REALISMOS EM NOVA IORQUE
Maria Estela Guedes
Encontro Internacional «Realismos: antigos e novos». CICTSUL/ ISTA / TriploV / Instituto Científico Bento da Rocha Cabral . Lisboa . 6 de Fevereiro de 2010
02-02-2010

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Chuck_Close Duane_Hanson Empire_State_Building_02 Frida_Khalo Gabriel_Orozco Hair John_Block
Liz_Linder Lucien_Freud Museum_of_Sex_01 Museum_of_Sex_05 Natural_History_02 Natural_History_04 Nikhil_Chopra
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REALISMOS EM NOVA IORQUE

Maria Estela Guedes
 

Encontro Internacional «Realismos: antigos e novos». 6 de Fevereiro de 2010, Instituto Científico Bento da Rocha Cabral, Lisboa (CICTSUL, ISTA).

 

One can be a realist of the unreal and figurative
 with regard to the invisible
. Balthus

I was considered a surrealist.
That is not correct. I have never painted dreams.
 What I depicted was my reality
. Frida Kahlo

 

Estive em Nova Iorque em Janeiro deste ano, com os olhos e o pensamento centrados neste encontro sobre realismos. O realismo domina largamente sobre a arte abstracta, porque não se cinge aos museus e galerias - ele extravasa para a rua e interiores de café e restaurante, participa da vida quotidiana. Do abstraccionismo, só retive uma tela em grandes dimensões, na Whitney Gallery. A minha reacção face a ela foi a de que Cabrita Reis faria muito melhor.

Mas o que se deve entender por realismo em arte? Apenas a representação e o seu grau de fidelidade ao modelo? Neste caso, a mais realista das obras não seria a que imita um modelo, no caso do nu humano, entre outros exemplos, sim a obra que imita outra obra, ou seja, a falsificação. A maior fidelidade existiria entre clones contemporâneos do mesmo indivíduo (e não entre clone e doador), ou entre exemplares da mesma edição de um livro. No entanto, os três exemplares da primeira edição da Bíblia de Gutenberg, existentes na Morgan Library and Museum, em NYC, diferem pela encadernação, pela qualidade do papel, pelas impressões dos tipos e pela ornamentação. Desta edição não foram feitos mais do que 150 exemplares e provavelmente não haverá dois iguais.

Porém esta questão é obsoleta, a representação perfeita não é viável nem é aquilo que à arte mais interessa. A arte cria, torna existente o que não existia, mas para isso precisa de dominar técnicas várias, entre elas a da representação. A estátua em bronze de grandes dimensões, numa das avenidas de Nova Iorque, documenta o que afirmo: ela não pretende imitar a Vénus de Milo, mas as técnicas de representação do artista permitem-nos a nós reconhecer a presença da estátua grega na avenida novaiorquina. A representação teve por fim sugerir e citar, não reproduzir. De resto, a reprodução em arte é reprovável, quer a reprodução de formas, quer a de estereótipos e modelos de pensar. O artista quer-se livre da obediência a tutelas mentais que por vezes se manifestam por parte de poderes políticos e religiosos. Da sujeição ao totalitarismo do Poder foram exemplo vários realismos do século XX, quer Poder nazi quer comunista, e o mais curioso é que, sendo opostas as directrizes políticas, as obras de arte que os representam são semelhantes no seu cesarismo: gigantes, imperiais, exibindo a força e musculatura das personagens, a sua épica determinação. Mundo de ideias estranhas à arte, em que geralmente reina mais o pequeno do que o grande, o tímido do que o arrogante, a bondade do que a prepotência.

Tomo por guia Karl Popper, com a realidade dos seus 3 Mundos: o Mundo 1 é o físico, dos objectos tangíveis, dos corpos e fenómenos da Natureza; o Mundo 2 é o da consciência, diz respeito ao sujeito, a mim, neste caso, em que tomo a palavra, me emociono, me enervo, me precipito a ponto de expender considerações dispensáveis, como essa de que a obra abstracta vista na Whitney é inferior às de Cabrita Reis - e se o digo é porque em minha opinião existe muita semelhança entre elas. Então o Mundo 2 é isto: o reino da consciência de si e dos outros, das emoções e das opiniões, dos desejos pessoais e das vontades intransmissíveis. E Mundo 3 é o produzido pela mente: linguagem, teorias, conceitos, poesia, espiritualidade, religiões, arte, aquilo que diz respeito ao que habita a mente de populações humanas, enquanto representantes da espécie. O Mundo 3 é o das ideias de Platão. A Matemática e a beleza divina existem no Mundo 3. Mas os livros de Matemática e as esculturas gregas de deusas nuas existem no Mundo 1. Quer dizer que as ideias, para serem perceptíveis, precisam de tradução para um suporte de comunicação qualquer, seja madeira, papel ou chip electrónico. Os três mundos de Popper são vasos comunicantes, por isso a arte encontra-se nos três.

O realismo na arte contemporânea põe em cena obras que pertencem ao Mundo 1 de maneiras muito diferentes do que aconteceu com todos os realismos passados. A Vénus de Milo só pertence ao Mundo 1 por ser de mármore; antes de esculpido o mármore, ela não existia, a não ser como ideal de beleza, no Mundo 3, ou como coisa imaginária no Mundo 2 do seu autor. Ao passo que no realismo contemporâneo há algo de radicalmente novo: os conteúdos do Mundo 1, incluída a Natureza, podem assumir a categoria de arte sem o artista os ter esculpido, sem ter alterado a sua forma e substância. Basta às vezes mudá-los de lugar para surgir o seu carácter estético. Ou, então, o artista interfere com a Natureza, modificando organismos vivos – indivíduos, não espécies; enfim, espero que só mexam nos indivíduos. O artista do passado trabalhava com o inorgânico, hoje existe uma arte orgânica com diversas expressões.

É com objectos de toilette, roupas, sapatos, bonés e similares que Nikhil Chopra constrói o espaço de «Yog Raj Chitrakar: Memory Drawing IX», no New Museum. E no entanto a obra de Nikhil Chopra nada tem de realista, quando a tomamos na totalidade - ele não está a testemunhar a realidade do Mundo 1 em 2010, ano da exposição, os seus objectos e encenações dizem respeito a 1920 ou 1930. Existe apesar disso uma carga política forte na mistura que faz de performance, instalação, desenho, arte de rua e vídeo. Resulta, entre outras hipóteses de leitura, da crítica à perplexidade de quem observa a arte contemporânea.

O realismo domina então culturalmente, e mantém vivas problemáticas nascidas com as vanguardas de há cem anos, sobre o que é a arte, e quais as suas fronteiras com a não-arte. No meu Mundo 2, não só não respondo a tais provocações como as estimulo com as imagens trazidas dos Estados Unidos ou retiradas da Internet, uma vez que não se podem tirar fotografias nos museus. É o caso de o meu trabalho incluir imagens colhidas no American Museum of Natural History: os museus de História Natural serão de arte? E as borboletas e orquídeas de cores e morfologia alteradas pelos artistas? Serão arte ou biotecnologia?

O naturalismo tem sido um dos meus temas de investigação, por isso nada de mais natural do que incluir a História Natural nas expressões do realismo. No século XIX, o naturalismo representava a faceta científica do realismo: os escritores, por respeito à realidade, antes de criarem personagens de bêbados ou loucos, iam estudar casos clínicos aos hospitais. Hoje, a componente científica da arte é mais profunda e complexa, o artista não se limita a estudar, ele vai para o laboratório, experimenta e cria seres diversos dos que antes existiam. No Think Coffee podia apreciar-se uma exposição de arte orgânica, de um lado acentuando ironicamente o corpo masculino trabalhado pela ginástica, de músculos grandiosos, de outro patenteando uma colecção de pássaros aberrantes, com duas e três cabeças. Ignoro se as anomalias foram provocadas pelo artista, à imitação das experiências de Spallanzani com ovos de espécies várias, no século XVIII, para averiguar qual a função do esperma.

As minhas fotos foram coligidas nos museus de arte contemporânea - MOMA, New Museum, The Studium Museum in Harlem, Whitney Gallery e Guggenheim. Em segundo lugar, nas ruas, montras, metropolitano, cafés e restaurantes. Outras chegaram-me às mãos através da Internet. Olhando para o céu, uma das facetas da nossa arte mais patentes em NYC é a arquitectura. Será a arquitectura uma arte realista ou não?

O grande sucesso actual no MOMA, manifesto nas salas cheias e por isso na limitação de entradas por hora, é Tim Burton. Nada de menos realista que Tim Burton, basta pensarmos na enorme fantasia de filmes como «Eduardo Mãos de Tesoura», a que garantiu o visual. Porém o que se patenteia nos dois pisos que ocupam as suas pinturas, desenhos, esboços, fotos, modelos, bonecos, réplicas a três dimensões de personagens de filmes, gloriosos todos na imaginação, é a estrutura realista, por vezes antropomórfica, das suas composições, mesmo mais ficcionais, como os seres extraterrestres. A atestá-lo, expõem-se vários estudos de anatomia, especialmente do esqueleto. O esqueleto é um dos ícones da arte do nosso tempo.

Se o realismo domina a arte contemporânea, algumas das suas formas são mais chocantes que outras. Chocam, pela verosimilhança extrema, as esculturas de humanos em tamanho natural, próprias do hiper-realismo. Chocam mais os nus do que os vestidos. Choca seriamente a estátua do pai morto, nu, de genitais pendentes, de Ron Mueck, o que me obriga a citar um fragmento de vídeo sobre Margaret Mead, no American Museum of Natural History, em que ela pergunta ao interlocutor: «Você já viu alguém morrer? Você já viu algum nascimento de criança? Não, nunca viu, porque a nossa sociedade protege as pessoas da realidade».

Ora, a arte contemporânea retirou os filtros entre nós e a realidade, ou entre o Mundo 2 e o Mundo 1 de Karl Popper: a consciência de cada um de nós é obrigada a confrontar-se com o que é tabu, o que aflige, o que faz sofrer, o que enoja. Incapaz de aguentar o choque das imagens, fugi dos vídeos de John Block, na Whitney Gallery, porque, inspirado na guerra na Coreia, o artista apresenta toda a sorte de cenas de mutilação, auto-ferimentos e tortura, no vídeo «Para-Schizo». Esta arte trabalha com o corpo, por isso é body art; porém segue caminho até ao organismo e suas excreções e fluidos, donde se pode considerar arte orgânica.

O corpo como suporte de arte, seu tema ou seu alvo é a maior das provocações do nosso tempo. Também ele ergue tabus e liquida fronteiras entre arte e não-arte, a exemplo da conhecida exposição «Bodies», que não vi nem tenciono ver, por fragilidades emocionais no meu Mundo 2.

Nos lados mais obviamente estéticos que trabalham o corpo, de notar a atenção prestada ao erotismo e ao sexo. Dois momentos a considerar aqui: de um lado a eliminação de discriminações como a da raça e do género. Liz Linder revela as duas tendências na sua fotografia: lindas mulheres apaixonadas, a negra pela branca e inversamente. A assunção da negritude é bem mais ampla em Nova Iorque, e não se cinge ao Harlem, com os top models negros nos outdoors e nas montras das lojas. Também não acaba no Studio Museum in Harlem, prioritariamente destinado a artistas negros. Um pouco por toda a cidade, desde a arte de publicitar até à televisão, é notória a acção dos negros.

No Studio Museum in Harlem vi uma das obras de arte mais belas, perturbadoras e complexas actualmente expostas em Nova Iorque, a série de filmes de Omer Fast intitulada «Nostalgia». Estruturalmente, é uma obra simples, só projecção de filme em grande sala escura e vazia, ao contrário de outras obras, que misturam muitos meios. Mas ele mistura, pois a hibridação é típica também dos nossos dias. Simplesmente, o que Omer Fast hibrida é da ordem do Mundo 3: ideias, linguagens, teorias. Sobretudo, o artista mistura a realidade do documentário televisivo com a ficção cinematográfica. Esta surge como luz que se acende subitamente no cérebro, quando um segmento de discurso se torna repetitivo: os diversos falantes, em diversas histórias, visionadas em salas diversas, a dado passo da conversa, referem todos uma armadilha fabricada com varas. O relato de emigrantes, polícias, crianças acossadas numa África em guerra, é sacudido na sua realidade flagelante e mortífera por um episódio comum: todos explicam como se faz uma ratoeira para caçar galinholas e tentam adicionar a explicação do que é uma galinhola. «Nostalgia» é uma série de obras com objectivo comum a outros artistas, muitíssimo diferentes, como James Cameron, no seu belíssimo trabalho sobre a alegoria da caverna que dá pelo título de «Avatar», filme no qual se defrontam humanos com um povo arborícola humanóide - o objectivo é o de salvar o planeta, e muito em especial a floresta tropical, das poucas que ainda nos restam. James Cameron, Omer Fast e Urs Fischer, que inclui um esqueleto humanóide entre as suas abstractas esculturas gigantes de alumínio, alusivas a vísceras, sentem a nostalgia de uma floresta que está a ser destruída e cujo desaparecimento provocará a nossa extinção. Acrescente-se Gabriel Orozco à lista de artistas angustiados com a extinção da floresta. Este artista mexicano ocupa várias salas do MOMA, com ready mades de bicicletas, motorizadas, automóveis, entre outras obras. A que o traz agora à minha comunicação é um corte de tronco de árvore incrustado de olhos que nos fitam, perplexos e acusadores.

Os caminhos do corpo não são novos. As nossas referências mais fortes, no entanto, não remontam à Antiguidade Clássica que nos deixou a Vénus de Milo, nem aos povos do Pacífico que nos legaram uma estatuária gigantesca, por isso com proporcional genitalia, sim aos anos 60, com os movimentos de libertação sexual e emancipação da mulher. As tendências mais fortes dos anos 60 no que diz respeito ao corpo - amor livre, aceitação da homossexualidade e das relações inter-raciais - foram admiravelmente sintetizadas em «Hair», agora em encenação novíssima na Broadway. Substituindo o Vietname pelo Iraque, a obra mantém toda a sua actualidade e poder de choque, manifesto na personagem de gays, cenas eróticas e num final de quadro em que todos os intervenientes tiram a roupa, permanecendo em nu integral diante do público.

Fica assim dentro das expectativas, neste final da viagem da arte através do corpo, um Museu do Sexo. Não é um grande museu, mas abre boas perspectivas o seu pioneirismo. Entre os muitos objectos expostos, encontram-se as «real dolls». Porquê «reais», se tão visível nas bonecas é a sua matéria insuflável?

Parece enfim que nos cerca até à sufocação a realidade, acumulada a ela a da arte. Por onde anda o espírito? – pergunta-se. Então só a matéria é venerável?

Realmente o espírito habita a matéria, os corpos são dotados de alma. Nada aliás como Nova Iorque para o patentear, e é a matéria bruta do betão e do vidro aquela em que mais apelos à luz e às asas se revelam. Nova Iorque é uma catedral. A arquitectura, em especial os arranha-céus da parte nobre da cidade - zona de Times Square e Financial District - é uma orgia de brilhantes projectados no céu. A arquitectura fala com Deus. Mas também no interior dos grandes edifícios se vê a homenagem ao Grande Arquitecto do Universo, como se pode apreciar num dos três medalhões dourados no luxuoso hall do Empire State Building. Não se trata de inscrição com o lema Liberdade, Igualdade e Fraternidade, sim de uma nova trindade. Cada medalhão tem a sua palavra, por esta ordem: «Electricidade», «Maçonaria» e «Empreendimento».

Toda a obra de arte tem implícito ou explícito o seu próprio Mundo 3, é dotada de religião e espírito. Mas apontar para o lugar exacto onde isso acontece e explicar como produz a arte efeitos de diálogo com o divino é algo difícil. Trata-se de uma zona de obscuridade que acha eco noutra zona de obscuridade, quando uma consciência, ou Mundo 2, estabelece contacto com outro Mundo 2. Quem aceita que existe religiosidade numa cena em que dois bonecos animados se agarram a cordões de sementes cor-de-rosa pendentes dos ramos de uma árvore? Tal experiência não é transmissível, por isso só pode provocar desdém ou riso. Garanto, porém, que só corações de pedra ficam insensíveis ao presenciar a oração à Árvore Sagrada, em «Avatar», só corações de pedra não precisam de limpar das lágrimas os óculos adequados ao visionamento do filme, realisticamente rotulados com a marca «Real D 3D».

 
Post scriptum.

Porque algumas pessoas consideram errado tomar por realistas artistas que o não são, um esclarecimento: o meu ensaio não é taxonómico, não visa classificar nesta ou naquela escola, neste ou naquele movimento. Pretendi somente compilar elementos realistas na cultura e nas obras de arte, caso das surrealistas, que usam largamente o ready made, e mesmo as técnicas de representação do pré-existente a elas. Para isso recorri a um modelo de cosmovisão realista para me guiar, o dos 3 Mundos de Karl Popper. O meu principal apoio bibliográfico, para a arte, foi o livro «Realism», de Kerstin Stremmel (Taschen, 2006, Tokyo, Ney York, etc.), no qual figura, p. ex., o auto-retrato de Frida Kahlo, uma pintora que eu, pessoalmente, não consideraria realista, não obstante o seu largo recurso às técnicas de representação do real.

MEG