PEDRO PROENÇA: HELIÓPOLIS
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HELIÓPOLIS REVISITED
(1995)

1

Era o seu desejo ir na maré das iluminuras
na cor meticulosa, no abano seco do leque,
na esquecida controvérsia religiosa
na doçura espartana do queque.

Havia os que queriam destruir o poema
com proféticas barbas e teorias às resmas
e uma muralha de fogo ardia
espalhando raros venenos
e ia, ou íamos, para Ítaca
para Ítaca remávamos
e o corpo fraquejava
e os cordeiros repousavam
chamuscados p’lo meio-dia.

Quem diria que se ia
p’ràs prisões da Alegria!
Nas embarcações a água entrava
às golfadas nos buraquinhos
às vezes com peixe miúdo
e noutras graúdo que os entupia
ficando ali na asfixia, retorcendo-se
e morrendo. Infectos, nessa água
também vinham na ressaca limos
e lixo, detritos de várias épocas,
estátuas de madeira, bonecas de plástico,
fezes, e o cheiro lavado do sal,
misturado com regurgitações de crustáceo,
com lixívias de cetáceo e escamas
de faminto e carnívoro peixe.

A putrefacção era convidativa,
amava-nos rodeada de líquenes.
Quem se dedicaria a profecias,
agarrado a solas de sapatos
ou fixando o canudo nos astros
e anotando em margens de livros?

Um vómito as percorria
de números e asteriscos,
bordando-as de coplas desapiedadas
de catástrofes, mistérios e crimes.

Da história eram o compêndio
pelo qual os acontecimentos se regiam,
e todos os pequenos factos
se sumiam perante os aparatos
inspirados das metáforas e da astrologia.

Assim milénios, equinócios, dias
eram infalivelmente devorados
desgovernadamente, e apenas o obscuro plano
tramava o fim de tudo quanto berra
e clama contra a impiedade dos deuses
que dos homens faz moscas
e teatro de clamores
para moucas ou irónicas escutas.

“Mas não levo em mim o infalível adivinho
que me precavê das tormentas
lendo em tudo o que serpenteante
copula ou faz copular?”

“E não foi esse timoneiro
cego no semblante
que me fez ver a luta entre o múltiplo,
o desejo do mais querer?”

Tudo flui numa deliciosa mentira
que se torna proeminente,
como Pedro, que negando cumpriu o dever.

Mas nada termina em nada,
nem se encontra acabamento
para vulto, forma, capricho ou ilusão.

Ou é um sonho desincarnado,
sem sonhador, que uma multidão
frequenta assiduamente?

Maldição! Como quando Salomão
socumbindo às sabedorias do corpo
múltiplas e infinitas, do EL
que arrancou as coisas do tohu-bohu
se esquecendo, seu povo
caro na carne pagou
os desaires deste servo.

A quem devemos enviar
a conta dos crimes no derradeiro julgamento?

E porque pagam gerações
as de um sábias infracções?

E no lago uma enorme pedra,
rugosa, cheia de fendas
para respirar, e na superfície
algumas cicatrizes, cínzeas
ou bronzeadas. Era para lá
que se dirigiam os navegantes,
era lá que as iluminuras desaguavam,
e os cabelos de Sulamite
escovados corriam. E as oliveiras
ofereciam a sua sombra
e um panorama sobre o frondoso rio
no qual a natureza se vem espelhar
esquecendo que sob a reflectida vista
se ocultam mil e uma profundezas.

É a Mudez que vigora pungente,
de sobranceiro olhar. Nada de si
sabe falar.

Ou, rompendo com todos os espartilhos
e castidades, um filósofo falava
na genial prostituição da Natura,
que se dá mais do que recebe.

Falava da solidariedade entre paredes,
da fraternidade de cada um consigo mesmo,
dos ritmos que selvagens nos arrastam
para outras encostas e vertentes.

Dos navios que seguem
de cascos silvestres
os mares sem rotas
com os remadores chorando
com o coração enterrado na madeira dos remos
nos lares de enchidos fumegantes
e o cão agachado na soleira
coçando as moscas suavemente.

Mas eu vou ainda para lá
para muito mais longe,
onde nem sequer há coisas ou gentes,
ou talvez remotamente haja, disse um,
com o rosto temperado de lágrimas,
e um outro respodeu, também eu,
e sou como um gongo no qual o tempo bate
e só sei seguir em frente!

2


Falava-se muito sobre o silêncio
nos corredores, nos elevadores, nos consultórios
nas camas, etc.. Havia oratórias destas:
“o silêncio do menino
batia no cio da avó”.

Seria possível alguma independência
em tal clima? Rumorejava-se:
“os países que sob este arvoredo
recolhem a frescura
não devem crescer,
e as casas devem manter-se
assim como as famílias e o número de bens.”

O silêncio que nos deixava absortos,
que polia os pensamentos,
quais secretas jóias,
e abria bisturicamente as trevas
onde os nossos corações palpitavam
resinosos, vermelhíssimos.

O silêncio era a româ
e as suas grainhas palavras.

À porta da farmácia havia um pessegueiro
do qual caíam fofos pêssegos carecas.

As pessoas entravam e compravam caixas
e aquilo estava sempre branco por fora
impecavelmente caiado. Mas as doenças
não pactuavam com a brancura,
eram negras, ácidas, azedas,
sitiavam-nos sem ruído. Eram
a forma dolorosa do silêncio.

Os vírus vinham com suas tendas e faraós,
prescreviam aos escribas sintomas,
e eles afixavam-nos nos seus papiros
com os habituais hieroglifos.

Cada caixa era uma casa de várias cores.
E os melros cantavam e debicavam as ginjas
deixando o seu canto burilado
na ratada fruta.

No silêncio há qualquer coisa de indigesto,
faltam os grunhidos animados
de quem em prazer come,
e a lengalenga da ensonada criança
chamando uma vez mais a atenção
antes de mergulhar nos labirintos do sono.

E o rapaz esticava a corda para o ar
olhando o papagaio que se afastava
cavalgando o vento.

O silêncio pede tiranos,
exige a espessura e a opacidade
assim como sacrifícios
humanos se possível.
Quem é que a ele se rende?

Eles habitam em palácios onde
a genuflexão é mania,
com pórticos e enormes portas
que colossais guardas ritualmente fecham.

Nos seus jardins as amendoeiras
estão sempre nevadas
igonorando as estações
(e os meninos sentem nos ossos
a amargura das amêndoas
(e choram pela noite
(e a língua não reconhece
o sabor da lua))).

Há sempre um poço
no interior de tudo
que é a própria obscuridade.
Mas a obscuridade não redime
apenas disseca as palavras
tornando-as gangrenosas
e sumptuosas (com vestes de seda).

No fundo do poço há um brilho,
um palidíssimo reflexo.

As papoilas cercam-me no claustro
e o rei banha-se na fonte.

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Um nadador vermelho aproximou-se
com as suas negras plumagens
emergindo das tripas da onda
nessa diarreia alva, nessa ressaca
champanhesa. Na sua boca abundavam carnes
mastigadas e cruas. O interior do corpo
é uma cave, uma arrecadação,
onde junto a mantimentos
velharias se acumulam
com pó, ferrugem, caruncho,
como um descuidado museu
sem arqueologia dos usos
ou vitrine para evitar abusos.

E todas as estatísticas e previsões
apontavam no momento
para que a terra grávida florisse
e as ervas daninhas, vigorosas e brejeiras,
abrissem espaço e clareiras
para que os sacerdotes nas noites de lua cheia
recolhessem o Soma
para sacrificar aos deuses.

Eis-me entretanto saído
da intestinal terra
moldado subitamente
por narcísico criador:
é esta a primeira aurora?

3

Cordilheiras de insectos ziguezagueando,
entrando aos batalhões
na verde massa florestal,
picando, urdindo, dilacerando
as descarnadas plantas.
Dois nadadores aéreos
arrastam-se como anjos desasados
nos cumes dos montes sagrados:
debicam fígados e outras entranhas
de vítimas sacrificiais
humanas, divinas, ou mistas.
São feios! (haverá outro modo,
mais poético ou explícito de o dizer?)

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....manhã plena... orvalho....
temporada edulcorante
onde ninfas vegetais
preparam frescas matérias
para as sempre analíticas
papilas gustativas.

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Não eram apenas submarinas,
mas sub-terráqueas, as rotas
a que os nossos nautas
se entregavam. A primogénita,
entre os primogénios, criatura,
era a espécie que sulcavam,
barrosa, licorosa, pedregosa,
que o divino artífice ainda formava.

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Vieram os dilúvios, e os mundos
pereceram, sem crónicas que resistissem.
Tudo se esqueceu. Uma cegonha reapareceu
entre ruínas desfeitas de tão ruinadas,
uma raposa coçou o focinho
nas sodómicas cinzas, e uma lebre
deteve-se num espelho estilhaçado.
Attis atapetava de novo a Terra
com as clorofilizadas agulhinhas,
depois de o seu rosto ter sido sulcado
por carros de combate
e espezinhado por calcanhares
vertendo o sangue que os recheava.

Cibele penteava os seus cabelos
cor-de-azeitona, sacudindo caspa.

As criaturas invocavam a Mãe
nas suas tocas e ninhos. Os alces
mostravam nas clareiras
os mastodonticos chifres
arranhando com seus cascos
a humidíssima erva.

Nas árvores pendiam testículos
oferecidos recentemente à Deusa.

Os homens, nus, já mostravam descontentamento,
com essa falta de não se ser origem
permanentemente. A nostalgia instaurara-se.

Cheiravam as raízes, contemplavan o sal,
comparavam-se a árvores
com muitos antepassados a distribuir
heróicas virtudes e alguns defeitos
lá de cima, ao mesmo tempo.

Uns clamavam que eram do sol,
outros da marinha serpente.
Seguimos por um túnel
onde a água rebentando seus flocos
contra a massa envolvente
produzia uma muralha de sons,
uma música entremeada de sangue.

Ar... Ar...

......................as videiras estavam no auge,
o açúcar percorria os nossos membros
e a beleza das mulheres fazia-nos o rosto
estalar, como argila seca.

Havia estandartes cuja agitação
nos atingia os ossos:
esqueceramos a pátria, a família, a casa
e estávamos virados contra
todo o desejo de obscuridade
toda a idealização, porque a fome
introduzia no corpo essa vacuidade
de que toda a abstracção se alimenta.
Os pensamentos eram mendigos
buscando mais claridade.

....................................Bab’El:
um respiradouro qualquer
mais límpido que as imagens.
..............neste exílio, nesta incerteza,
neste maremoto de risadas,
nesta causa sem acertos...
nada, nada... ainda nada...

4

Arroz, coco, beringelas, bananas:
a língua pastava besuntada destas pastas,
às quais sucos diversos, e salgados,
se juntavam.

Há na saliva um ímpeto criminoso,
um apurar e destruir, um preparar papas
que pouparão o mundo gástrico.

...................................................................................................

o cu pelado de babuíno,
como um tomate maduro
implantado sob a cauda.

Picasso invoca-o no camião
que se volve maternidade símia.
Do mesmo modo o selim é taurino
e o mundo entrevê-se escultura
como composição de detritos.

....................................................................................................

Na assunção da Fénix
se cristaliza toda a saída poética.
A ave vibra na corda da imortalidade.

Daí o fenixólogo, ornitólogo de quimeras,
expert de extrair vida das cinzas,
de fazer asas com páginas
de tratados vituperados.

O beijo assegura a planagem,
barroca, gongoríssima.

Por ela os lavatórios mimam sacramentos.
O baptismo jorra das torneiras.
Deus torna as nossas mãos gloriosas
e a escrita germina nessa limpeza.
Daí o Ovo Órfico posto por tal ave,
ovo escalfado no baptistério simulado.

Lá fora as massas amassam-se,
formam uma pasta ocre
num comício telúrico.
Divinizam conceitos.

Os conceitos são a erva, as alcachofras
e as acácias. O verde natural é paradoxal.
Vegeta. E todo o vegetal é êxtase de asceta.
A imobilidade aparente
traduz uma euforia incoerente.

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Entretanto João Catakuseno
aliou-se aos turcos.
Já começa a tornar-se moda!

O turbante, o crescente
e as noites todas e mais uma
saem da bruma.

Mas quem que se assenta
no trono que preside
à ruinosa desordem do conhecimento?

Jarros, cântaros, sangue por todo o lado.

Ajax está manchado
do seu próprio diamante:
a mácula é protuberante,
madrepérola em elefante.

O tétano devasta o acampamento.
As armaduras enferrujam no relvado.
Há quem jogue futebol na fábrica arruinada
e guarde velhas medalhas num gavetão.

O sangue alastra. A cidade incha nos arredores.
Os órgãos genitais tornam-se flores,
os rins destilam fortes licores,
e como uma cirrose fina a civilização.

O instrutor de equitação escarra prò lado,
esquece a miúda que morreu num trambulhão,
e lembra a canja das cantinas
as reguadas da professora
e as cuecas das meninas.

É preciso estofo para prosseguir.
O asfalto e a calçada fervem:
ouve-se o tacão e as muletas do coxo,
o pardal pousa no semáforo
e nas árvores pendem pneus.
Quem os vê? Uma criança e Deus.

www.triplov.com / 11.11.2003