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ANTÓNIO RAMOS ROSA
Nascimento último

Como se não tivesse substância e de membros apagados.
Desejaria enrolar-me numa folha e dormir na sombra.
E germinar no sono,germinar na árvore.
Tudo acabaria na noite,lentamente,sob uma chuva densa.
Tudo acabaria pelo mais alto desejo num sorriso de nada.
No encontro e no abandono,na última nudez,
respiraria ao ritmo do vento,na relação mais viva.
Seria de novo o gérmen que fui,o rosto indivisível.
E ébrias as palavras diriam o vinho e a argila
e o repouso do ser no ser,os seus obscuros terraços.
Entre rumores e rios a morte perder-se-ia.

In: No Calcanhar do Vento, 1987

O amor cerra os olhos, não para ver mas para absorver: a obscura transparência, a espessura das sombras ligeiras, a ondulação ardente: a alegria. Um cavalo corre na lenta velocidade das artérias. O amor conhece-se sobre a terra coroada: animal das águas,animal do fogo,animal do ar: a matéria é só uma, terrestre e divina.

In: Três Lições Materiais, 1989
A palavra

A palavra é uma estátua submersa, um leopardo
que estremece em escuros bosques, uma anémona
sobre uma cabeleira. Por vezes é uma estrela
que projecta a sua sombra sobre um torso.
Ei-la sem destino no clamor da noite,
cega e nua, mas vibrante de desejo
como uma magnólia molhada. Rápida é a boca
que apenas aflora os raios de uma outra luz.
Toco-lhe os subtis tornozelos, os cabelos ardentes
e vejo uma água límpida numa concha marinha.
É sempre um corpo amante e fugidio
que canta num mar musical o sangue das vogais.

In: Acordes, 1989
Não tenho lágrimas
estou mais baixo
junto à cal

Vejo o solo extinto
Não oiço ninguém
e não regresso

Adormecer talvez
junto a uma estaca
com uma pequena pedra
sobre as pálpebras
In: Intacta Ferida, 1991