De um encontro imenso

MÁRCIA FUSARO


Muera mi lira infausta en que influiste
ecos, que lamentables te vocean,
y hasta estos rasgos mal formados sean
lágrimas negras de mi pluma triste.
(…)
Claro honor de las mujeres
Y del hombre docto ultraje,
vos probáis que no es el sexo
de la inteligência parte.
Sor Juana Inés de la Cruz
 
El libro
el vaso
el verde obscuramente tallo
el disco
lecho de la bela durmiente la música
las cosas anegadas en sus nombres
decirlas con los ojos en un allá de sé donde
clavarlas
lámpara lápis retrato
esto que veo
clavarlo
como un templo vivo
plantarlo
como um árbol
um dios
coronarlo
con un nombre
inmortal
irrisória corona de espinhas
¡Lenguaje!
Octavio Paz

Quando dois poetas imensos se encontram em algum momento do tempo, qualquer que seja ele, a humanidade se vê afortunada. Fadada à epifania. Em tempos temerários, como estes vividos na contemporaneidade, onde o sombrio dos conflitos humanos originados de nossas incompletudes de corpo-alma se manifestam por meio de incompreensões de toda sorte, potencializadas por catastrofismos midiáticos, recuperar a sublime memória poética de Octavio Paz e de Sor Juana Inés de la Cruz, sem dúvida, traz mais luz ao mundo. Reacende chama de leveza no peso de existir.

Em separado, a escrita de cada um deles já é, em si mesma, arrebatadora. Poesia de alma-corpo. Escrita insubmissa. Singular. Unidos em um único volume, por meio do registro memorial poético, tornam-se inesquecíveis. Memória revivida por tessitura de infinitos fios onde o real e o ficcional se confundem. Poetizam-se. Munindo-se de uma tal lucidez é que se aconselha o leitor a adentrar as seiscentas e tantas páginas da biografia de Sor Juana Inés de la Cruz. Obra-prima escrita pelo mestre Octavio Paz, Nobel de Literatura de 1990, ao longo de mais de trinta anos de idas e vindas intermitentes de pesquisa.

A tradução de Wladir Dupont, recém-lançada para a língua portuguesa pela editora Ubu, traz edição bem cuidada, com bela ilustração de capa de Alejandro Magallanes, apoio do Fondo de Cultura Economica e da Embaixada do México no Brasil. O lançamento se dá em momento mais que oportuno. Octavio Paz merece sempre ser (re)lido, (re)visitado em sua grandeza literária. Signos em rotação de convergências. Conjunções e disjunções. Duplas chamas. Arcos e liras. Labirintos de solidão.

Com a biografia de Sor Juana Inés de la Cruz, dá-se também oportunidade de acesso inteligente, poético, a temas muito em voga na atualidade, como questões de gênero, moralismo e censura, entre outros. Juana Inés, em pleno século XVII, é coragem intelectual travestida em hábito de freira. À sua maneira, dentro de suas possibilidades, insubordina-se perante os ditames morais e intelectuais da Nova Espanha, como era denominado o México colonizado do período. Sor Juana enfrenta o clero, a nobreza e a sociedade de sua época, munida da mais potente arma que sabia manejar: a poesia.

Ninguém melhor para narrar essa história fascinante do que Octavio Paz. Para além do mero enfoque de questões polêmicas, como a de uma possível homossexualidade de Sor Juana, sugerida nas cartas trocadas com suas vice-rainhas, Octavio Paz nos conduz por veredas mais profundas e universalizantes de análise, como pede a grandiosa literatura que ele tanto soube honrar. Em perspectiva primordialmente sincrônica, contextualiza atitudes e linguagens pertinentes à Nova Espanha do século XVII. Sábio, não emite opiniões definitivas. À exceção de poemas e cartas, a escassez de documentação sobre a freira pertencente à Ordem das Jerônimas favorece a possibilidade de equívocos e injustiças biográficos, nos quais fica evidente que a erudição de Paz não lhe permite resvalar.

O que permanece, contudo, é a certeza de um encontro poético imenso. Ares universais de um amor primordial pela leitura unindo uma poeta do século XVII e um poeta do XX. Amor evidenciado não somente pelo objeto livro, mas por tudo que, abrigando-se na imagem borgiana da biblioteca infinita, a leitura e a escrita são capazes de proporcionar a um ser solitário, sobretudo solitário, em busca de conhecimento. Sobre outrem. Sobre si mesmo.

Ler e escrever é conversar com os outros e com nós mesmos. Nos dois casos nosso interlocutor é um ausente-presente que nos fala sem língua e nos ouve sem orelhas. Sor Juana diz isso com um desses tropos violentamente retorcidos que sua época amava: “Ouve-me com os olhos […] ouve-me surdo, pois eu me queixo muda” (PAZ, 2017a, p. 160).

No entanto, não parece ser somente a busca de conhecimento, mas de respeito à sua condição de erudita, postura que a acompanharia por toda a vida, que leva inicialmente a então Juana Asbaje (futura Sor Juana Inés de la Cruz) a ter a coragem de enfrentar, aos dezenove anos de idade, uma sabatina com aproximadamente quarenta homens das mais variadas áreas do conhecimento: teólogos, escrivães, filósofos, matemáticos, historiadores, poetas, humanistas, entre outros.

Por volta de 1700, cinco anos após a morte da freira, conforme o marquês de Mancera, testemunha do evento, relatou por duas vezes a Diego Calleja, além da própria Sor Juana, em carta enviada a este último, contou Mancera que “não cabe em juízo humano acreditar no que viu, pois diz que à maneira de um galeão real (…) se defenderia de alguns barquinhos que sobre ela investiram, assim se desembaraçava Juana Inés das perguntas, argumentos e réplicas que tantos, cada um em sua classe, lhe propuseram” (PAZ, 2017a, p. 125).

Coragem e erudição advindas de uma mulher bonita, sensível, era demais para a Nova Espanha do século XVII. Como, de resto, para grande parte da história humana registrada. Em busca de isolamento, para se dedicar somente à plena paixão pela leitura e escrita, já que casamento não lhe interessava, Sor Juana decide entrar para um convento. Freira de marcante beleza, narrada por alguns dos que com ela conviveram,  muito provavelmente antes cobiçada por pretendentes frequentadores da corte da Nova Espanha, onde atuara como dama de companhia de duas vice-rainhas, suas eternas protetoras e apaixonadas (em muitos, polêmicos, sentidos passíveis de interpretação).

O ambiente familiar, acompanhado pelo da corte e do clero, em suas constantes disputas de poder, compõem o filigrânico cenário biográfico traçado por Paz, perpassado pelas diversas perseguições que Sor Juana sofreu ao longo da vida. Longe de se mostrar biógrafo passivo, mero narrador de fatos e memórias de outrem, o poeta nos brinda, como não poderia deixar de ser, vindo de Paz, com elegante tessitura de uma vida singular.

Na figura da bela freira solitária se manifesta todo um erotismo direcionado ao amor pelos livros e pelo conhecimento por eles proporcionado. Uma imagem assim constituída se mostra perigosa, tentadora, em face do moralismo dogmático presente no ambiente onde ela vivia. Por certo também despertava invejas de todo tipo, em homens e mulheres, desejosos de sua beleza e erudição. Oportuniza-se, assim, o vingativo ambiente da censura que ela acaba sofrendo. Afinal, como ousa essa mulher, além de bela, perigosamente sedutora, ainda cometer as injúrias de se mostrar inteligente, sensível, talentosa poeta?

Embora apaixonado por sua personagem, armadilha à qual se vê submetido todo biógrafo, Octavio Paz consegue manter, em medida lúcida e segura, o tom analítico necessário a tal enfrentamento de abordagem. Vê-se isso, quando, por exemplo, menciona a postura muitas vezes vaidosa e narcísica de Sor Juana, que a levava não somente a ceder, mas também executar, bajulações no ambiente da corte.

A angústia de Sor Juana advém, em ampla medida, da constante busca de comunhão entre posturas antagônicas exigidas pela dedicação à poesia e à religião. No ensaio “Poesia de solidão e poesia de comunhão”, que compõe o volume A Busca do Presente e outros ensaios, também recentemente lançado em língua portuguesa, no Brasil, Paz nos esclarece melhor a esse respeito, em outro de seus momentos de escrita sublime:

Diferentemente da religião entranhada socialmente, que só existe ao se socializar em uma igreja, em uma comunidade de fiéis, a poesia se apresenta como uma atividade subversiva e dissolvente: só existe ao se individualizar, ao se encarnar em um poeta. Sua relação com o absoluto é privada e pessoal. Religião e poesia tendem à comunhão; as duas partem da solidão e buscam, por meio do alimento sagrado, romper a solidão e devolver ao homem sua inocência. Mas, enquanto a religião é profundamente conservadora, pois torna sagrado o laço social (econômico ou político), ao converter a sociedade em igreja, a poesia, ao contrário, rompe esse laço sacramentando uma relação individual, à margem, ou mesmo contra a sociedade. A poesia não é ortodoxa; é sempre dissidente. Não necessita de teologia, nem do clero, pois não tem missão nem apostolado. Não quer salvar o homem nem construir a cidade de Deus. É uma conduta pessoal e irregular que não pretende nada mais do que dar-nos o testemunho terreno de uma experiência. Nascida do mesmo instinto que a religião, aparece-nos como uma forma clandestina, ilegal, irregular, da religião: como uma heterodoxia, não porque não admite os dogmas, mas porque se manifesta de forma privada e muitas vezes anárquica. Em outras palavras: a religião é uma forma social; a poesia, um impulso individual (PAZ, 2017b, p. 20).

Este fragmento como que resume o martírio vivido por Sor Juana ao longo de praticamente toda a vida: a inconcebível servidão simultânea à religião e à poesia. Para além de um retrato histórico mexicano, localizado no século XVII, Octavio Paz atualiza a figura de Sor Juana em uma sensível homenagem universalizante à imagem feminina.

Literatura grandiosa, como não poderia deixar de ser sob a pena de Octavio Paz, a biografia de Sor Juana Inés de la Cruz, misto de ensaio e registro histórico, promove belas reflexões sobre a insubmissão proporcionada pelo amor ao conhecimento como forma de libertação e pela poesia como a mais sublime das armas de enfrentamento.


Referências
PAZ, Octavio. Sor Juana Inés de la Cruz ou As armadilhas da fé. São Paulo: Ubu, 2017a.
_____. A Busca do Presente: e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2017b.
_____. Ladera este. Barcelona: Galaxia Gutenberg, 1998.

Márcia Fusaro . Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP); Mestra em História da Ciência (PUC-SP); Especialista em Língua, Literatura e Semiótica (USJT). Professora e pesquisadora do Programa Stricto Sensu em Gestão e Práticas Educacionais (PROGEPE) e da licenciatura em Letras da Universidade Nove de Julho. Líder e membro de grupos de pesquisa chancelados pelo CNPq. É pesquisadora das interfaces epistemológicas entre educação, arte, comunicação e ciência.


© Revista Triplov  .  Série Gótica .  Inverno 2017