre as relações recônditas e então oferece aos homens suas descobertas. É o grande eletrificador do universo.

O poeta tem o corpo aberto de par em par ao mundo, é o ser suscetível a todas as vibrações, o homem fácil à chegada das visões e dos fluidos. Não o homem teimoso que fecha as portas e as janelas de seu espírito.

O poeta desce às profundidades da alma, sobe à superfície e busca o contato cósmico. Eis aí as fontes da criação. Da criação como eu a entendo, como descoberta de correlações ou diferenças e apresentação de um fato novo.

Ao sair do ato essencial, caímos no adorno, na poesia ornamental. Esta era a poesia dominante quando abri os olhos à vida. Havia que estabelecer novamente o ato poético. Daí me nasceu a ideia do criacionismo. Havia que recriar o mundo, novamente o descobrindo. Sempre acreditei que a poesia é ato de transubstanciação. Este ponto que desenvolvi extensamente em uma conferência na Sorbonne e em outra em Berlim há mais de 10 anos, daria para muitas páginas de explicação. Direi somente que na criação e na expressão poética há um ato duplamente taumatúrgico: o de captação da natureza e o que traslada o conhecimento de alma em alma. Ato taumatúrgico, tirando desta palavra seu sentido extra-humano. O poeta não deve imitar a natureza em seus aspectos, mas sim em sua força criativa. Deve fazer com que seu espírito seja como a natureza: fonte de vida. Para o poeta se trata sempre de captar a realidade e de criar uma realidade nova.

A poesia cria com seu material próprio que é a linguagem. Ao poeta lhe estão permitidas todas as aventuras da linguagem, sempre que as justifique. No entanto, muitas vezes sucede que a linguagem se volta contra seu homem e o devora. Isto acontece aos poetas que têm demasiado coração e pouco cérebro.

Também o homem de ciência faz o inventário da natureza, também ele explica e ilumina, também trata de possuir os fenômenos. Faz o inventário do mundo reduzindo-o à relação numérica. À diferença do poeta, na ciência não há atitude dramática ou pelo menos ela não é aparente. No entanto, hoje em dia talvez o melhor da inteligência humana se debate no campo da Física e ali vemos grandes cérebros alcançar zonas poéticas como um Einstein, um Plank, um Broglie, um Bohr e alguns outros cujos estudos nos maravilham e ainda nos surpreendem.

Jamais devemos esquecer que a arte tem um rol compensatório entre os vazios e os desequilíbrios, as mentiras e as verdades, as dores e as alegrias que angustiam o homem.

Quanto ao problema do automatismo, só posso afirmar outra vez o que escrevi em meu livro Manifestes publicado em Paris em 1925. Sei muito bem que então não faltou um medíocre que dissesse que eu atacava o surrealismo porque eu não o havia inventado. Tal afirmação não mereceria sequer uma resposta se não houvesse sido repetida por um autêntico poeta como Péret. Não aceito que me suponham raízes mesquinhas em minhas opiniões e creio que quem as supõem é porque eles mesmos são capazes de obrar assim. Na verdade, em meu livro eu não atacava o surrealismo, mas sim determinados procedimentos proclamados por eles, tais como a escritura automática e as descrições oníricas. O tempo veio me dar razão, posto que os surrealistas, eles mesmos, confessam hoje o fracasso de tais procedimentos. Disse então que não acreditava na escritura automática porque desde o momento em que o poeta pega um lápis e um papel e se senta a escrever há vontade de ação e, portanto, desaparece o automatismo. Se há vontade de escrever, onde está o automatismo? Porém tratemos de supor que se pudesse conseguir um automatismo puro. Isto não seria como entregar a poesia ao acaso? Confesso que não amo este tipo de jogo, ainda que possa ter um valor excitante bem real e também que me tenha exercitado nele algumas vezes. Leiamos os documentos produzidos por este sistema em livros e revistas e veremos que geralmente o automatismo produz apenas divagações terrivelmente vulgares. Além do mais, ele se presta a todo tipo de fraudes. O mesmo se pode dizer das descrições oníricas. O perigo de querer viver nessa zona do sonho consiste em que nos diluímos nela. Os exploradores do inconsciente bem amiúde não passam de uma simples enumeração de gestos furtivos.

Se eu sempre me coloquei em atitude de reserva diante da importância de tais procedimentos, não diante deles mesmos, é porque penso que o poeta deve saber se quer oferecer obras que fundamentem o mundo e a visão do homem ou então oferecer puramente dados patológicos. Entenda-se bem que não ataco o artista que oferece casos patológicos e que se oferece para o estudo do espírito, mas sim que estabeleço a diferença entre os que põem o acento de um modo ou outro e aponto a minha preferência.

Jamais pretendi negar a importância do subconsciente na vida do homem. Creio que ali residem os recursos profundos que movem a alma. O inconsciente é a fonte original mais rica de atos e pensamentos. É no inconsciente onde o homem colhe seu desenvolvimento. Aí se afundam nossas raízes e por sua riqueza cresce a árvore e dá seus frutos. Através do tronco há uma constante subida de elementos obscuros que se tornam luz ao sair ao ar.

Creio no subconsciente, creio nas advertências do subconsciente ante mistérios que ele parece haver atravessado em outros tempos, porém duvido de certos métodos demasiado literários e toscos para despertá-lo como se fosse o caso de fazer cócegas em quem está dormindo para que se levante e chegue a tempo ao trabalho. Me ocorre que todas a incitações artificiais para desenterrar os mistérios do inconsciente não apenas malogram seu objetivo como também produzem um efeito contrário. O subconsciente ao sentir-se provocado se defende, se fecha como certos moluscos quando os tocamos com um pau.

O que sempre ataquei nas escolas literárias é a vontade de mutilação do homem ao marcar demasiado o acento em certas faculdades humanas em detrimento de outras. Se há mais de sete anos venho proclamando o homem total, é precisamente como reação contra o homem mutilado que oferecem as escolas.

Haveria muito a ser discutido sobre estes temas. Vou acrescentar algo que julgo de interesse e que se refere ao sonho, cuja importância como fonte de poesia me parece exagerada, embora eu a reconheça como de evidentes possibilidades. Tendo o homem nascido em meio à natureza, tendo vivido sempre nela por seus antepassados, não poderíamos pensar que os sonhos não apenas podem ser ecos de épocas de ignorância e desconhecimento racional de tudo, como também que são simples plágios disformes da natureza? Não pretendo tirar do sonho seus belos prestígios; o que proponho é apenas esta ideia e a entrego aos psicanalistas porque acaso seria interessante abordá-la e desenvolvê-la.

Assim é que não sou contra o estudo do inconsciente, ou contra métodos sérios que nos ensinaram a utilizá-lo. O que quero dizer é que duvido dos métodos literários proclamados e empregados até agora, duvido quanto ao positivo de seus resultados.

Todos sabem que o homem percebe pelos sentidos: esta percepção vai da natureza ao perceptivo, ou seja, à expressão e dali retorna à natureza. O problema consiste em que esta viagem de ida e volta enriqueça o homem de algo positivo. Pois bem, somos alguns os que acreditamos hoje que nestes casos de certos métodos empregados pelo artista a viagem não tem sido de nenhuma utilidade e o esforço se perde outra vez no seio onde se originou.

No entanto, volto a repetir que reconheço toda a importância que pode ter o subconsciente na criação artística. Reconheço no inconsciente um vasto campo inexplorado e o grande gerador de possibilidades.

Reconheço que a descida às regiões mais tenebrosas do ser, essa descida aos infernos do homem é da mais alta importância para as conquistas da consciência. Por isto ela deve se realizar sem que seja abandonada ao jogo do acaso. Tratam-se das mais sérias conquistas da consciência e não de fáceis escaramuças.

Eu imagino toda a história da humanidade desde seus começos até seu fim como um duelo entre a Consciência e o Inconsciente. Quem vencerá ao final? Estou certo do triunfo da Consciência. Podem haver alternâncias na luta porque é inegável que não é fácil conquistar os territórios do Inconsciente, pois se a Consciência vai se enriquecendo e ganhando terreno ao Inconsciente, este por sua vez também se enriquece através do tempo. Por isto é que há luta e por isto é que a luta é patética.

 

RELAÇÃO DO VERSO E A POESIA

VH | Não é novidade dizer que há poesia sem verso e que há versos sem poesia. Não entendo bem o que me é perguntado. Se é um problema de fundo e forma, de mecanismo de linguagem ou de retórica.

Evidente que há versificadores e que há poetas. Há os que se entregam a um jogo retórico por amor ao jogo e há os que vivem um jogo dramático do homem frente ao mundo, do espírito frente ao obstáculo. Como materialista tenho que ver o princípio inicial na natureza e não no homem. Isto não impede que o patético do poeta consista em que este ser limitado, como todos os seres, trate de expressar o ilimitado. É o drama do finito e do infinito. Precisamente essa tendência ao absoluto, essa aspiração por integrar (sic) o mundo ou por integrar-se nele é característica do poeta, unida ao anseio de perfeição. Este é o verdadeiro poeta, escreva em verso ou em prosa. O versificador ficará sempre em um plano puramente estético. Eu creio que hoje esta categoria tende a desaparecer. É evidente que a poesia rompeu as formas retóricas e as formas clássicas, do que geralmente se entende por clássico ou simples convenções criadas em épocas que não são a nossa. O verso rompeu suas cadeias convencionais, embora se mantenha dentro de outras. Seu jogo é mais amplo, mais livre, obedece a razões de um movimento fisiológico mais autêntico e não a gracejos da orelha.

Penso que o movimento verbal obedece ao movimento orgânico e que o equilíbrio ou desequilíbrio destes dois elementos é o que produz a maior ou menor realização de uma obra.

A linguagem está ligada à expressão e esta à percepção, ao todo em uma engrenagem de rodelas adequadas. Assim é que se forma um circuito dentro do qual brilha o espírito do homem. Às vezes costumam ser produzidos alguns curtos-circuitos. Amiúde com belos resultados; muitas vezes deploráveis. E há poetas que trabalham à custa de curtos-circuitos. O versificador fica à margem de tudo isto e sequer o compreenderia caso lhe fosse explicado.

 

EXISTE CONTRADIÇÃO OU CONCÓRDIA ENTRE O CHAMADO DA POESIA E DA REVOLUÇÃO

VH | O poeta é revolucionário no estado atual da sociedade porque tem que sê-lo. Do contrário seria como lhe pedir que fosse cego e surdo. É próprio do poeta ver e ouvir muito bem.

O poeta, que vive em contato com o universo, tem um forte sentimento de justiça e de ordem. Como homem de consciência coloca-se a si mesmo em seu lugar próprio dentro do mundo. Se este lugar treme em meio de uma sociedade constituída sobre cimentos falsos, ele não pode deixar de senti-lo e seu dever é gritar aos homens, é comunicar seu sentimento, uma vez que ele é homem de comunicação e revelação. Desde o momento em que se descobre a razão da falsidade dos cimentos, ou seja, a razão da desordem, o poeta, como também o homem de ciência, se ergue contra essa sociedade ilógica porque ambos são homens de ordem. Naturalmente aqueles que baseiam seu progresso na desordem gritarão que o intelectual é homem de desordem porque protesta e se revela contra a desarmonia da qual eles se aproveitam. Porém eles sabem muito bem que mentem.

Assim vemos este paradoxo absurdo: o poeta é apresentado como homem de desordem porque protesta contra a desordem, ou seja, é acusado por força de ser homem de ordem. É impossível que aquele que veja e sinta a sociedade em que vivemos não experimente ânsias de modificá-la. Ao poeta, que possui um sentido profundamente humano, deve lhe repugnar o inumano.

A tradicional rebeldia do poeta está plenamente justificada pela evolução social. Como estavam ontem suas fugas, seus refúgios em solidão, sua loucura e seus suicídios. O poeta não podia se sentir cômodo em uma sociedade injusta e quase sem esperança de justiça. Hoje não podemos aceitar esses modos de evasão porque a luta está exposta, graças a um evidente despertar da humanidade, e temos esperanças.

Hoje temos que lutar. O poeta que por suas angústias se refugia na solidão em busca de calma, não apenas é um desertor da causa humana, como, além do mais, é um equivocado. Não alcançará a serenidade. A calma espiritual da sociedade é uma quimera pela simples razão de que a solidão não existe. O solitário vive confrontando-se a si mesmo e então estabelece nele uma dualidade devoradora, pior do qualquer outra confrontação, dualidade entre o eu e o mim. Essa diferença do eu e do mim tão explicitamente explicada na velha metafísica hindu.

Nada justifica hoje a torre de marfim nem tampouco outras evasões. O poeta, o intelectual, já não está sozinho em sua fome de justiça e seus anseios de uma mais perfeita estrutura; acompanham-no milhões e milhões de seres humanos.

 

POESIA ESPANHOLA DE GUERRA. PORVIR DA POESIA ESPANHOLA APÓS O CONFLITO

VH | A guerra da Espanha não produziu ainda seu grande poema, porém seguramente o produzirá. Não é possível que um acontecimento de tal magnitude, que tão fortemente sacudiu as almas, que uma guerra onde a humanidade joga seu destino, não produza um rompimento de peito correspondente e deixe ouvir uma grande voz.

 

O QUE OPINA SOBRE O ELEMENTO ANGELICAL NA POESIA

VH | O tópico do angelical me parece sem maior interesse, como todo tópico particular. Se significasse uma aspiração, uma angústia de universal, se revelasse um desses “momentos cósmicos” dos grandes poetas e de certos grandes místicos, seria outra coisa e mereceria maior atenção. Porém não é o caso, é um simples tópico e não sai dessa categoria.

 

OPINIÃO SOBRE SUA QUALIFICAÇÃO DE CLÁSSICO, FEITA POR LUIS ALBERTO SÁNCHEZ NA HISTÓRIA DA LITERATURA AMERICANA

VH | Ignoro se sou clássico, porém gostaria de sê-lo no sentido que dou a esta palavra. Não sei se o meu sentido coincide com o de Luis Alberto, porém se coincide me faz um elogio muito grande e que só pode ter como origem sua boa amizade. É tão difícil ser clássico, alcançar um grau de modelo, de fonte originária, de terreno abundante de sementes de porvir.

No entanto, será preciso que eu me explique. Se entendemos por clássico o homem que tem o conhecimento do que maneja, que domina seu material e não é dominado por ele, claro está que gostaria de ser clássico ou chegar a sê-lo. Porém, alguém terá sido? Agora, se entendemos por clássico o que se aprende em classe, como graciosamente dizia meu amigo Edgar Varèse, então espero não sê-lo nunca, a menos que os professores mudem até sua última célula ou até que todos os professores sejam como são hoje três ou quatro exceções.

Ser ensinado pelos professores de literatura deve ser agradável para muitos. Para mim, não. A glória fácil sempre me produziu desconfiança. Não posso negar que a minha posição de poeta maldito me dá um profundo prazer. Talvez haja nisto algo de antissocial, mas quem não é algo antissocial, havendo nascido na sociedade em que nascemos e estando obrigado a viver nela, uma vez que ainda persiste e domina?

No fundo de minha alma me deu prazer quando li algumas críticas em que eu era apontado como o verdadeiro poeta maldito de meu tempo. Não porque me veja à altura daqueles para os quais se criou este termo de poètes maudits, esses grandes poetas que foram Rimbaud e Lautréamont, mas sim porque isto me apresenta como mais irredutível. O exigente que exige e não transige. Talvez por isto uma das frases a meu respeito que mais me agrada é uma na qual sou apresentado como o poeta dos poetas e, sobretudo, dos poetas jovens, dos que se abrem à vida com olhos novos e cheios de grandes ânsias. Não desejo agradar a todo mundo. Quero repetir outra frase a meu respeito que vive em meu coração em um lugar predileto: Tens uma faculdade que te faz muito respeitável que é a de inspirar ódio à gente vulgar. Como se sente presenteado meu espírito com estas duas frases que se complementam! Ser odiado pelos vulgares, pelos homens opacos, pelos ardilosos espirituais. Isto sim é angelical, é magnífico. Que o ser vulgar se sinta nosso inimigo pessoal. Nada pode satisfazer-me tanto.

Porém se não desejo agradar a todo paladar, se não quero ser pia para todas as bocas é somente porque as bocas e os paladares ainda não estão educados como desejaríamos. Tenho demasiado firme a ideia da mediocridade das pessoas, este é um fato bem visível, não por culpa sua, claro está, mas sim de uma sociedade incapaz de educar altamente o espírito. Isto não significa que eu proclame a torre de marfim. De forma alguma. É fácil observar que eu não vivo encerrado em nenhuma torre nem ergui muralhas. Eu não me fecho a ninguém, são os outros que o fazem, são os amantes do fácil e do corrente, do agradável, do prato do dia e do molho acomodatício e acomodado a todo paladar, são eles que diante de minha poesia se fecham em suas torres de tijolo. E louvado seja Apolo.

Sempre tivemos categorias e é provável que sempre as teremos, por mais que possam desaparecer as grandes diferenças. Os homens propõem a si mesmos distintos problemas. Para alguns poetas se trata dos lábios corais de uma dama, da tristeza das princesinhas, dos beijos furtivos e dos olhos que matam; para outros se trata de dizer as mesmas vulgaridades e mascará-las, cobrir o todo de neblinas com o dedo, fabricar esse vazio da alma de que tanto se fala, e para outros se trata de viver no meio do mundo, de compreender o mundo, de descer aos abismos do ser, dessa coisa tremenda que é olhar para dentro de si, de enfrentar a própria natureza, sentir sua multiplicidade e a unidade dentro dessa multiplicidade. Trata-se da vida e da morte e o amor como exaltação, exasperação ou desesperação e amálgama de ambas, o amor de essência tão estranha que pode ser vida da morte e morte da vida. Porém aqui eu creio que estamos voltando ao tema do poeta e do versejador.

Qual é o poeta clássico? Em que consiste ser clássico? Poderíamos dizer que é aquele em quem domina a inteligência sobre o coração? Eu creio que o poeta clássico é aquele no qual todas as faculdades estão em uma relação de perfeito equilíbrio.

Se clássico é aquele que na luta entre sensibilidade e inteligência não abdica nunca da inteligência, teríamos então que reconhecer que o clássico é o mais propriamente humano, sendo os não clássicos aqueles que cedem caminho ao animal.

Crer, como creem alguns, que o poeta clássico é aquele no qual predomina o formal ou que é um poeta frio, me parece uma concepção demasiado primária.

Se diante do poeta clássico colocamos o romântico, poderíamos dizer em linhas gerais que confrontamos um cérebro e um coração? Porém um cérebro não tem forçosamente que ser frio nem um coração é por força ardente. Há cérebros de tão alto clima e corações de temperatura de batráquios. Pessoalmente eu vejo como muito mais patético o espetáculo de uma inteligência que sangra que o de um coração sangrando. É mais comovente, mais forte, mais surpreendente e, sem dúvida, muito menos habitual.

A inteligência não é sedentária, é dinâmica, vive do movimento e em movimento. A verdadeira inteligência ama o perigo. É um preconceito muito comum e corrente entre as pessoas e entre os artistas acreditar que a inteligência é algo assim como uma senhora fria, cheia de melindres e reservas.

A verdadeira inteligência é justamente o contrário, é terrivelmente audaz, é aventureira, muito mais do que o coração. O fato de tomar precauções não significa ser menos aventureiro, mas sim melhor aventureiro.

Diríamos então que o grande poeta clássico é uma inteligência que sangra e que o grande poeta romântico é um coração que sangra. O fato de sangrar é necessário a ambos porque não há poeta sem elemento dramático.

Porém ao estabelecer esta diferença entre cérebro e coração criamos um antagonismo que deve desaparecer. É certo que este antagonismo o constatamos em quase todos os poetas, porém não podemos aprová-lo. Por isto falando estritamente acreditamos que seria difícil encontrar um verdadeiro poeta clássico, fruto autêntico do homem total.

É possível dizer que o elemento dramático fortemente sentido desequilibra o homem ou que é produto de um belo desenvolvimento de suas faculdades. E o elemento dramático, repetimos, é imprescindível ao poema.

Apenas contemplar a luta trágica do poeta em sua absorção do mundo não pode ser mais patético, sentir a impotência do homem que busca uma descoberta essencial que seja a chave de tudo, que diga a grande palavra de revelação, que marque a unidade e seu profundo sentido, que seja o sol que deslumbre de repente todos os olhos. Este é o próprio drama.

O verdadeiro poeta trabalha com o essencial, conhece os vestígios de nossos instintos primordiais, o gérmen primitivo do homem e possui o sentimento da harmonia universal porque adivinha as obscuras correspondências, conhece o ponto de união dos contrários, os laços secretos que unem as coisas aparentemente mais distantes. O importante para o poeta é o essencial e não brincar com sombras. A essência da realidade e não suas aparências. É o problema do mundo e sua sombra, da coisa em si e da sombra das coisas. Eu sempre proclamei a poesia que capta mundos e não sombras. O espetáculo do poeta que apenas capta sombras e reflexos é semelhante ao do cão que olha a si mesmo na água e solta a presa que leva em sua boca por aquela que é um reflexo. Produz um riso triste e cria um novo gênero tragicômico ou, melhor, de humor doloroso ao qual Alfred Jarry deve ter dedicado um capítulo em sua Pataphisique.

A poesia é a essência do homem porque é a verdade do universo. A revelação de um mundo que está em nós e que quer estabelecer relações com o mundo externo, controlar sua realidade e suas analogias. A palavra das coisas que querem se manifestar e se fazer ouvir. O universo é uma linguagem que busca um tradutor. Este é o poeta. O poeta coloca a si mesmo em transe de comunicação com o universo e logo do universo com o homem.

No princípio era o verbo… O verbo se converte em mundo e o mundo se converte em verbo. Voltamos ao circuito do qual já havíamos falado.

Através de cada verdadeiro poeta assistimos ao nascimento do mundo. Assim o poeta se faz mais homem do tempo do que do espaço.


O presente texto integra o livro Um globo cheio de viajantes inauditos, de Vicente Huidobro. Organização, estudo introdutório e tradução de Floriano Martins. Disponível em formato eBook através da Amazon: https://www.amazon.com.br/Globo-Viajantes-Inauditos-Cole%C3%A7%C3%A3o-Palavras-ebook/dp/B076Z4F14F/ref=sr_1_19?s=books&ie=UTF8&qid=1509415333&sr=1-19&keywords=vicente+huidobro.

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