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::::::::::::JOÃO RASTEIRO::::

Análise crítica do conto " D. Pedro I e Inês de Castro ", do livro "Triunfo do amor português", de Mário Cláudio

Em entrevista ao jornal Diário de Notícias, Mário Cláudio afirma que o que vamos encontrar, neste “Triunfo do Amor Português", é “Uma dimensão da urgência e da permanência do amor”, sendo que o que existe de comum nestas histórias de amor é “A transgressão”. É precisamente este factor de transgressão (e não propriamente um factor de culpa, como alguns poderão pensar), que encontramos no conto “Dom Pedro I e Inês de Castro”. Nesta transgressão Mário Cláudio coloca em causa uma racionalidade, um sentido, assente na modernidade judaico-cristã. É esta, em última instância, que é colocada em causa. O ”sentido” para o autor, é afinal o sentido mais verdadeiro: o sentido da irracionalidade dos pássaros (pág. 55), do amor, da vida (como apenas a outra face da morte), o sentido do corpo (que é apenas a outra face do espírito). E este sentido, que é um “sem sentido”, faz-se som dominante. Até porque o sentido e/ou racionalidade medieval não coloca as visões de vida e morte como antagónicas, tal como não o são as do real e da magia. Desta perspectiva, neste conto não existe uma questão de “ou”, "ou". Quase sempre, é uma questão de “e”. O amor "e" a natureza, "e" a vida, "e" a morte; a razão "e" a des-razão". O próprio sentido dominante é trucidado pelas gargalhadas do rei, através de um excesso cómico, lembrando o excesso barroco, também da pós-modernidade. Não concordo, nem o conto a exprime, com a ideia de que “Não há amor sem culpa”. Transgressão não significa culpa, e é desta transgressão que essencialmente trata este conto. Na imagem de D. Afonso IV, a depor uma cruz sobre o tampo de carvalho, o rei pretende livrar-se precisamente da sua culpa de amor, fosse o amor ao reino, fosse o amor a Inês de Castro (pág. 54), uma vez que a cruz traz, em si mesma, esse sentido de culpa. Este conto assenta numa estrutura do “acordamento”, que passa à viagem metafórica (meta-phoreia-transladar), a viagem em que se acompanha a outra, a literal: a do cadáver, de Coimbra a Alcobaça. As analepses existentes no conto, constituem uma viagem paralela: pela história do amor e pelo questionar/pelo reflectir sobre a sua natureza. As duas viagens, que são uma, terminam na “revelação” do sonho.Refira-se, como afirma Stephen Wilson, no posfácio à segunda edição do “Camões” de Ezra Pound, a importância dada por Pound à viagem, exumação e coroação póstuma (contrariamente a Camões), num “processo de actualização”, que, Pound considerava “como a tarefa principal do artista”. E, é essa “actualização” que a prosa de Mário Cláudio, permanentemente nos oferece. O texto decorre através de uma linguagem neo-formalista, que tenta recuperar um português primitivo, como primitivo é o lugar do amor e do sentido anterior a todos os sentidos. O amor como criação. Encontramos um narrador (D. Fernando), homodiegético (na terminologia de Genette) e não omnisciente. É neste narrador, que vai assentar toda a estrutura do conto, seja ao nível do “estranhamento” ou do “acordamento”. É através do narrador que se vai formando a ideia de uma Inês, uma personagem à volta de quem giram várias e complexas relações. Repare-se na relação entre Inês e Dona Constança. Será amizade, amor, ciúme ou outra relação ainda mais intrigante? (até porque a dificuldade do amor assenta precisamente na sua não compreensão, na sua não - humanidade – ele é para além de nós). Daí se poder questionar (pág. 46) de quem teria Dona Constança ciúmes. Seria de Pedro, ou de Inês? O autor e/ou narrador deixa-nos numa encruzilhada, simbolizada no jogo de xadrez a que Dona Constança se entrega. O xadrez, como possível metáfora do poder (político, económico ou moral), mas sobretudo do poder do amor. Na página 49, existe mesmo uma alusão, uma suspeita de quase "incesto", na relação entre D. Afonso e Inês de Castro. O próprio narrador (D. Fernando) refere (pág. 47): “plantou-se meu pai como se guardasse a que fora sua, e creio que sua apenas”. Porquê esta re-afirmação do narrador? Será que foi mesmo de mais alguém? De D. Afonso IV, Dona Constança, de um outro desconhecido? Aliás, importa referir que se o carácter de D. Pedro nos é apresentado como o de um homem desequilibrado, sob uma forma animalesca, Inês, como refere o narrador, não é nenhuma santa (pág. 47): ela é homenageada, não por ser santa, mas por ser desgraçada como todos eles. É uma anti-heroína. Perpassa, como fundamental neste conto, a celebração da vida através da celebração da morte (daí a reposição da “dança da morte”, uma “dança macabra”(na pág. 48), onde se mostrava e evidenciava , “o primado da vida”). Aqui, o amor está ligado à morte e à vida, à celebração da própria natureza (e não à celebração das normas éticas e morais de uma sociedade). Repare-se nas mágoas de D. Pedro, “curadas” pela madrugada, nos casebres das moças que dormiam. Na presença da morte, a sexualidade, a vida. A morte surge como festa, celebrando a vida: como na natureza do próprio amor. Atente-se no pormenor que é a sobreposição do orgasmo de D. Pedro ao último suspiro de Dona Constança. Não existe neste conto - nem na natureza do amor - separação entre vida e morte. Pode-se dizer, tendo em conta o que diz o narrador (pág. 52): “como se a paixão maldita que não se extingue permanecesse”, uma vez que a impossibilidade de deixar de amar é igual à impossibilidade do triunfo da morte absoluta”. Daí que D. Pedro vá vivendo o seu amor - entregando-se à morte - da própria amada e dela fazendo rainha. Regresso por fim ao narrador, D. Fernando, que é na verdade a personagem essencial deste conto. Nele vamos encontrar uma permanente des-identidade. Como é sugerido (pág. 56), ele é simultaneamente Inês, mulher, homem, alguém que está preso num espartilho (que diariamente lhe colocavam, com as suas vestes), que é o espartilho da sociedade. O espartilho do poder, político, ético, cultural e social com que não se identifica. D. Fernando não consegue livrar-se da imagem da mãe; logo, não poderá amar a mulher, Dona Leonor, que, tal como todas as mulheres, lhe lembra a mãe. Precisa urgentemente que o rei morra, condição para não continuar a submeter-se ao seu poder falocêntrico, ao poder do homem que odeia e simultaneamente ama com desespero. Atrevo-me a afirmar (como diria Freud), verificar-se em D. Fernando uma questão edipiana por resolver. Razão para se falar de homossexualidade? Talvez, embora hoje, muito discutível, pois todos os símbolos da sua "identidade", - de uma identidade que lhe é imposta do exterior, e que o castra -, são a principal razão que o impede de amar, de possuir o “amor verdadeiro”. O seu amor, como todo o verdadeiro, é o amor dos condenados (de certa forma, embora noutra perspectiva, o mesmo acontece entre D. Pedro e Inês, pelo menos ao nível da leitura literária-histórica), dos que estão fora do sentido dominante, dos fora da lei e da ordem, social e moral. Por isso, o “bobo”, (personagem fortíssima da literatura, nomeadamente no teatro shakesperiano), o "bobo Fernando", onde se afronta a ordem instituída, mas em cuja "desordem" estamos mais próximos da verdade – e, neste caso, da verdade do amor. É, tal como refere Charles Bernstein, num ensaio que me foi dado a ler numa aula de Poética e Escrita Criativa, é a comédia e/ou cómico (não a ironia "educada"): a "estilhaçar" a ordem do real. Todo o final do texto é pathos (excesso) e grotesco, erro e criação, morte e vida e morte. Uma visão do amor, como sinónimo da visão do inferno, mas, como referi, sem existência da culpa - um inferno sem culpa. Talvez o que nos fica seja o temor perante a transgressão, mas desligada da culpa. Por isso, atrevo-me a considerar este conto uma celebração do amor, desse amor puro e transgressor. Porque o amor é sempre uma afronta a todo o sentido instituído. É a liberdade absoluta perante qualquer ordem e/ou poder instalado, seja ele social, político, moral, cultural ou religioso. Uma liberdade perante todas as formas de linguagem e seu poder. Concluindo, estamos perante um texto extraordinário, onde o cenário de Coimbra se apresenta como o ideal para a história e para a pureza do amor. Amor, que, através da palavra de Mário Cláudio, procura a liberdade absoluta do ser humano, para um sentido outro, na vida e na morte.

João Rasteiro

(Texto apresentado no Anfiteatro IV da Faculdade de Letras/Universidade de Coimbra, em 19 de Dezembro de 2005 no âmbito das Comemorações dos 650 Anos da Morte de Inês de Castro – Conferência: “A representação da figura de Inês de Castro na ficção portuguesa contemporânea”.)
JOÃO RASTEIRO (Coimbra - Portugal, 1965). Poeta e ensaísta. É sócio da Associação Portuguesa de Escritores, membro do Conselho Editorial da Revista Oficina de Poesia e do Conselho Editorial da revista brasileira Confraria do Vento (versão impressa). É delegado em Portugal da Revista Italiana “Il Convivio” e colaborador da revista colombiana de poesia, “Arquitrave”(em 2008 deverá sair de sua responsabilidade, um número especial dedicado à nova poesia portuguesa). Tem poemas publicados em várias Revistas e Antologias em Portugal, Brasil, Colômbia, Itália e Espanha e possui poemas traduzidos para o Espanhol, Italiano, Inglês, Francês e Finlandês. Publicou os livros de poesia, A Respiração das Vértebras (Sagesse, 2001), No Centro do Arco (Palimage, 2003) e Os Cílios Maternos (Palimage, 2005) e O Búzio de Istambul (Palimage, 2008). Obteve vários prémios, nomeadamente uma “Menção Honrosa” no Concurso Internacional “Poesie Sulle Piastrelle”(Zacem – Itália,2001), a Segnalazione di Merito no Concurso Internacionale de Poesia: Publio Virgilio Marone (Itália,2003) e o 1º prémio no Concurso de Poesia e Conto: Cinco Povos Cinco Nações, 2004. Em 2005 integrou a antologia: “Cânticos da Fronteira/Cánticos de la Frontera (Trilce Ediciones – Salamanca). Em 2007 f oi convidado a participar no III Festival Internacional de poesia de Granada – Nicarágua e integrou a antologia: “Transnatural”(projecto multidisciplinar que tem como tema o Jardim Botânico da Universidade de Coimbra) – Editora Artez. Em Maio de 2007, f oi um dos poetas participantes nos VI Encontros Internacionais de Poetas de Coimbra, F.L.U.C. - Universidade de Coimbra. Mantém em dia o fulgor insane do Blogue: http://www.nocentrodoarco.blogspot.com/ E-mail: jjrasteiro@sapo.pt