JORGE CASTRO
«Portugalidades» e outros poemas

A espiral depressiva

um BPN

um BANIF

a PPP

ah, patife!

a trapalhada

a chulice

o poleiro

a aldrabice

o lugar fixe

e o povo…

nada é novo:

- que se lixe!

 

um presidente

um governo

um acidente

um inferno

coligação

rés do chão

maioria em demasia

e que a tudo valha o demo!

cá nos sobra o despautério

e mais a desilusão

dos mares da corrupção

que já ninguém

leva a sério

 

uma troika

gasparova

sempre urgente

e homicida

a fazer de seminova

em governo

de saída

de pés p’rà cova

impotente

mas cautela, ó clientela!

também vem aí

a Europa

o FMI

o Obama

a China nova a oriente

essa tropa e essa gente

tão ingente tão ufana

 

que eu bem nos vi

de repente

limpando o fundo

à gamela

e de bandeira

à lapela

num venha a nós

vosso reino

mas primeiro

que em toda a cidade e vila

mesmo à má-fila

e sem treino

matemos nossos avós

que aquilo são empecilhos

e rendem bem mais

os filhos

do que os egrégios avós

 

assim nos vai o país

dos heróis

dos marinheiros

dos caracóis

dos dinheiros

sem apelo e sem agravo

de fados sem marceneiros

mas de grunhos

estremenhos

a não valerem um chavo

sem terem terra

também

nem pai

nem mãe

nem ninguém

que lhes prove

sem rebuço

e comprove

sem senão

qual a dimensão

de um chuço

e correr com eles a nove!

 

17 de Julho de 2013

 

Deste lado da janela

deste lado da janela

sinto os rios que quiser

sinto a lua que anoitece

sinto o sol a amanhecer

sinto o bordado dos dias

cortinado que parece

nas tuas mãos melodias

sinto o frescor da vidraça

na minha fronte turbada

sinto a lágrima-mordaça

redondamente alongada

sinto o riso transparente

que atravessa a modorra

tropeçando em tanta gente

nalgum dia de masmorra

 

deste lado da janela

sou sempre quem eu quiser

por vezes uma coragem

outras medo de viver

por vezes só a voragem

do que está p’ra suceder

sou o falcão de atalaia

ou o pardal destemido

que vagueia na gandaia

sem cuidar porto de abrigo

 

deste lado da janela

eu olho o mundo sem pressa

que passa à frente dos olhos

sem ter pés sem ter cabeça

entretido e entre os folhos

da cortina que entreteça

deste lado da janela

há o conforto de eu ser

o quanto me apetecer

vendo a vida que eu quiser

lá fora sempre a nascer

árvore nua de inverno

algum grito de revolta

um anjo que vem do inferno

de lança-chamas à solta

mas nós sempre protegidos

deste lado da janela

haja mil mortos mil feridos

mil presos na mesma cela

 

deste lado da janela

ninguém me vê – ninguém sabe

o que brilha nos meus olhos

um reflexo de mar

que não comece ou acabe

que não pare e que não passe

quando tropeço no olhar

por detrás de outra vidraça

que não me vê mas que sabe

que por trás de uma janela

há sempre alguém por trás dela

em busca de algum olhar

que ninguém vê mas que sabe

que está por trás da janela…

 

 

30 de Setembro de 2013

- A propósito de um desenho de Raim, no blog PersuAcção

  

ele há paços de concelhos
ele há paços de outra vida
ele há passos de coelhos
ele há passos de corrida
ele há viver de joelhos
ele há viver outra vida

e se eu me passo p'los paços
por onde passos não dou
sejam eles do paço ou Passos
por aí é que eu não vou!

07 de Outubro de 2013

Absoluto em coerência

quem toca numa banda não é bandido

nem carece de uma fila o filarmónico

mas quem não entrar na banda é banido

se de si não der um tom em dó harmónico

 

quem tem uma venda não é vendido

mas se vendar um olho é zarolho

e ao vender os dois caso perdido

não valendo trocar um por outro olho

 

quem vive na corte não é cortina

por mais que se arvore em reposteiro

mas se optar por uma vida de rotina

não se estima que vá além de rotineiro

 

e se algum for ao fundo não é fundado

nem o mergulho fará dele um mergulhão

o mais certo é ficar todo molhado

e deixar de si um rasto pelo chão

 

pessoano talvez sim mas mais pessoa

sentir em si um Eça em que tropeça

e mesmo sem ser ave a alma lhe voa

ao ser pessoa assim… – essa é que é essa! 

 

26 de Dezembro de 2013

dar a passada que falta e a outra que nos sobra

dos saberes que nos percorrem

na estrada perseguida pedra a pedra erguida a obra

das memórias que não morrem

 

e ser forte que conforte sabendo em nós ter a sorte

de singrar o azul profundo

e dar mais vida que a morte tendo por meta algum norte

de mais mundos dar ao mundo

 

as duas mãos estendidas para um horizonte de luz

duas vontades unidas

para que ao alto do monte não se nos depare a cruz

das verdades proibidas.

 

 

24 de Dezembro de 2009

 

 

Portugalidades 

- a meio caminho de troikas, tricas e outras tretas 

já contava

Pedro Homem e de Mello

este dito

que acredito por consolo:

nós

portugueses

somos castos

 

mas somos infinitos e ingentes

somos castros

somos bravos

contundentes e errantes

não sabendo ser escravos

nem gigantes

estamos sempre ao rés do mar

somos infantes

e ao sentirmos que a nossa barraca abana

marcharemos ‘inda além da Taprobana

 

temos sempre os barões assinalados

num padrão feito em granito

ou aos quadrados

e abrigamos nesta alma modos vários

seja o graal em tinto grito

dos templários

ou o esterco que atiramos ao vizinho

que por carência de jeito ou pouca graça

foi parar a um pelourinho

de desgraça

 

há em nós um fremir por dons de cura

e um anseio feroz

de sinecura

temos artes de em tudo fazer emendas

mas penamos por colher umas prebendas

que esta vida são dois dias

lá se diz

- e assim era

já p’ra lá de D. Dinis -

 

 

nós

portugueses

somos sempre…

- ou p’lo menos a maior parte das vezes –

o princípio da Europa e mais ao fundo

também somos para aqui um fim do mundo

 

ninguém é melhor que nós no desenrasca

mas ninguém mais do que nós só vive à rasca

de rompante nos lançámos lá de Sagres

mas ninguém mais do que nós crê em milagres

e depois de abrirmos ao mundo tanto mundo

descobrimos que batemos bem no fundo

duma vida construída a acreditar

em Sebastiões que virão do além-mar

e há-de ser em manhã de nevoeiro

sem qualquer luz de sol ou candeeiro

 

assim somos perturbantes e ancestrais

e na força alucinada desta lida

poderá ter sido aqui

- oh muito antes! –

que caiu a partícula da vida

que nos veio dos confins universais

 

somos povo de poetas

de pintores

de artistas mais de mil

e de cantores

suportando muitas tretas

ditadores

somos povo dessas metas multicores

que mistura a genética e os amores

no globo deste mundo em toda a parte

para tanto nos sobrando engenho e arte

 

somos pois este povo de mil peças

que se esquece dos Camilos e dos Eças

de perdido a cumprir tantas promessas

… e eu que sou parte dele – ínfimo encarte

tenho assim para mim o doce enlevo

de que pago e pagarei tudo o que devo

mesmo até ao passar p’la vida breve

sem saber quem pagará quanto me deve…

 

25 de Outubro de 2013

As canções da nossa liberdade

- um outro poema de referências, como agradecimento a João Balula Cid e aos seus (nossos) amigos em sessão memorável das Noites com Poemas

 

as canções da nossa liberdade

são da cor das madrugadas da vida

no acaso tanta vez

feito vontade

por valer uma esperança enfim cumprida

 

são da cor de um olhar ao mar aceso

são o brilho desse olhar na noite escura

são raiz do pensamento enfim coeso

são as mãos da paz

da guerra

e da aventura

 

as canções da nossa liberdade

são aquelas soltas no vento que passa

alvoroço contra o medo e sem idade

de haver sempre uma candeia na desgraça

uma luz

algum farol

o olhar ardente

essa bola entre as mãos de uma criança

que saltita alegre e viva à nossa frente

e por saber ser assim livre

é cor da esperança

 

hão-de ser para alguns um leme inteiro

o velame que impele a nau premente

esse grito que nos rasga o nevoeiro

quando o tempo de mudança

é mais urgente

 

as canções da nossa liberdade

são a carne viva feita de emoções

cada nota

cada estrofe que em nós arde

incendeia aqui e agora os corações

a crescer entre o peito e a garganta

a valer de pena e espada que acontece

quando a noite se finou e amanhece

nesse querer voar que sempre se agiganta 

na invenção do amor que nunca é tarde

inteiro e limpo

o dia que enfim canta

as canções da nossa liberdade

 

e por ser assim e assim nos valer a pena

nas canções da nossa liberdade

o povo é quem mais ordena.

18 de Novembro de 2013

passam os dias de névoa

feitos de cru abandono

onde faltam as palavras

e nos sobra algum assombro

 

sabemos da cor dos dias

o arco-íris do tempo

mas o negrume da noite

traz sempre algum desalento

 

tal o frio nordestino

que nos talha a pele agreste

nas veredas do planalto

sempre a leste do destino

 

ao norte do desalento

não crescem mares de amargura

mas sim a agrura das torgas

na esperança desesperada 

que medra nas duras fragas

e desce ao rés da planura

onde germinam papoilas

e migram aves solares

 

Portugal feito de tudo

dos retalhos deste mundo

das vidas que nos enformam

num corpo amalgamado

 

sabemos da cor dos dias

que medra nas duras fragas

Portugal feito de tudo

num corpo amalgamado

 

passam os dias de névoa

e migram aves solares

sempre a leste do destino

na esperança desesperada

 

17 de Dezembro de 2013