Cesário Verde, em diálogos para honrar a melhor literatura

RICARDO DAUNT
Tributo
Organização:  DERIVALDO DOS SANTOS


 

CESÁRIO VERDE, EM DIÁLOGOS PARA HONRAR A MELHOR LITERATURA

Por LUIZ RUFFATO
Luiz Ruffato é autor de Mamma, son tanto Felice e O Mundo Inimigo


Finalmente é editada a obra completa do poeta português, nome de referência para o contemporâneo Fernando Pessoa

Há muito o mercado editorial brasileiro carecia de um livro criterioso que reunisse a obra completa de Cesário Verde (1855-1886), o que faz agora a Editora Landy com o lançamento da Obra Poética Integral de Cesário Verde, organizada por Ricardo Daunt. Isto porque as edições existentes, no mais das vezes, repetem falhas e incorreções perpetuadas no tempo, concorrendo para o comprometimento da fruição deste que talvez seja um dos mais importantes poetas portugueses. Daunt, especialista no autor, contextualiza-o, corrige problemas, oferece uma tábua cronológica e acrescenta 44 cartas, enviadas a diversos interlocutores, que ajudam a compreender a sua biografia.

Jornal O Estado de São Paulo . Livros Poesia: Caderno 2. 15 de out. de 2006

Poeta de transição, nele convivem as diversas forças das escolas estéticas de seu tempo (a agitada quadra final do século 19), das quais, aliás, soube tirar proveito, reformulando-as e tornando-as em dicção toda própria, onde, talvez, sobrepaire apenas a sombra imensa de Charles Baudelaire. E aqui não se pode falar em influência, mas em diálogo – porque se o poeta francês flana pelas ruas de uma Paris que rapidamente se transforma no coração do mundo (o gás revelando os entretons da escuridão), Cesário Verde capta o movimento de uma sociedade que se arrasta sufocada pela mesmice: “Nas nossas ruas, ao anoitecer, / Há tal soturnidade, há tal melancolia, / Que as sombras, o bulício, o Tejo, maresia / Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.”

O peso da tradição e a carolice da sociedade portuguesa de então arqueiam os ombros do poeta, que caminha pelas ruas e becos de Lisboa observando tudo com um olhar sem complacência. E seu inconformismo dirige-o às instituições: “Não podemos viver alegremente, / Sem que venham, com fórmulas legais, / Unir as nossas mãos, eternamente, / As mãos sacerdotais”; à percepção da miséria: “Sentei-me à secretária. Ali defronte mora / Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes; / Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes / E engoma para fora”; ao catolicismo: “As burguesinhas do Catolicismo/ Resvalam pelo chão minado pelos canos; / E lembram-me, ao chorar doente dos pianos, / As freiras que os jejuns matavam de histerismo”…

Não só nos temas Cesário Verde mostra-se moderno – mas também e principalmente no procedimento formal, no qual, usando da ironia, estabelece inter-relações , às vezes explícitas, outras nem tanto, com autores da tradição literária (o que se denomina, “pós-modernamente”, de intertextualidade). Camões, Ronsard, Poe, João de Deus, Balzac, Guerra Junqueira, Baudelaire são alguns dos que comparecem, ora parodiados, ora parafraseados em seus poemas. Fernando Pessoa, travestido no semi-heterônimo Bernardo Soares, chega a afirmar, em seu Livro do Desassossego: “Vivo uma era anterior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário

Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele”. Aliás, um interessante exercício será perceber como Pessoa retoma Cesário Verde em sua vasta obra. Como exemplo, basta o leitor comparar o poema Num Bairro Moderno do último com Tabacaria do primeiro. As evidências são gratificantes.


 

RICARDO DAUNT . TRIBUTO

revista triplov . série gótica . primavera 2020