Proposta da constituição da «Lixados»
Desenho de Paulo Jorge Miranda

 

 

 

 

 

 

 

JULIÃO BERNARDES


Considerando

– a experiência individual acumulada ao longo da vida de cada um de nós, mormente a que, bem lá no fundo, rejeita as bases em que tem assentado a vivência social suportada até ao momento,

– a experiência recolhida no 8º Curso de Gestão para Dirigentes e Quadros

(que é, afinal, o 1º), curso que decorreu de 28FEV94 a 31JUL94, no Centro de For- mação Profissional da Venda Nova

Tendo em vista

– não perder esse Capital acumulado, fonte do êxito a alcançar pelas gerações vindouras no campo da satisfação individual total, expressa pela capacidade de rejeitar, enfim liberta

– que o Investimento é relativamente pequeno face ao imenso Lucro a haver – o enriquecimento pessoal enfim conseguido, pelo desenvolvimento acelerado das quali- dades que, na mulher e no homem, são profundamente humanas

– que o Risco de não obtenção de resultados é mínimo – quem rejeita atinge sempre o seu objectivo, não aceitar

– que o Prazo de Recuperação do Capital é imediato – não se aceita, logo não se obtém

Proponho

Que se constitua desde já a LIXADOS (Liga dos Independentes Xilóforos Activos Desempregados Obedientes e Submissos), com o seguinte

ESTATUTO 

1º. LIGAR, isto é, tratar com respeito todos os desempregados;

2º. Desenvolver no desempregado a capacidade de se manter livre i INDEPENDENTE,

para  que possa optar correctamente pelo que na vida o satisfaz fazer, libertando-o do estresse;

3º. Criar no desempregado o espírito de XILÓFORO (literalmente o o sacerdote hebreu que acendia e mantinha aceso o fogo sagrado), acendendo e mantendo nele a chama interior que o levará a só fazer o que lhe der na real gana;

4º. Ensinar o desempregado  a manter-se  ACTIVO, pelo preenchimento, até à exaustão

dos seus tempos livres – dormirá bem todas as noites, sem necessidade de remédios;

5º. Incentivar a que o desempregado se mantenha DESEMPREGADO, para que, não estando  espartilhado entre horários e patrão, reaprenda  a ocupar positivamente todo o seu tempo, de forma a que, livre de subserviências, volte  a rir daquilo a que acha graça e só disso, sem obrigação do riso de conveniência tão dissonante e tão contrário à plenitude que cada pessoa pretende atingir;

6º. Ensinar o desempregado a  manter-se  OBEDIENTE,  primeiro que tudo  à  vida, da qual terá por obrigação descobrir o valor intrínseco e verdadeiro; depois, ao amor, a si próprio e aos outros, estes que passará a olhar na sua dimensão humana real:

ou de desempregados a quem, contra todos os conselhos, se deve lamentar prosseguir no seu caminho de alheios à LIXADOS, ou de desempregados a quem, abertos já os olhos  à  verdadeira  realidade da vida, se deve estimular  a  aprendizagem e a aplicação dos princípios aqui expressos;

7º. Despertar no desempregado o desejo de adquirir a qualidade de SUBMISSO – já que a vida o fez desempregado, essa condição aceitar sem indignação ou ressentimento, inveja ou revolta, antes como um bem a preservar, pois não consta que haja desempregado a morrer das doenças que mais afligem a humanidade, e que resultam, quase todas, de excessos alimentares e de trabalho;

8º. Na prática do mais virtuoso  princípio de solidariedade, cada LIXADO deve manter-se vigilante sobre cada um dos outros Lixados e sobre si próprio  (neste caso deixa de  ser solidário e passa a considerar-se solitário) por forma  a manter vivo o querer subjacente à condição de Lixado, e que consiste em dominar a vontade de trabalhar, quando se manifestem aqueles impulsos que, afinal,  nos  foram erradamente inculcados em anos e anos de mau encaminhamento familiar e social;

9º. A LIXADOS extinguir-se-á, naturalmente, quando todas as pessoas do planeta atingirem  a condição de LIXADO,  uma vez que  quem atinge esta situação não aceitará por certo sair dela, e, atingido o objectivo para que foi criada, a LIXADOS deixará de ter razão de existir.

REGULAMENTO INTERNO

1º. Ninguém poderá sofrer qualquer tipo de descriminação, mesmo os que façam gosto em ocupar o seu tempo sem nada fazer;

2º. Temporariamente aceitar-se-ão como membros da LIXADOS pessoas que se vejam compelidas, por necessidades prementes de subsistência, a viver com o estatuto revoltante de empregados, pois se sabe que a isso são conduzidas por uma sociedade que ainda não soube criar as condições para acabar com esse flagelo, essa condenação que contraria a condição humana com que nascemos e que alguns continuam a possuir pela vida fora, apesar de continuamente tentados, pela sociedade, a  perdê-la, em nome de aquisição de regalias que a contrariam;

3º. Haverá punição exemplar, a  determinar caso a caso, a quem faltar às reuniões da LIXADOS  que aqui vão ficar aprovadas, a realizar  no local escolhido ou  em local previamente combinado e do conhecimento de todos, nos seguintes dias:

– dias 30 dos meses com 30 dias (Abril, Junho, Setembro e Novembro; excluem-se os que têm 31, uma vez que, apesar de terem também 30, nos baralham a sistematização da memorização  e  um  LIXADO deve  excluir pormenores que possam vir a atrapalhar o seu dia-a-dia mental;

– dia 28 (ou 29) de mês de Fevereiro;

4º. O dia 28 de Fevereiro passa a comemorar-se anualmente como DIA DOS LIXADOS,  uma vez que foi no dia 28 de Fevereiro deste ano que se iniciou o curso que teve a felicidade de nos juntar.

Atente-se o facto, significativo, de em cada 4 anos haver um ano em que não se comemora o aniversário da LIXADOS. Não se poderia ter melhor indicação directa, e por todos entendida, da especial importância para a humanidade do nascimento desta Liga em data tão assinalada;

5º. Nas reuniões, aconselha-se que cada LIXADO mastigue e torne a mastigar todos os elementos comestíveis fornecidos, por forma a reduzi-los à sua expressão mais simples, o que permitirá que esses elementos sejam digeridos rapidamente e sem qualquer trabalho suplementar dos órgãos intervenientes, facilitando a sua absorção total, conseguindo-se, por esse modo, a plena satisfação, o que constitui, como se sabe, o objectivo de cada reunião.

CONSIDERAÇÃO FINAL

Tendo sido convidados para este acto solene Sua Excelência o Senhor Presidente da República e Sua Excelência o Senhor Primeiro Ministro, os mesmos não se dignaram comparecer nem fazer-se representar, sabendo-se que consideram esta Liga subversiva e contrária aos princípios da lei e da ordem estabelecidas.

Propõe-se que a LIXADOS lhes perdoe o não terem atingido o interesse nacional e de utilidade pública desta Liga, o qual certamente será dentro em breve reconhecido como interesse mundial.

Todo o arrazoado constante deste documento foi lido e aprovado por todos os intervenientes presentes, que de seguida o assinam, se esse trabalho quiserem ter, dando autenticidade ao mesmo.

A proposta constante desta consideração final foi aprovada por unanimidade e aclamação; foi sugerida uma ida ao programa “Perdoa-me”, da SIC. Tendo ficado de se estudar em pormenor essa hipótese, o que fará, como prémio, o que vier a ser o LIXADO 1.000.000.

(No documento original seguem-se as assinaturas dos 14 LIXADOS que o assinaram)


Discurso para excitação dos LIXADOS:

SET94

Lixadas!… Lixados!…

Estamos aqui reunidos

cada vez mais convencidos

de que, para o nosso meio

ser desempregado é feio,

nos amarra e nos limita

e é fonte de desdita.

 

Que triste sociedade

que faz do luxo e vaidade

o ideal a atingir

e passa a vida a fingir!

 

Finge ser mais importante

o dono de tal semblante,

sisudo, de ocasião,

ou um outro, de cifrão,

que tem na banca dourada

cofre de conta calada

ganha não se sabe como;

ou outro, feito mordomo,

guindado a um qualquer cargo

e que mais cheio e mais largo

se sente por tal motivo.

 

Fingir virou adjectivo.

 

Por isso quem o não sabe

não tem lugar onde cabe.

 

Na boca da maioria

–  que há-de aprender um dia

que trabalhar é um frete –

não ter emprego é ferrete

pior que a escravidão,

vida pior que a de cão

que ganha a sua comida

vivendo à boa vida

sem com nada se ralar…

Esquece, bem a contento,

que para seu cumprimento

o homem nasceu pra amar,

e que trabalho é amarra

com que a vida nos agarra,

pouco tempo nos deixando

pra ir vivendo e amando.

 

Há sempre quem bem se amanhe

e para si abocanhe

o que, sem se diminuir,

podia distribuir

pra matar ao mundo a fome

– que muita gente consome

sem qualquer finalidade

vivendo a frivolidade

à grande, à tripa-forra.

 

Vai até onde a pachorra?!

 

Já sei, dirão que é loucura,

pois a actual conjuntura

– seja ela a que for –

é o bem vindo motor

de um futuro mais rico.

 

Eu também o verifico!

 

Só que há sempre mais gente

a viver como indigente,

enquanto outros, sem pejo,

na vida arranjam ensejo

para juntar, com usura,

de modo contranatura,

já que, a morte nos prova,

nada levarão prá cova.

 

Quanto mais cresce este lado,

mais cresce o desempregado.

 

Neste tempo fratricida

– por isso mesmo suicida –

dá-se valor ao dinheiro,

ao luxo e ao poleiro,

que têm a primazia,

e a vida é uma quantia

sem interesse nem valor.

Vale mais o desertor,

de posição, bem falante,

que quem porfia, constante,

nos valores morais e éticos.

 

E serão vozes de heréticos

as que se ergam, com Dono,

para dar fé do que abono!

 

Com o maior despudor

pegam em qualquer gestor

que degradou património

e lhe darão, com encómio,

ir gerir outro qualquer.

 

Mais barato era fazer

justiça ao desempregado,

dar-lhe um naco, um bocado

do muito que, ao falir

se anda a repartir.

 

Agora vão para a TAP

– onde não houve quem tape

o prejuízo imenso –

a fundo perdido, penso,

180 milhões.

São muitos, muitos tostões…

Na minha opinião

– que não vale um tostão –

nada vai adiantar:

vai-se o buraco alargar

e o pilim que se gasta

era talvez o que basta

para criar mais riqueza

numa qualquer outra empresa

que dê saldo positivo

e mantenha o País vivo

gerando estáveis empregos;

mas os governos são cegos

e os partidos também

porque lhe dizem amém.

 

Qual é o papel então

do modesto cidadão,

ele sim contribuinte,

neste viver de requinte?

 

Ir assistindo às falências

Quase todas indecências?!

A Europa da riqueza…

A Europa da pobreza!

 

Fala-se na CEE

e não se sabe o que é.

Cria mais desigualdade

com menos humanidade.

 

A Europa do dinheiro

a pôr Deus no mealheiro.

A dar-se à avidez

e a perder lucidez,

a esquecer repartir,

que é meio de conseguir

felicidade e paz.

 

Mas pra eles tanto faz!…

Só pensam no deus-cifrão

que lhes dá a relação

com o gozo desmedido

onde nada faz sentido;

comem do bom, do melhor,

e vivem no esplendor;

os outros?! Roam os ossos

e que chupem os caroços;

África?! Fica distante

e só é estimulante

p’lo que dela se retome;

morre-se à sede e à fome?!

Nem com isso os desarmas

pois vendem milhões em armas

e o que mais lhes importa

é o valor que se exporta.

 

Mas um dia há-de acabar

todo este aldrabar.

 

Ser LIXADO é entender

que viver é aprender

e sentir e aceitar,

mas também é rejeitar

quando aquilo que se ajeita

humanidade desfeita;

que o valor do tostão

é no próprio coração

que se deve encontrar,

não no que pode comprar.

 

No que aos outros dará

é que a Alma se achará.

 

Por isso quão mais LIXADOS

menos somos enganados.

 

E se houver ponta de sonho

nem um pouco eu me oponho,

que sonhar é o que resta

quando o que existe não presta.

 

Os homens que nos dirigem,

seja qual for a origem,

hão-de ter a condição

de sentir a comunhão

com os outros, seus iguais,

nas coisas simples, banais.

 

Não compliquem o que É!

 

Que o pagode, o Zé,

não vivam a mascarar

e a tentar aldrabar;

que se deixem de retórica,

por vezes fantasmagórica,

só para justificar

sua visão singular

que os leva a decidir

de modo a agredir

o que é o nosso sentir,

passando o tempo a fugir

às questões a resolver

como seja o comer,

a casa, o agasalho,

haja ou não haja trabalho.

 

Igual preço tem nascer

e custa o mesmo viver.

 

A riqueza que há no mundo,

no fundo, bem lá no fundo,

a todos deve uma parte.

 

Pois então a vera arte

está em fazê-la chegar

a todo e qualquer lugar

onde haja uma pessoa.

 

O resto… é tudo loa

contada com voz dengosa

mas muito, muito gulosa.

 

E porque a hora é tardia

e ouvir-me faz asia,

vamos ficar por aqui,

que bastante já bati.

 

Haverá mais a dizer

mas terei de me conter

e evitar aos que estão

alguma indigestão.

 

Uma última tarefa

a bem de toda a catrefa:

sabendo dever amá-los,

mas longe de respeitá-los,

perdoemos-lh’ os pecados,

caros e caras LIXADOS.

 

Assim faz o bom cristão

mesmo cheio de aflição.

 

06SET94/30SET94 

Julião Bernardes