Espiritualidade na música gótica

MARIA ESTELA GUEDES


O father tell me are you weeping?
Your face seems wet to touch. O then I’m so sorry father
I never thought I hurt you so much.
Nick Cave, “Weeping song”

Diferentemente do fado ou do rap, a musica gótica não é um género, sim uma cultura dentro da cultura popular urbana. O gothic rock não conhece fronteiras musicais, geográficas nem linguísticas. Parte dele é assimilado ao heavy metal, mas já Nick Cave, considerado um ícone do gótico, se situa no pólo oposto com as suas canções de extrema sensibilidade. “The weeping song”, de Nick Cave & The Bad Seeds, é um mar de lágrimas em que todos choram, incluído o Pai, a quem o sujeito lírico confessa não saber que O faz sofrer tanto. Porque todos e todas choram, incluídos seres inanimados, maiusculei a plavra “Pai”, que assim fica inserida numa interpretação teológica.

Ao contrário de outras formas de arte, mesmo musicais, o rock gótico é uma cultura culta, e não existe aqui pleonasmo – basta compará-lo com o rap para se tornarem óbvias as diferenças, logo à partida no nível de competência linguística dos textos. Piruka, um dos mais fascinantes rappers portugueses, para as minhas expectativas, declara, em “Se eu não acordar amanhã”, que era tão grande a sua despreparação para a vida, que nem sabia que a dúzia era doze.

O rap nasce na rua, tem o discurso dos rapazes de gang, violentos e malcriados, sem abrigo, de instrução insuficiente. Situamo-nos, com ele, no plano da escolaridade obrigatória, o que move a dizer que o Piruka se destaca entre os milhões de rappers porque a sua inocência e o seu talento são tão grandes que lhe sustentam uma estrela sem assento. As suas letras, tocantes por ele cantar o que vive e não o que inventa, segundo as suas próprias palavras, são um desastre linguístico e de teoria da arte, mas um milagre de espontaneísmo poético. O Piruka faz-se amar, num plano muito direto de ouvinte para cantor, o que é excecional, sobretudo se atendermos a que o rap é fácil: de acordo com as lições de jovens no YouTube, basta ir buscar uma batida (algures, a qualquer site da Internet, presumo) e depois dizer qualquer coisa sobre isso, de preferência começada por Yeah!, repetir o Yeah, meu!, e temos pronta uma canção igual a milhares desfrutáveis, ou indesfrutáveis, numa comunidade de músicos e aspirantes a isso como o website SoundCloud.

O gótico, não. O gótico é teatral, dotado até de cenário musical, com os dobres de sinos de igreja, o rangimento de pesadas portas, os gritos de pavor e as vozes distorcidas, rascantes como a do português Fernando Ribeiro, integradas no coro de todos os instrumentos, sem se destacarem em solo. Tudo aquilo que, nos comentários aos vídeos, no YouTube, leva os ouvintes a ironizar: “Ai que medo!…” Medo que participa da liturgia, pois é de terror sagrado que se trata, com a sua aspiração ao sobrenatural.

Esses elementos aparecem no filme recente Bram Stocker’s Dracula. Na canção interpretada por Annie Lennox, Love song for a vampire, ouvimos portas a bater parecendo o coração que sangra de amor pelo vampiro. E aqui apresento o fundamental da estética gótica, o amor, amor para além da morte, porque são vampiros os enamorados. Da banda Type O Negative temos a canção Love you to death, declaração de amor até à morte, e uma das canções mais conhecidas de Fernando Ribeiro, na banda Moonspell, é “Vampiria”, declaração de amor à vampira.

O ultra-romantismo do rock gótico é tão evidente que a culta banda La Chanson Noire apresenta como antepassada a edição de uma cassette intitulada “Canções de faca e alguidar”, com tiragem de 50 exemplares, numerados a sangue pelo autor, Carlos Monteiro, ou Charles Sangnoir, em assinatura artística.

O gótico sabe que a sua origem é catedralícia, por isso é tão culto que até usa o Latim. A sua cultura, para a associar à catedral, é catedrática.  Cita as “Fleurs du Mal”, de Baudelaire, não leu só o Dracula de Bram Stocker, leu os livros sagrados e demonológicos. Sabe que o Diabo apela para a satisfação dos desejos do corpo. Por isso, La Chanson Noire canta, em “O bordel de Lucifer”, tudo aquilo que o catolicismo opõe ao espírito. Porém, como se mantém, com o Demónio, no recinto da catedral, não podemos dizer que seja material nem materialista; todo o gótico, de resto, ressuma espiritualidade, mas aquela espiritualidade que os inquisidores castigariam com a fogueira. A sua grande abertura é passível de exclusão social, a sua forte crítica social já foi vítima de atos terroristas (Paris, Bataclan, 2015). O gótico gira à roda do Demónio, do monstro, do sangue, dos vampiros, dos fantasmas, dos lobisomens, veste-se de negro da cabeça aos pés e desde a camisa às cuecas, não distingue géneros nem transgéneros, usa maquilhagem carregada, máscaras, caveiras, círios, passeia de noite por criptas e cemitérios, inspira-se, como a portuguesa banda Moonspell, no que é sinistro, como guerras e catástrofes. Até a editora, Napalm Records, regista o potencial terror que enche o álbum “Todos os Santos”, inspirado pelo terramoto de 1755. Como se sabe, o terramoto ocorreu no dia de Todos os Santos, quando grande parte da população assistia à missa nas igrejas lisboetas. Nem todos os santos juntos foram capazes de defender Lisboa do Mal. E não é só o Mal das Flores baudelairianas e de Lúcifer o que se canta. Lembremos Amy Winehouse, com a canção “You know I’m no good”, e Michael Jackson, vestido de negro, os olhos maquilhados de negro, a declarar, em “Bad”: “I’m bad”. O gótico é negro, macabro, demoníaco, porém, ao contrário de Piruka, o rapaz que canta o que vive, o gótico não canta o que vive, sim o que viu e leu, na literatura de terror e na cinematografia. Um dos mais importantes modelos é Nosferatu, o Vampiro, de Friedrick Murnau, com a sua carga de expressionismo alemão.

Máscaras, maquilhagem, indumentária, cenografia dos vídeos, tudo gira em torno desse herói da gothic novel, Drácula.  Algumas canções mais emblemáticas do gótico foram escritas por ocasião da morte de Bela Lugosi,  caso de “Bela Lugosi’s dead”, da banda Bauhaus.

Não imaginemos que o gótico é apenas decadentismo e próprio dos mais jovens: num dos seus últimos livros, Herberto Helder estava seduzido pelo que designa por “Demonia” (quem sabe se foi a palavra “Demónia” que perdeu o acento?). O seu discurso metaforizante rodou da beleza celestial para a rudeza minimalista do Diabo, ao longo da obra, e eu mesma, não o posso ocultar de ninguém, também alguma relação estabeleci com o gótico, patente no meu último livro, Dracula draco.


Participação no 4º Encontro Triplov na Quinta do Frade. Mosteiro de Santa Maria, Lisboa, 4 de novembro de 2017


© Revista Triplov  .  Série Gótica .  Inverno 2017