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JOÃO RASTEIRO

CORSINO FORTES e JOÃO CABRAL de MELO NETO
ou OS ARTÍFICES da PALAVRA

INDEX

Introdução
Corsino Fortes: poesia da identidade
A ilha: recriação de Cabo Verde na recriação da palavra
O “Pedreiro da palavra”
João Cabral: poesia da busca
O Sertão: poesia escrita na pedra
O “O engenheiro da palavra”
Semelhanças e diferenças no fazer poético
Conclusão
Notas
Bibliografia

ANTOLOGIA “OS ARTÍFICES DA PALAVRA”
Corsino Fortes
João Cabral de Melo Neto

O sertão: poesia escrita na pedra

O universo poético de João Cabral de Melo Neto é, principalmente, o da zona da mata e do sertão nordestino. O nordeste com a sua gente, os retirantes, as tradições, o folclore, a herança medieval e os engenhos. De modo muito particular, o seu estado natal, Pernambuco, e a sua cidade, o Recife. São assim objecto de verificação e análise, os mocambos, os mares e rios, como o Beberibe e o Capibaribe, os canaviais da zona da mata pernambucana, e a terra árida, a "pedra" alimento da palavra. Daí, dois dos seus livros, "Pedra do sono" e "A educação pela pedra", trazem no título a ideia de pedra, símbolo da secura sertaneja e do solo pedroso e árido da região. No poema que dá título ao livro "A educação pela pedra", existe uma reflexão sobre a alma sertaneja, a partir da imagem concreta da pedra:  

Uma educação pela pedra: por lições;

para aprender da pedra, frequentá-la;

captar sua voz inenfática , impessoal

(pela dicção ela começa as aulas).

A lição de moral, sua resistência fria

ao que flui e a fluir, a ser maleada ;

a de poética, sua carnadura concreta;

(...)

Outra educação pela pedra: no Sertão

(de dentro para fora, e pré-didáctica).

No Sertão a pedra não sabe lecionar,

e se lecionasse, não ensinaria nada;

lá não se aprende a pedra: lá a pedra,

uma pedra de nascença, entranha a alma.

Através de rigoroso trabalho de linguagem e construção, a "dura" poesia de João Cabral, feita de "pedras" e a "palo seco", como adorava dizer, inspira-se na aridez geográfica e humana do Sertão, para por arrastamento, se tornar também ela, uma poesia seca e exterior. A partir de 1950, João Cabral, apresenta uma poesia cada vez mais engajada, aprofundando assim a temática social. Nos poemas "O rio" e "O cão sem plumas", do início da década de 50, do século XX, é já possível encontrar, dois traços fundamentais da poética de João Cabral. Por um lado, a rigorosa dependência entre expressão lírica da subjectividade e a sua localização num quadro de representação objectiva e, por outro lado, a crítica social e histórica, cuja expressão vai da ironia ao sarcasmo, passando pelo humor ocasional, extraída da própria leitura dos objectos do poema, sem entrar por uma retórica panfletária. Repare-se neste fragmento do longo poema "O rio":  

(...)

todos sempre ostentando

sua ulcerada alvenaria;

todos porém no alto

de sua gasta aristocracia;

todos bem orgulhosos,

não digo de sua poesia,

sim, da história doméstica

que estuda para descobrir, nestes dias,

como se politava

os dentes nesta freguesia.

 João Cabral vai elaborar grande parte da sua poesia dimensionando-a para o Recife, o Sertão, a região severa da seca e da aridez. O facto de haver criado poemas como o famoso “Morte e vida Severina” (o poeta transformou o nome próprio Severino, que no poema é praticamente sinónimo de nordestino e retirante, num adjectivo que qualifica a vida e a morte no nordeste, da seca e da miséria. Como afirma,  

- O meu nome é Severino,

não tenho outro de pia .

Como há muitos Severinos,

que é santo de romaria,

deram então de me chamar

Severino de Maria;

como há muitos Severinos

com mães chamadas Maria,

fiquei sendo o da Maria

do finado Zacarias.

Mas isso ainda diz pouco:

Há muitos na freguesia,

(...)

Em João Cabral há uma reiteração da ideia de morte e de vida. Aliás, “Morte e vida de Severina, poderá ser considerado um épico, à semelhança de “Vidas Secas” de Graciliano Ramos, uma vez que nos é mostrado o cíclico, o heroísmo da luta contra a morte, morte essa que está na terra, na pedra, na palavra. João Cabral mostra que o sofrimento é de toda a região, por isso, até o rio seca, porque “todos o matam”. É o caso de “O cão sem plumas”, ou seja, o próprio rio Capibaribe, que recolhe os detritos do Recife:

Aquele rio

era como um cão sem plumas.

Nada sabia da chuva azul,

(...)

dos peixes de água,

da brisa na água.

 

Sabia dos caranguejos

de lodo e ferrugem.

(...)

sabia seguramente

da mulher febril que habita as ostras.

Apesar de ter vivido em meio à exuberância sonora dos ritmos pernambucanos, João Cabral, foi um poeta não – musical, avesso principalmente à melodia e à musicalidade do verso. Através de rigoroso trabalho de linguagem e construção, a “dura” poesia de João Cabral, feita “pedra” e na “pedra”, trilha um caminho de luta permanente contra as injustiças do mundo, sejam elas sociais ou de sintaxe, sempre com um único objectivo: FAZER. Essa valorização do fazer, coloca o trabalho em si mesmo, a partir das próprias condições do trabalho, numa preocupação com a matéria dura e irredutível que irá compor o poema:

É mineral o papel

onde escrever

o verso; o verso

que é possível não fazer.

 

São minerais

as flores e as plantas,

as frutas, os bichos

quando em estado de palavra.

(...)

 É mineral, por fim

qualquer livro:

que é mineral a palavra

escrita, a fria natureza  

da palavra escrita.  

Assim são os poemas de João Cabral, poemas que usando e abusando da palavra pedra e/ou mineral, criam a própria realidade através da linguagem e que de certa forma não apresentam referencialidade externa, visto serem profundamente autotélicos.

Em relação a esta “poesia da pedra”, de cariz regional e social, Zila Mamede afirma: (15)”A real poesia nordestina tem duas leituras básicas: uma anterior à obra de João Cabral de Melo Neto e outra posterior a “Morte e vida Severina” – o divisor das águas”.Foi esta luta de amor pelo Nordeste, esta luta e amor pela “pedra”, que João Cabral levou até ao fim da respiração, até porque sempre afirmou: “Para mim, a poesia é uma construção, como uma casa”, e isso leva tempo, por vezes uma vida. Por isso afirmou:

Eu sei que no fim de tudo

um poço cego me fita.

Difícil é pensar nele

Neste passeio de um dia,

neste passeio sem volta

(meu bilhete é só de ida).

(...)

 
Corsino Fortes .............J.C. de Melo Neto....