Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

PÁGINA INDEX NÚMERO 05|ABRIL DE 2010

NÚMERO 05

Abril 2010

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Poesia sem palavras?

 

- O estado de vida poética em Artaud

 

Ricardo Mendes Mattos

A poesia como gênero literário pressupõe sempre a palavra, escrita ou oral. A expressão poética é uma expressão da linguagem verbal. É o verso poético, metrificado ou livre, com seu ritmo, suas analogias e imagens que caracteriza a poesia.

Para Antonin Artaud, ao contrário, a poesia começa onde termina o uso da palavra. A força da poesia está na negação da palavra. Não é um determinado uso da linguagem verbal que confere originalidade à poesia, mas exatamente o seu desuso.

De que poesia falamos, então? Quais os meios de expressão dessa energia poética que prescinde da linguagem escrita?

É bem sabido que Artaud jamais se dedicou diretamente à noção de poesia – ao menos não como defendeu sua noção de teatro ou como fez a crítica da sociedade ocidental. Todavia, em diversos textos, apresenta alguns contornos que permitem amealhar pistas para uma noção artaudiana da atividade poética.

Centrarei fogo nos textos, ensaios, palestras, cartas, manifestos do período entre seu afastamento formal do Surrealismo (1926) e sua ida ao México (1936), momento em que gestava o teatro da crueldade. Nota-se que suas menções à expressão poética são de um período posterior as poesias da juventude - “Le Tric-Trac Du Ciel” (1923) – e feéricas prosas poéticas surrealistas (1924 a 1926), bem como anterior as incursões poéticas pós-internações psiquiátricas. Artaud escreve sobre a expressão poética num momento em que não escreve poesia.

A crítica à linguagem verbal simboliza em Artaud a crítica da própria sociedade ocidental. Os meios de expressão dessa sociedade, não só naquilo que revela, mas principalmente, naquilo que rejeita, são fundamentos de seu modo de ser. São idéias que já não aderem à vida, que a limitam, a enclausuram. Logo, Artaud propõe : “… romper a linguagem para tocar na vida”. [01]

  A palavra, como representação da linguagem verbal, cerceia a vida na medida em que é puramente cerebral e racional, aguçando no homem apenas suas faculdades intelectuais. Sua busca é por idéias claras, fixas, bem descritas. Sua forma oral enseja o discurso pomposo, a argumentação consistente, a persuasão. Sua construção escrita deve estar correta, prostrada à gramática. Um todo regulado, bem construído, ordenado conforme as regras textuais e lógicas.

Cada palavra deve nomear, se reter ao sentido, atribuir um significado exato ao objeto ou situação que descreve. Sua finalidade é definir, elucidar. Exaltar o discurso lógico que reduz a vida a sistemas classificatórios pretensamente infalíveis. Trata-se da palavra fria, seca, sem comoção. São palavras dirigidas ao domínio psicológico somente na medida em que devem nomear os sentimentos, disciplinar o comportamento.

Tal ditadura da palavra constrói convenções sociais e preceitos morais que devem ser incondicionalmente obedecidos. Constrói o homem disciplinado, controlado, castrado. Limita o fluxo do pensamento, paralisa seu devir, impede a livre profusão de imagens. Direciona as idéias que os homens possuem sobre a realidade e a própria ação diante dela.

No domínio da vida, a palavra simboliza uma tendência tecnicista e utilitária, de um homem “antipoético”, subserviente às instituições sociais - como a família, o Estado, o trabalho, a igreja e a medicina.

Diante dessa noção de linguagem verbal, pode-se entender que Artaud, ao buscar uma nova linguagem, cria um outro modo de ser. Busca uma nova vida. Transgredir a linguagem verbal é subverter a ordem social. É ser hostil, perigoso, indesejado. Bem sabemos o preço pagou pela ousadia, encarcerado no manicômio, apreendido pelo discurso psiquiátrico… . suicidado pela sociedade.

Em seus acessos mais feéricos contra a palavra, Artaud chega a dizer: “É preciso acabar com a superstição dos textos e da poesia escrita (…) Basta de poemas individuais e que servem muito mais a quem os faz do que a quem os lê” [02] (grifos do autor). Fala mesmo na eliminação, supressão da palavra. A poesia literária chega a ser considerada uma força de castração desligada da vida.

O fim da sujeição à palavra traria a verdadeira expressão poética. Como seria esta poesia sem palavras que Artaud propõe?

A trajetória de Artaud desse período é caracterizada pela criação do Teatro da Crueldade, em cujos textos e manifestos a noção de poética surge de maneira bastante intensa. Da mesma forma que a poesia, o teatro ocidental também se encontrava refém do texto, do diálogo, da palavra.

Se o teatro necessita da poesia para superar as formas de expressão puramente descritivas e narrativas dos textos, a poesia também necessita do teatro para exprimir-se para além das palavras. Da integração do teatro e da poesia surge uma forma de expressão que simboliza esta nova linguagem perseguida e criada por Artaud.

O teatro é considerado como sinônimo de “poesia em ação”, poesia realizada, aplicada. É poesia pelo teatro. Trata-se de uma forma de expressão espacial, concreta. Artaud enfatiza a materialidade dessa nova linguagem, sua exterioridade: física, sólida, sensível, efetiva. Não o texto dialogado que se dirige ao intelecto, mas uma expressão concreta que se dirija ao corpo, à sensibilidade. Não letra imóvel dos livros, mas livres ações na vida.

A poesia abandona a palavra para se materializar por meio de gestos, movimentos, cores, sons, gritos, vibrações, atitudes… A encenação teatral é a forma de expressão poética genuína, pois tira a centralidade da palavra para utilizar uma multiplicidade de formas de expressão, uma “materialização visual e plástica da palavra”. [03]

É uma linguagem espacial e colorida, anterior ao discurso racional; um estado poético, prenhe de signos e imagens. Artaud se refere a este estado como “a Palavra anterior às palavras”. [04] É um estado poético do som, do gesto, do urro, da cor, do afeto, do toque. A poesia cênica, teatral refaz o próprio caminho que originou a palavra.

É um regresso ao primitivo que faz avançar, que faz a poesia transcender a palavra: “E aquilo que o teatro ainda pode extrair da palavra são suas possibilidades de expansão fora das palavras, de desenvolvimento no espaço, de ação dissociadora e vibratória sobre a sensibilidade”. [05]

Sua materialidade corporal se destina a aguçar a sensibilidade, os sentidos humanos. Excitação de diversos planos do espírito por meio dos nervos e coração. Faz cavalgar por todos os lados seu impacto na visão, audição, tato… com luzes, sons, imagens, movimentos corporais que criam uma vibração peculiar no corpo. Distante da passividade antes imposta ao espectador, esta poesia encenada pretende multiplicar imagens contínuas em seu cérebro, criar um estado de alteração orgânica similar à alucinação.

Esta poesia plástica leva a linguagem às últimas conseqüências, desperta todo seu poder de impacto ao espírito, transgride os limites da palavra. A criação de tal poesia também não é cerebral e obediente. Artaud comenta um estado de criação total em que o acaso, o imprevisto, a surpresa, são a própria poesia. É uma composição realizada de maneira única, no momento mesmo da ação: o “… estado de incerteza e angústia inefável que é próprio da poesia”. [06] É Fatalidade.

O livre fluxo do pensamento, a profusão intempestiva de imagens do inconsciente, o desfilar violento de signos que revelam algo fantástico. A transmutação das idéias nos corpos, a liberdade mágica nos sonhos. É Devir.

Erupção do inconsciente com seus conflitos, seus mistérios, seu espírito poético que regurgita os desejos recalcados pelas regras sociais. É uma “poesia atroz” que pretende reencontrar a intensidade da vida em sua feição mais selvagem, espontânea. Ações que contagiam para o crime, a guerra, a revolta, em uma hemoptise, um “jorro sangrento de imagens tanto na cabeça do poeta quanto na do espectador”. [07]

A imagem espiritual da peste pode ser um exemplo do impacto que o Teatro da Crueldade pretende causar com sua poesia em ação: o “delírio comunicativo”, que leva as pessoas a sensações intensas, à desordem, à desmoralização, ao transbordamento dos desejos, ao furor sexual e erótico que irrompe violento contra quaisquer proibições ou convenções sociais. Transe. É Caos.

A poesia em ação é a consagração da revolta. É Anarquia.

Artaud sente na anarquia a base de toda poesia. Tal como a anarquia, a poesia põe-se a desorganizar, transgredir, excitar a revolta: “A poesia é uma força dissociadora e anárquica, que, por analogias, associações, imagens, vive apenas de uma subversão de relações conhecidas”. [08]

É subverter as convenções lingüísticas de sentido e significado, pela imagem; é destronar a lógica da criação artística, tornando esta criação suscetível as voláteis vontades do espírito; é, enfim, romper com as pretensas barreiras entre arte e vida. Em suas palavras: “… o espírito poético quando se exerce tende sempre a uma espécie de anarquia fervilhante, a uma desagregação integral do real pela poesia”. [09]

A arte indissociável da vida; a poesia que irrompe no real; a transformação da sociedade pela poesia. Artaud exacerba a criação de um estado de vida poética, como integração da poesia, teatro e anarquia. É o estado de espírito em que a vida reencontra sua expressão mais espontânea.

Heliogábalo, [10] o anarquista coroado, jovem imperador romano pesquisado por Artaud, é a figura que representou na vida real este estado poético. Com todas as suas desmoralizações, orgias, ridicularizarão das autoridades e incentivo às insurreições.

Para essa poética da exterioridade, da ação, o próprio Artaud apresenta suas inspirações. Em um curto texto sobre Rimbaud, descreve a influência do aventureiro francês em levar a uma força extrema a linguagem, expressa como estado de vida, modo de ser. [11] A fusão da arte e da vida, em estado de vida anárquico e transgressor, também tem seus precedentes em Alfred Jarry, a quem Artaud homenageou com a fundação de um grupo teatral homônimo.

Artaud, em janeiro de 1936, na Universidade do México, palestra sobre o tema Surrealismo e Revolução. Comenta o estado de espírito, de recusa, desmoralização e libertação que motiva a expressão surrealista. Chega a afirmar que tal estado de espírito “… não era mais poesia no sentido dado à palavra, porém a emissão magnética de um sopro, uma estranha espécie de magia instalada em nós”. [12]

Esta magia parece similar ao estado de vida poética, ao dilaceramento do espírito sob o impacto da poesia em ação. Não é mesmo poesia, mas não deixa de sê-lo.

Ao comentar entusiasmado alguns filmes dos Irmãos Marx, aponta: “O primeiro filme dos Irmãos Marx que vimos aqui, Animal Crackers, pareceu-me, e assim foi visto por todo o mundo, uma coisa extraordinária, a liberação, através da tela, de uma magia particular que as relações habituais entre as palavras e as imagens não revelam, e, se há um estado caracterizado, um grau poético distinto do espírito que se possa chamar de surrealismo, Animal Crackers participa plenamente dele”. [13] Logo a seguir acrescenta que tal magia somente se pode encontrar em algumas “poesias surrealistas bem sucedidas”.

Seria o teatro da crueldade, a expressão poética em ação de Artaud, uma dessas formas de poesia surrealista “bem sucedida”, na medida em que promove esse tal estado mágico do espírito? Teria Artaud radicalizado a perspectiva surrealista, enquanto o próprio Surrealismo “oficial”, por assim dizer, estada prostrado de joelhos ao marxismo do Partido Comunista?

De qualquer forma, eis as imagens da poética em Artaud. Da negação da palavra escrita a uma poética em ação, que aguça o espírito por meio dos sentidos, levando as pessoas a um fluxo liberto de pensamentos e imagens que passam ao largo dos interditos sociais. A poesia que pulula em um estado de vida anárquico e transgressor.

Escrita, encenada, vivida, ainda aqui a poesia permanece como enigma. Como num jogo de espelhos, prefigura ela também indizível. Indefinida, nos arrasta em seu vertiginoso fluir. Inaugura uma vivência que não se deixa apreender pela palavra. Paradoxal, ambígua, escorregadia / sacia e deixa sedento. Labiríntica, desencontrada mesmo lá onde se imaginava escondida.

NOTAS

[1] Artaud, Antonin. Teatro e Cultura. In: O Teatro e seu Duplo. (Teixeira Coelho, trad.). São Paulo: Martins Fontes, 1993.

[2] Artaud, Antonin. Acabar com as obras primas. In: O Teatro e seu Duplo. op. cit.

[3] Artaud, Antonin. Teatro Oriental e Teatro Ocidental. . In: O Teatro e seu Duplo. op. cit.

[4] Artaud, Antonin. Sobre o Teatro de Bali. . In: O Teatro e seu Duplo. op. cit.

[5] Artaud, Antonin. O Teatro da Crueldade (primeiro manifesto). In: O Teatro e seu Duplo. op. cit.

[6] Artaud, Antonin. Sobre o Teatro de Bali. op. cit.

[7] Artaud, Antonin. Acabar com as obras primas. op. cit.

[8] Artaud, Antonin. In: Artaud, Linguagem e Vida. (J. Guinsburg, Silvia Fernandes, Regina Correa Rocha e Maria Lúcia Pereira, trad.). São Paulo: Perspectiva, 1995. p. 83

[9] Artaud, Antonin. Irmãos Marx. In: Artaud, Linguagem e Vida. (J. Guinsburg, Silvia Fernandes, Regina Correa Rocha e Maria Lúcia Pereira, trad.). São Paulo: Perspectiva, 1995. p. 163

[10] Artaud, Antonin. Heliogábalo ou o anarquista coroado. (Mário Cesariny, trad.). Lisboa: Assírio & Alvim, 1991.

[11] Artaud, Antonin. In: Artaud, Linguagem e Vida. op. cit.

[12] Artaud, Antonin. Surrealismo e Revolução. In: Escritos de Antonin Artaud. (Claudio Willer, trad.). Porto Alegre: LP&M, 1983. (Coleção Rebeldes e Malditos, vol. 5).

[13] Artaud, Antonin. Irmãos Marx. op. cit.

Ricardo Mendes Mattos (Brasil). Psicólogo social. Contato: ricardomendesmattos@ig.com.br.

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