Comunicação de Mário Cesariny
Mário Cesariny

É ASSIM QUE SE FAZ A ESTÓRIA
COMUNICAÇÃO DE MÁRIO CESARINY
NA CONFERÊNCIA INTERNACIONAL
“Pelos Direitos Humanos contra os julgamentos de Moscovo”, 1978


Revista Triplov  .  Série Gótica .  Outono 2017


(Palavras prévias de Nicolau Saião: Este texto de MC, cuja cópia me foi oferecida por ele em Setembro de 78, para além da sua importância como documento revelador duma consciência livre, activa e ética, dá-nos pistas de relevo para entender na sua verdadeira dimensão os ataques que o seu autor sofreu, a partir de determinada altura, por parte de antigos companheiros de rota, nomeadamente Luiz Pacheco, Vergílio Martinho e alguns outros membros colaços inscritos no Partido Comunista luso.

Para além, é claro, do que os poderia separar ao conceberem e praticarem da maneira própria de cada um a vivência quotidiana na efectivação do surrealismo e/ou abjeccionismo e das suas proximidades durante a época salazarista e da que imediatamente lhe sucedeu, o chamado PREC, eivado de contradições e movimentações as mais estranhas e afastadas de uma liberdade autentica que o golpe do 25 de Abril se propusera levar a efeito, incrementar e permitir consolidar.

Sei, porque eu estava lá e o ouvi por diversas vezes – na “tertúlia” do Café Monte Carlo principalmente, onde passei a estacionar durante razoável período de tempo após a minha ida, com Carlos Martins, ao contacto com os surreal-abjecionistas do chamado “Grupo do Grifo” – que as críticas, por vezes muito acerbas, que lhe eram dirigidas assentavam principalmente em duas características do nobre autor de “Pena Capital”: ter feito nome na pintura, o que lhe granjeava proventos consideráveis e legítimos e, adicionalmente, estar contra as posições afixadas por aquela formação política que jamais esteve liberta do autoritarismo estalinista ou do cunho dependente das directrizes que a URSS estabelecia para a desejada sovietização a seu modo das chamadas democracias ocidentais ou ocidentalizadas. Martinho, pessoa aliás cordata no seu cômputo pessoal de relacionamento, era um ferrenho adepto do cunhalismo, tendo-me uma vez afirmado que considerava Álvaro Cunhal o maior político da Europa.

Quanto a Pacheco, para entendermos o seu ímpeto verrinoso em relação a Cesariny basta conhecermos as peripécias, pouco abonatórias, da sua adesão “militante” e conceptual (aquando da sua inscrição no PC) já no que sucedeu – e insistira expressamente para que sucedesse – na sequência do seu falecimento (caixão coberto pela bandeira deste partido e discurso fúnebre proferido por um importante quadro comunista, a exemplo do que fôra feito na cerimónia de Ary dos Santos). O qual objectivou, sem razão para dúvidas, a rendição absoluta do falecido às posturas que eram o corpus concreto e a feição mais estreme da acção cunhalista na sua caminhada totalitária em Portugal e no mundo.

Cesariny, libertário e surrealista, espírito livre e voz alta e clara, não podia claramente compaginar-se com os vezos de antigos companheiros que nunca tiveram uma frase de crítica para verberar ou infirmar o totalitarismo em que se mergulhavam os próceres comunistas nacionais e internacionais e enlevavam os fautores dos acintes, dos ataques maiores ou menores que lhe eram dirigidos nos “anos da brasa” lusitanos – conforme ao que lá fora, na Europa ou noutro continente, acontecera e acontecia (e ainda acontece) aos surrealistas ou a qualquer um dos que não se curvavam nem curvam ante o “esquerdismo totalitário” a que a vulgata marxista, hoje jungida ao “politicamente correcto”, dá o mote, o tom e a estrutura na figura de espantalhos letrados.

Cremos pois que este texto ilumina de igual modo o porquê de em certos círculos (que se têm caracterizado por epigrafarem e festejarem o denominado “surrealismo de escola” e, de forma algo precipitada e controversa, cozinharem de maneira peculiar o chamado “abjeccionismo luso”) se buscar envolver numa típica legenda o perfil solenizante de Luiz Pacheco – liofilizado et pour cause e seguidamente colocado num certo Olimpo – que a realidade da História feita com pundonor e verdade objectiva reconduz sem partis pris à sua real dimensão).


Nasceu este ano na URSS um ciclo de heróis
Leio, do escritor Máximo Gorky, estas breves linhas extraídas de um artigo de jornal publicado em Moscovo em Novembro de 1917. Repito: em Novembro de 1917: 

“Lénin, Trotsky e os que os seguem já estão contaminados pela embriaguez do Poder e é um exemplo disso a sua escandalosa atitude em relação à liberdade de palavra, às liberdades individuais e a tudo aquilo por que a democracia se bateu. Fanáticos delirantes e aventureiros sem escrúpulos lançam-se de olhos cegos numa pseudo “revolução-social” que mais não será do que a estrada da anarquia, da ruína do proletariado e da ruina da revolução.

Empenhados nesta via, Lénin e os seus companheiros de luta permitem-se todos os crimes: uma carnificina nos arredores de Petersburgo, a destruição de Moscovo, a supressão da liberdade de palavra, prisões insensatas, enfim, todos os horrores perpetrados por Plehve e Stolypine. Mas Plehve e Stolypine agiam contra a democracia, empenhados na destruição de tudo o que de honesto e vivo existia na Rússia, enquanto Lénin, pelo menos até agora, é seguido por uma considerável fracção de trabalhadores. Estou, no entanto, em crer que o bom senso da classe trabalhadora, a consciência que ela possui do seu papel histórico, depressa abrirão os olhos do proletariado para o aspecto totalmente quimérico das promessas de Lénin e para a extensão funesta da sua loucura.(…) A classe operária deve saber que não há milagres e que o que a espera é a fome, a indústria totalmente desorganizada, a ruína dos meios de transporte e um longo e sangrento período de anarquia seguido de um sombrio período de reacção não menos sanguinolenta”.

Estas palavras de Gorky, que ele sublinhava com o título “À atenção da Democracia”, num jornal que em breve seria proibido de aparecer, em vão as procuraremos nas centenas de edições, mais tarde feitas pelo Estado soviético, das Obras Completas do escritor. Foram expurgadas, como todos os títulos que fez surgir durante um ano nesse jornal. Quanto aos redactores e colaboradores dele, informa-nos Boris Souvarine que, à excepção de Gorky, pereceram todos nos subterrâneos da GPU. Entre eles Lozovski, primeiro organizador dos sindicatos soviéticos e depois ministro-adjunto dos Negócios Estrangeiros, torturado na cadeia até à morte, e Vassily Bazarov, tradutor russo do “Capital” de Marx.

Vê-se, pois, que o “sombrio período de reacção” que Gorky previa não tardou em afirmar-se. Vemos mais, infelizmente: que nunca mais desarmou, de 1917 até hoje. E tal como Gorky acentua, com lucidez que pode parecer-nos comum mas não o era de facto, tratar-se-ia de um reacionarismo conduzido em nome dos trabalhadores, em nome da revolução.

Porque ponho entre nós estas palavras de Gorky, gentil humanista e deficiente escritor que acabou por não resistir ao canto da sereia stalinista, que lhe pagou com as honras de envenenamento pela GPU de Yagoda a ambiguidade da sua adesão? (1)

Pois porque, em meu fraco entendimento, ouvir-se-á sem dúvida, aqui e lá fora, a sinceridade do nosso protesto pelos julgamentos e encarceramentos fascistas de Yuri Orlov, Anatol Sharansky, Alexandre Ginsburg, Victor Pyatkus, Vladimiro Slepak e José Begun mas de nada ou de pouco nos servirá se a todos nos situarmos no quadro de uma Convenção ou Acordo assinado em Helsínquia sobre Direitos Humanos. Que esse acordo que já se previa desacordado seja uma etapa da maior importância na luta política entre sistemas sociais diversos, estamos aqui para confirmá-lo. Mas aos jogos, às conquistas e às cedências da raposice política havemos de acrescentar uma outra dimensão para que estamos: a observação e denúncia da inflação pavorosa do linguajar que nos enche o ouvido. Que as piores injustiças, os actos mais selvagens, os maiores crimes podem chegar à rua em ondas de consagração, se não de santidade, quando lhes alçam pela carapuça o termo “revolução”, é fenómeno consagrado pelo uso, que já nem vale a pena discutir. Atentemos apenas neste quadro: Revolução nacional, do dr. Salazar. Revolução mundial, do dr. Trotsky. Revolução social nacional, do dr. Stalin. Revolução nacional social, do dr. Hitler. Revolução pronunciamento militar, do general Franco. É óbvio que em todas estas etiquetas de desespero o que há de menos é a Revolução. E ousemos agora e sempre muito alegrar por este final de século não ter sido brindado, como parecia, por mais um nacional-socialismo, encabeçado pelo luso dr. A. Cunhal.(2)

Este “charivari” de ideias decepadas pelo uso pirata da sua necessidade, estes discursos que mostram o anverso para expelir o reverso e que já só funcionam como metáforas, trazem quiçá consigo a boa nova: a de que nesta época do primado da ideia as ideias estão todas pela hora da morte, elas todas, as óptimas, as boas as péssimas e as talvez. Já não conseguem falar. O que, em certo sentido, é um inestimável bem: talvez depois de meio século e mais de regimes ditatoriais e de Estados totalitários possa começar a descobrir-se, a evidenciar-se, que as ideias só são aquilo que são, parte do homem – como as partes sexuais – não o seu todo; e, em consequência, evidenciar-se que sendo as ideias coisa séria, como as ditas partes, a tentação de pô-las a servir o que não é serviço delas leva à blenorragia intelectual que estamos apontando.

Julgo que é chegado o tempo de uma nova enciclopédia, de poucas mas claras páginas politicas. Há uns três anos, em pleno consulado de Costa Gomes,(3) ouvia-se no Rossio de Lisboa um espontâneo que, vestido à civil, enfileirava no entanto ostensivamente entre militares munidos de G-3 em posição de disparo, e gritava estentórico: “Abaixo a social-democracia!”. Cheguei-me a ele e disse-lhe: “Abaixo a ditadura!”. Pareceu surpreender-se com aquela minha audácia e olhou por cima dos ombros, à direita e à esquerda, como a assegurar-se do apoio dos soldados entre os quais se postara. Para meu eterno descanso, os soldados nem buliram. Apercebendo-se disso, o homem encarou-me e gritou: “Viva a ditadura da maioria!”. Retorqui-lhe: “Não sei o que é!”. O homem não mo explicou.

Ora tem dois géneros, dois pelo menos e ambos tenebrosos, esta “ditadura da maioria”: um deles, velho da idade do Mundo, será pressão exercida, qualquer tipo de pressão em qualquer tipo de sociedade civil, por uma maioria distraída sobre uma minoria atenta – e, neste aspecto, tanto podemos recordar Rimbaud quando assevera que a poesia não ritma a acção, vai à frente dela, como podemos referir-nos ao martírio milenário das comunidades judaicas e à destruição física, ainda nos nossos dias, de expressões e civilizações importantes, e até talvez mais importantes, como a dos índios norte e centro-americanos. Mas não era decerto nesta desgraça que pensava o espontâneo do Rossio de Costa Gomes. Era numa desgraça ainda maior, mais sofisticada, codificada, filosofada, desvirtuada e propagandeada pela actual retoiça materialista histórica e dialéctica do Estado totalitário, também de vários nomes antitéticos: democracia popular, ditadura do proletariado, etc. E dizer-se ou ouvir-se dizer que Karl Marx não é o marxismo, que Descartes não é o cartesianismo, ou que Cristo não é cristão já cai na pilhéria aquela da “normalidade na anormalidade”, quando fugiram os presos.(4) Ou, um pouco mais grave, no projecto de lei fascista contra o fascismo. É a aplicação universalmente descontracta do binómio de Newton: fomos perseguidos por minorias infames e exploradoras? Passemos a perseguidores implacáveis, delegados que somos de maiorias sublimes. Porém, estes delegados do maior não conseguem mais do que aumentar desmesuradamente o número de cárceres. E, no melhor dos casos, numa União das Repúblicas Socialistas Soviéticas onde não há socialismo nem sovietes, um almoço sem carne e raramente com peixe substitui o vinho antigo, que cintilava nas imagens de liberdade.

Vi há pouco um filme de péssima extracção estética e casuística, “As sandálias do Pescador”(5) em que o dissidente soviético Anthony Quinn, presuto, perseguido e arrecadado bispo de Kirov, é libertado de um Gulag e exilado na Cidade do Vaticano. Esta fita USA tem um final a arrebentar de feliz: Quinn vira Papa e, na cerimónia da coroação, Rei dos Reis, anuncia que venderá ao desbarato todos os bens materiais da Igreja, terras, mosteiros, pedrarias, tapetes, os frescos de Miguel Ângelo, os óleos, os anéis, o ouro dos altares e o de trazer por casa, as acções da Companhia de Jesus, etc, etc, etc, para que enfim se acabe a fome no Mundo. Não vi o nome do realizador mas se acaso é um tonto é um tonto que se excede, porque te põe em frente do nariz a última tentação do marxismo antes de definitivamente desaparecer: a nostalgia de uma Igreja, a necessidade de um sagrado para que nunca apelou porque não lhe achou nome.(6) A catacumba itifálica marxista obrigatoriamente dispensa a respiração indivíduo finito/ universo infinito, para se ater aos Estados-Deus dos romanos. À quantidade imensurável de mártires produzidos não correspondeu uma gesta específica de heróis, porque o herói pertence ao mundo da esperança, alheio à vocação de quantos infelizes continuam a tender, na modernidade, para a emulação dos cristãos pelo toiro, pelo fogo e pelo leão.

Mas a estes Cristos Ateus, paródia nova, e creio eu que última, da catacumba marxista, falta-lhes a imolação pela pomba, segredo que a Católica, ela também em convulsão intestina, não pode vender a ninguém.

Não quero terminar sem dizer-vos que a única coisa realmente importante que vejo nestas minhas palavras é o acto de as estar pronunciando aqui, entre vós.
Quero ainda chamar a vossa atenção para o importantíssimo conteúdo das palavras pronunciadas por Anatol Sharanski ao despedir-se dos seus depois de condenado. Ele não invocou a Jerusalém celeste nem atirou para a consumação dos séculos o velho sentido hebraico da redenção. Ele disse algo que é transformação formidável, é transformação qualitativa na luta do povo russo pela obtenção dos direitos humanos. Disse: “Até para o ano, em Jerusalém!”.

Estas palavras significam que nasceu este ano, na União Soviética, um ciclo de heróis.
Mário Cesariny
(30-7-78)


NOTAS
(1) Conforme se veio a saber depois da queda do Muro da Vergonha e concomitante abertura de arquivos secretos da URSS, Máximo Gorky morreu após envenenamento perpetrado por agentes da polícia política. Coisa que se suspeitava mas se tinha medo de conferir, embora circulasse à boca pequena nos “mentideros” do regime. Com a sua típica e hábil velhacaria e magnífico cinismo, Stalin mandou no entanto fazer-lhe funerais de Estado.
(2) Político luso, inteiramente devotado ao comunismo russo, viveu vários anos na URSS e noutros países de Leste, frequentemente sob incógnita para usufruir de maior desenvoltura militante. Autor de várias publicações teóricas tornou proverbial a expressão “amplas liberdades”, que a seu ver caracterizaria a doação ao povo quando o PC chegasse ao Poder. Curiosamente lançou-a em público no período em que o seu partido mais tentava cercear a liberdade possibilitada pelos militares revoltosos…
(3) Francisco da Costa Gomes, general depois elevado ao marechalato pelo Governo no fim da sua vida. Crismado com o anexim de “Chico Rolha”, devido à sua capacidade de sobreviver flutuando mediante um oportunismo habilíssimo, foi um aliado forte e objectivo da URSS, nomeadamente como figura cimeira das consabidas associações para a paz, entidades de que este país se servia profundamente ao recheá-las de “idiotas úteis”.
(4) MC alude a um caso que se tornou célebre durante o PREC (Processo Revolucionário em Curso): a fuga, que teve contornos enigmáticos e ridículos, em vista do que a rodeou, de 89 (!) agentes da PIDE, todos no mesmo dia e à mesma hora, das cadeias em que a cena abrilina os encafuara. A frase que ele cita foi proferida por um prócere governamental…visando justificar o tragicómico sucesso.
(5) Filme do realizador britânico Michael Anderson, baseado na obra homónima de Morris West, escritor católico especializado em romances girando no universo fideísta. Anderson, que se notabilizara através de bons filmes como “A fuga de Logan” (science-fiction), “O Memorando Quiller” (espionagem) ou “A casa da Flecha” (mistério & suspense), encenou aquela obra (por razões comestíveis?) para a Metro Goldwyn Mayer, que presumivelmente recebera essa encomenda dos meios vaticanistas mais “avançados.
(6) Actualmente, o protagonista da paródia aludida é, claramente, o inefável Papa Francisco, figura mediática que conseguiu ultrapassar o dinâmico Woytila e o melífluo Ratzinger na sua piscadela de olho aos credos politicamente correctos “new stile”, ao racionalismo crente “nouvelle vague” e ao “marxismo cultural” de diversos matizes obnóxios – os que acham possível uma espécie de Tratado de Tordesilhas islamo-cristão, com recorrências ora fradescas ora ideológicas…e em que o inimigo a crestar é o ateísmo ou mesmo o agnosticismo de cepa progressista.