Afogados

VI ENCONTRO TRIPLOV NA QUINTA DO FRADE
Casa das Monjas Dominicanas . Lumiar . Lisboa . 14 de Julho de 2018


MARIA JOSÉ CAMECELHA
Afogados


Death in the Seine  (1989)
Director Peter Greenaway | Música Michael Nyman

‘Morte no Sena’ é um objecto cinematográfico improvável, entre a ficção e o documentário.

A nota inicial informa que o filme irá examinar uma série de mortes no Sena, ocorridas entre 1795 a 1801. E surge a pergunta: haverá relação com os eventos da Revolução Francesa?,  a resposta é deixada ao critério do espectador, alertado para imagens –choque.

O primeiro plano, dedicado a Hypolite Bayard   é uma imagem inesperada – o  “Autoportrait en noyé” (Autorretrato afogado)  (ver Notas à Margem).

Este selfie de Bayard  é indissociável  da visão da morte, em Paris. E da visão da morte em Greenaway.

A visão dos corpos nus para “identificação” reflecte o despojamento patente na fotografia de Bayard e o por quê da inserção no primeiro plano de Morte no Sena.

Imagem e palavra, despojamento, relação entre a ficção e a realidade paradoxal.

Supostamente baseado no registo  de dois funcionários da morgue de Paris (Citizen Bouille e Citizen Daude) a  catalogação detalhada de 306 cadáveres retirados do Sena relata o tipo de morte: assassinato, suicídio ou acidente.

São esses processos verbais –  numerados – que indicam sexo, data, cor do cabelo, cicatrizes… , que são o cerne desta narrativa não linear.  Os corpos são retirados, observados, despidos e expostos para identificação cruzando-se   com  histórias singulares, sucessão de cortinas imagéticas e vorazes, que devoram os corpos e as estórias, à medida que os processos se sucedem. Num fluxo depurado.

Apoiada nos processos  de reconhecimento dos afogados, a série patente em ‘Morte no Sena’  (23 dos 306 retirados do Sena) pequenas estórias sucedem-se: empregados de balcão, jornaleiros, trabalhadores casuais, cavaleiros, crianças, mães, amantes, viúvas, uma lavadeira e a sua filha, …, todos afogados, retirados do Sena . As profissões relatadas (quando os corpos eram identificados) pelo narrador único, são testemunhos de uma vida quotidiana, numa composição sobre o tempo o espaço e a memória  da  Revolução Francesa (aqui impõe-se seguir a interrogação inicial de Greenaway e pensar – uma revolução, várias, porquê esta escolha).

A  imagem da morte é dada a ver detalhadamente, carinhosamente. As moedas no olhos de um morto, a  numeração do processo, o nome, quando identificado.

Os corpos, por vezes recuperados vestidos, são depois de despidos e lavados,  colocados sobre mesas de mármore branco, a cabeça num travesseiro de cobre. A exposição do cadáver começa naturalmente pelos pés, subindo pelo corpo acima, até ao rosto. Há indícios de movimento nas faces dos mortos, há  cadáveres com peixes em volta, como no Procès Verbal  Nº 225 de Louise Emilie Charlotte Harmand.  Água, Água, Água.  Fluxo constante entre a imagem presentificada, a palavra ouvida, a palavra escrita.

É a  composição de imagens dom  rótulos de identificação, festins dos funcionários da morgue e testemunhas de reconhecimento (onde se ligam vários tempos – rudes, desapiedados),  que enquadra os 44 ‘ 08‘’ de duração, numa banalização de sexos desfeitos e expostos . É ao narrador que cabe  problematizar as causas da morte: O que é aconteceu àquela mãe. Terá ido atrás do filho? Há várias causas prováveis. ..

No final, as palavras escritas ‘Provavelmente muitos dos actuais habitantes de Paris são descendentes  destes infelizes que se perderam da memória…

No último plano a mesma imagem   o  “Autoportrait en noyé” de Hypolite Bayard.

Finalizo com Strindberg no seu Inferno parisiense.

“E o que é tudo isto senão fotografia?”


NOTAS À MARGEM

Death in the Seine – Peter Greenaway (1989)
https://www.youtube.com/watch?v=YaowvIL7KjM

Reverso  do Autoretrato de Hypolitte Bayard  (1839|40)

“Le cadavre du Monsieur que vous voyez ci-derrière est celui de M. Bayard, inventeur du procédé dont vous venez de voir ou dont vous allez voir les merveilleux résultats. À ma connaissance, il y a à peu près trois ans que cet ingénieux et infatigable chercheur s’occupait de perfectionner son invention. L’Académie, le Roi et tous ceux qui ont vu ces dessins que lui trouvait imparfaits les ont admirés comme vous les admirez en ce moment. Cela lui fait beaucoup d’honneur et ne lui a pas valu un liard. Le gouvernement qui avait beaucoup trop donné à M. Daguerre a dit ne rien pouvoir faire pour M. Bayard et le malheureux s’est noyé. Oh ! instabilité des choses humaines ! Les artistes, les savants, les journaux se sont occupés de lui depuis longtemps et aujourd’hui qu’il y a plusieurs jours qu’il est exposé à la morgue personne ne l’a encore reconnu ni réclamé. Messieurs et Dames, passons à d’autres, de crainte que votre odorat ne soit affecté, car la figure du Monsieur et ses mains commencent à pourrir comme vous pouvez le remarquer. [signature] 18 Octobre 1840.”

  • Bayard (20 de janeiro de 1801 — Nemours, 14 de maio de 1887) estava ligado à Academia das Ciências de Paris, à Academia de Belas-Artes de Paris e à Sociedade Francesa de Fotografia, mas o deputado François Arago, que havia levado o estado francês a adquirir a patente de Daguerre, convence Bayard a não tornar pública a sua invenção, assistindo este ao sucesso daquele outro processo. No ano seguinte, como forma de protesto e com data de 18 de outubro, efetuou um retrato: “Autoportrait en noyé”, isto é, “Autorretrato afogado”. (wiki)
  • Bayard fez a apresentação pública das suas imagens em 24 de junho de 1839, ainda o daguerreótipo não havia sido apresentado.

A origem da palavra “Morgue ” surge  no  século XVI em  França, quando os corpos eram “morgued”, ou seja, examinados (com desdém) pelos carcereiros antes de serem trancados. Um termo que será vertido nas prisões do Chatelet, onde cadáveres eram guardados na penitenciária para permitir que os parisienses os identificassem por meio de uma janela.

http://www.unjourdeplusaparis.com/en/paris-insolite/morgue-visite-favorite-paris-au-19e-siecle

Note-se, pela informação do link supra que, até 1804, essa foi a prática corrente em Paris – as Prisões (nas salas inferiores) eram usadas como Morgue e exposição de cadáveres.  Entretanto  um edifício especial foi construído na Île de la Cité, no cais do mercado atual. Por trás de seus pretextos administrativos de registo – a morgue era usada para identificar cadáveres encontrados afogados no Sena, vítimas de crimes, suicídios, infanticídio … – e, sob o disfarce de uma alegada utilidade social,  de estatísticas, ordem e controles, Paris organizará por um século o grande espetáculo da morte, que culminará no final do século XIX.

No topo da Ile de la Cité (perto de Notre-Dame de Paris, na praça de Île-de-France), e sob a responsabilidade de Haussmann  (cf.: https://www.theguardian.com/cities/2016/mar/31/story-cities-12-paris-baron-haussmann-france-urban-planner-napoleon)  abrirá em 1868 um novo necrotério. Um espaço de exposição pública, aberto diariamente e gratuito, que mostrará os cadáveres em mesas de mármore inclinadas por trás do vidro. Expostos por vários dias, os cadáveres nus, refrescados por um leve fio de água, serão o palco da curiosidade dos parisienses. 

(…) Uma prisão para os “inimigos da Revolução”
Durante a Revolução Francesa, a instalação do Tribunal Revolucionário na Conciergerie, em maço de 1793, marca o período conhecido como Terror. Em setembro do mesmo ano, Robespierre, um dos líderes do governo revolucionário, instaura a Lei dos Suspeitos, que banaliza a pena de morte. Para se ter uma ideia, o número de execuções chega a 38 por dia em 1794.

(…) Salle des Condamnés – Sala dos Condenados
Fica no primeiro andar. Nas paredes estão fixadas listas com os nomes das pessoas executadas entre 10 de março de 1793 e 31 de maio de 1795, o período de funcionamento do Tribunal Revolucionário.

http://diretodeparis.com/conciergerie-de-palacio-do-rei-a-prisao-da-rainha/

(Citado de memória) in Baal, de B. Brecht:

O Joana, mais uma noite no teu aquário e eu tinha apodrecido entre os peixes.
Mas agora está em  mim o perfume claro das noites de Maio. Sou um amante sem amada. Fui vencido.

In Hamlet  | Shakespeare:
2º coveiro Mas ouvi, compadre coveiro… 1º coveiro Com licença. Aqui está a água; bem. Aqui está o homem; bem. Se o homem vai para a água e se afoga, é ele, quer o queira quer não, que vai até lá. Toma nota. Mas se a água vem para ele e o afoga, não é ele que se afoga. Logo, quem não é culpado de sua própria morte, não encurta a vida. 2º coveiro E isso é lei? 1º coveiro É, de acordo com as conclusões do magistrado. 2º coveiro Quereis que vos seja franco? Se não se tratasse de uma senhorinha de importância, não lhe dariam sepultura cristã. 1º coveiro Tu o disseste; é pena que neste mundo os grandes tenham mais direito de se enforcarem e afogarem do que os seus irmãos em Cristo. Dá-me a pá. Não há nobreza mais antiga do que a dos jardineiros, dos abridores de fossas e dos coveiros; todos exercem a profissão de Adão.

http://www.unicamp.br/chaa/rhaa/downloads/Revista%2013%20-%20artigo%205.pdf


REVISTA TRIPLOV DE ARTES, RELIGIÕES E CIÊNCIAS
série gótica. Outono . 2018